Este livro é muito pessoal porque conta a história da família paterna da sua mulher estónia, sobretudo da avó paterna, mas há algumas constantes com outros livros seus que li, nomeadamente aquelas purgas sucessivas dentro do PC soviético, pessoas que são leais e deixam de o ser, a desconfiança sistemática, mas ao mesmo tempo depois a quererem voltar o partido. Estas pessoas, como Leida, que queriam ser do partido, era uma questão de convicção mesmo depois de serem tão maltratadas? O que é que fazia que quisessem voltar a ser comunistas?.José Milhazes: Eles queriam voltar ao partido porque queriam continuar a sobreviver, ou seja, queriam deixar de ser párias porque quando eram expulsos do partido era uma autêntica tragédia não só para o próprio militante mas para a sua família..Era quase uma questão de sobrevivência voltar ao partido que os tinha tratado mal. Isso acontece com a família da sua mulher?.J.M.: No caso da Leida, e esse fator é muito importante, ela quer voltar ao partido como forma de sobrevivência e para fazer que o seu filho e toda a sua família pudessem sobreviver. Ela já não podia ter grandes ilusões quanto ao regime, tal foi a crueldade com que foi tratada, mas esse momento é muito importante..Nos relatórios que cita, o PC diz que ela era leal mas muito passiva. Leida estava a mostrar a falta de entusiasmo dela?.J.M.: Quando vemos esses interrogatórios há sempre uma particularidade: uma pessoa, na era soviética, quando era interrogada pagava por ter cão e por não ter porque a finalidade da justiça era que essa pessoa fosse condenada..Ou seja, quando dizem que ela era muito passiva também a criticariam se ela fosse muito ativa..J.M.: As acusações muitas vezes são de tal forma absurdas que se nota que os interrogatórios eram um mero pró-forma..Não podemos tirar muitas ilações das convicções das pessoas a partir deles?.J.M.: Exato. As pessoas, muitas das vezes, ao serem interrogadas o que tentavam era proteger-se a elas próprias e proteger a família..Esta avó morreu nos anos 80. Nasceu em 1901 e morre com 80 e tal anos. Mas afinal a Siiri não a conhecia bem?.Siiri Milhazes: Na realidade, eu não a conhecia e não queria conhecer porque ela era a avó paterna e eu cresci na família materna, que estava totalmente contra estas ideias que ela defendia. Para mim, ela era quase criminosa, ou era culpa dela que o comunismo viesse para a história. Não digo que pensava mal dela, mas também não estava interessada em saber mais nada..A sua família dividia-se entre os nacionalistas estónios do lado materno e do outro lado, o lado de Leida, estavam representados os que eram fiéis à União Soviética?.S.M.: Sim. Eu sempre tive a ideia de que os nacionalistas estavam certos e os comunistas não, porque vivia com a convicção de que o comunismo não prestava. Não quero aqui falar de política, nem com este livro eu sinto nada politicamente. Tenho alguma culpa perante a minha avó porque eu julgava-a sem a conhecer de facto, sem conhecer se ela acreditava ou não acreditava. Agora duvido que ela no fim da vida ainda acreditasse no comunismo..Só graças a este livro de José é que descobriu aquele passado da Leida de estar tanto nos campos de trabalho soviéticos como depois nos campos nazis?.S.M.: Eu não sabia nada. Desconhecia totalmente esta história. Ela nem nome verdadeiro tinha, nem o apelido era dela, era uma alcunha do partido. Descobrimos que o nome de família era Blumthal com este livro. Eu sabia que ela era comunista, não sabia pormenores. Sabia que tinha estado em campos de concentração mas para mim era a cadeia, ela era criminosa. Ficava orgulhoso se tivesse um criminoso na sua família?.Mas agora já tem uma visão mais justa da sua avó?.S.M.: Eu estive sempre contra que José fizesse essa investigação e isto saísse para a rua porque para mim isto era de alguma maneira uma vergonha. Ninguém quer mostrar roupa suja da sua própria família. Preferia esquecer..Mas, ao mesmo tempo, é uma coisa que não é exclusiva da sua família, é transversal à sociedade do seu país e das outras antigas repúblicas soviéticas..S.M.: Sim, porque a história sempre foi dividida porque é um país pequeno que andava de mão em mão e as pessoas tinham de sobreviver de alguma maneira entre estas ideologias. De um lado e do outro..José conta no livro que a Estónia esteve muito tempo dominada pelos alemães e depois pelo império russo, têm aquele pequeno período de independência entre as duas guerras mundiais e a seguir é anexada pela União Soviética. É quase um fenómeno haver uma nação estónia com este gigante russo ao lado?.J.M.: É. Este é um caso típico de pequenos povos que resistem a tudo e a todos fazendo das tripas coração. Os estónios começam a sentir-se como nação na época do romantismo, em meados do século XIX, quando aparece uma intelectualidade que muitas vezes nem sequer é estónia, é alemã, mas, como vive na Estónia, tenta descobrir a cultura antiga estónia, começa a escrever em estónio, cria a literatura estónia, aparece a epopeia dos estónios. A partir daí há um movimento muito forte de tentar salvar aquele pequeno povo..Mas, como se vê no livro, os próprios estónios estão divididos. Há claramente estónios que são comunistas e que aderem à revolução russa, aliás nota-se nos familiares da Siiri, que vivem até dos dois lados da fronteira..J.M.: Aconteceu o que acontece em qualquer sociedade onde existe uma convulsão tão forte como foi a revolução de outubro em 1917. A Estónia fazia parte de um império e o império dividiu-se. Havia os adeptos do comunismo. Nomeadamente muitos dos comunistas estónios aderem ao partido comunista e apoiam-no porque o partido promete a independência a esse e outros países..Ser comunista nessa altura não era ser imperialista russo, era a ideologia....J.M.: Por um lado, a determinada altura, podia ser isso, mas rapidamente se vê que Lenine, quando deu a independência aos três países bálticos e à Finlândia, logo a seguir, durante a guerra civil, tratou de os trazer de volta e aí os comunistas bálticos funcionam já como agentes de Moscovo. Como se vê no livro, a maioria das personagens trabalham para Moscovo: recebem armas, literatura e dinheiro de Moscovo, ou seja, fazem aquilo que é a revolução mundial..Nunca há na história a tentação de os estónios aderirem a uma grande Finlândia, a irmã linguística?.J.M.: Eles têm o mar a dividi-los. Se tivessem fronteiras perto uma da outra talvez isso tivesse acontecido. Claro que há uma separação clara dentro da sociedade estónia, a maioria apoiava claramente a independência, e aqui devo sublinhar que a comunidade russa que vivia na Estónia nessa altura apoiava a independência da Estónia. Alguns até participaram nessa guerra contra a chamada Rússia soviética. Depois a sociedade estónia passou a ficar irremediavelmente dividida entre aqueles que votavam pela reintegração da Estónia na União Soviética e os que lutavam pela independência. Durante a II Guerra Mundial aparece ainda um terceiro fator: a Estónia vê-se invadida ora por nazis ora por soviéticos e as famílias estónias andavam ali no meio a tentar sobreviver. O mais trágico é que numa família o irmão podia ser vermelho, comunista, o outro irmão podia ser nacionalista e o terceiro irmão podia combater nas tropas nazis, porque os nazis chegaram à Estónia e começaram a recrutar. Os soviéticos tinham feito o mesmo quando lá chegaram. Dentro das próprias famílias existiram muito esses conflitos e esses conflitos deixaram de ser importantes depois da independência da Estónia, em 1989, em que as pessoas podem realmente optar por aquilo que querem..Siiri, essas feridas e essas divisões na sua família hoje já desapareceram?.S.M.: Não, ainda estão bem vivas. Passou pouco tempo e estas feridas não se curam assim..Mas quando diz que as feridas continuam é porque as pessoas que escolheram o lado errado da história também sentem necessidade de justificar o que fizeram?.S.M.: Mas agora a história inverteu-se. Estamos a falar de um curto período de 40 anos da Estónia na União Soviética. O que colheu a minha avó que era comunista? Zero ou ainda menos do que zero. Não colheu nada. Foi torturada por um sistema e por outro, viveu uma vida não digo humilde, digo uma vida inútil em todos os sentidos..Tudo para ter uma pequena reforma e um apartamento do Estado no fim da vida?.S.M.: Nem nada. Nem dignidade nem ideias. A única coisa que tinha era estar viva..Hoje já não se fala tanto dessa divisão entre os estónios mas mais da divisão entre os estónios e os que falam a língua russa na Estónia. Está otimista com o seu país, que agora faz parte da UE e da NATO?.S.M.: Gostaria que tudo corresse bem na Estónia. Esses problemas são vistos de maneira diferente do que são vistos lá..Está a falar que as divisões entre os de origem russa e os outros persistem, mesmo passados tantos anos da independência?.S.M.: Persistem, mas não persistem como guerra. Temos aqui em Portugal comunidades que não interagem entre elas e vivem cada um nas suas vidas. Primeiro posso falar de diferenças de classes portuguesas, que têm vidas diferentes, ou também no sentido de nações. Por exemplo, os ciganos vivem uma vida e o resto dos portugueses outra vida..No Báltico, essas divisões têm uma envolvência geopolítica diferente. A construção dessa nação estónia que engloba toda a gente ainda é um longo caminho a fazer?.S.M.: É um longo caminho, mas muitos jovens da minoria russa adaptaram-se e não há problema. Falam estónio, estão contentes de estar na Europa, muito mais contentes de estar na Europa do que na Estónia. É preciso conciliação, é preciso que as pessoas não choquem umas com as outras, é possível viver lado a lado e não ter nenhuma ideia política conjunta. Eu e o José não temos e estamos casados há 36 anos. E eu acho que em qualquer sociedade isto também é possível. Não chocar, deixar cada um viver como quiser e também perdoar algumas coisas..Foi o livro mais difícil que teve de escrever?.J.M.: Foi terrível. À medida que vais estudando encontras coisas absolutamente tenebrosas..Deixou de ser uma coisa teórica e passou a ser de família?.J.M.: No livro coloco uma questão. O que é que na realidade distinguia o comunismo do nazismo? Aquelas pessoas que passaram pelos campos de concentração de ambos os lados, o que é que eles pensavam? Doeu-me escrever este livro e foram os meus filhos que me ajudaram a convencer a Siiri a deixar-me escrever. É um livro muito atual porque estas mesmas utopias negras estão a levantar a cabeça outra vez no século XXI. Parece que as pessoas não querem dar conta, mas a história quer repetir-se. E, no que diz respeito à Estónia e à sua comunidade, na avaliação da sua atitude tem de se ter em conta a ameaça constante da Rússia. É que na Rússia muita gente continua a sonhar em voltar a ocupar todos aqueles territórios que pertenceram à União Soviética e muitas vezes é esse tipo de ideologia que faz que muitos dos russos vivam à parte. Mas não houve refugiados russos que fugiram para a Rússia. Eles não querem ir porque, estando na Estónia e mesmo não tendo passaporte de cidadãos, eles fazem parte da UE, podem viajar e trabalhar onde quiserem na Europa. A livre circulação é o que faz que muitos continuem. A geração mais jovem já fala estónio, embora seja uma das línguas mais difíceis da Europa. Eu não consegui aprender.