Num Conselho Europeu extraordinário, que começou no domingo e só acabou na terça-feira, os chefes do Estado e do governo da União Europeia (UE) decidiram quem vai ocupar os cargos mais importantes nos próximos anos: de presidente da Comissão Europeia, do Banco Central Europeu, do Conselho Europeu e de alto representante da UE para a Política Externa..No primeiro, a ministra da Defesa alemã, Ursula von der Leyen, deverá suceder ao luxemburguês Jean-Claude Juncker. No segundo, a francesa Christine Lagarde, atual diretora-geral do FMI, irá substituir o italiano Mario Draghi. No terceiro, o primeiro-ministro cessante belga, Charles Michel, receberá o testemunho do polaco Donald Tusk. E no último o ministro dos Negócios Estrangeiros espanhol Josep Borrell sucederá à italiana Federica Mogherini..Os líderes europeus mataram, assim, o chamado processo do Spitzenkandidat, enfraquecendo o Parlamento Europeu. Mas é este que tem a palavra final e se os eurodeputados quiserem tudo pode voltar à estaca zero, pelo menos no que à presidência e à composição da próxima Comissão Europeia diz respeito. O resultado das negociações sobre os cargos europeus e o estado a que a Europa chegou num descodificador..A morte do processo do Spitzenkandidat.Na UE, os líderes sempre se habituaram a negociar tudo nos bastidores ou nos corredores. Foi assim que, em 2004, apareceu do nada o nome de Durão Barroso, então primeiro-ministro português, para presidente da Comissão Europeia. Entretanto, com o Tratado de Lisboa, tentou-se reforçar os poderes do Parlamento Europeu, instituição europeia cujos deputados são escolhidos de forma direta através de eleições realizadas especialmente para o efeito. Esse tratado diz que a escolha do presidente da Comissão deve refletir os resultados das eleições europeias..Assim, em 2014, os vários grupos políticos europeus apresentaram candidatos ao cargo de líder da Comissão. Estes realizaram debates e, depois das europeias, foi para presidente o candidato do grupo político mais votado, ou seja, o ex-primeiro-ministro luxemburguês Jean-Claude Juncker do Partido Popular Europeu. Em 2019 o processo repetiu-se. Os vários grupos apresentaram os seus candidatos ao Berlaymont, houve debates entre eles. O PPE ganhou, mas ficou aquém das vitórias de outros tempos e o hemiciclo que resultou destas europeias é o mais fragmentado de sempre..Vários líderes europeus, que acabaram por levar a sua avante, argumentavam que os primeiros-ministros e os presidentes dos países também foram eleitos e têm tanta legitimidade como o PE para escolher o líder da Comissão. E assim se chegou ao dia 2 de julho de 2019, a data em que os líderes mataram o processo de Spitzenkandidat, ao escolher para presidente da Comissão Ursula von der Leyen, alemã, ministra da Defesa da Grande Coligação de Angela Merkel. O seu nome não estava entre os dos candidatos apresentados a priori pelos grupos políticos europeus. Surgiu do nada. Como o de Barroso em 2004. É o regresso da Europa aos velhos métodos de decisão..O "acordo de Osaka" que incendiou Bruxelas.No sábado à tarde começaram a circular os rumores sobre um acordo de princípio que permitiria ainda salvar o processo do Sputzenkandidat e pelo menos um dos candidatos dos grupos políticos, o dos Socialistas, o holandês Frans Timmermans. O acordo de princípio teria sido falado entre a chanceler alemã, Angela Merkel, e o presidente francês, Emmanuel Macron, à margem da cimeira do G20, que decorreu durante o fim de semana, em Osaka, no Japão..Assim, ficando Timmermans, ex-ministro dos Negócios Estrangeiros com a presidência da Comissão, o candidato do Partido Popular Europeu, o alemão bávaro Manfred Weber, ficaria com a presidência do Parlamento Europeu. A troco de deixar cair Weber, que era contestado por falta de currículo e que Merkel ficou a defender praticamente sozinha, a Alemanha poderia voltar a ambicionar ficar com a presidência do Banco Central Europeu para Jens Weidmann. Os liberais, terceiro grupo do PE graças à absorção dos deputados do La République en Marche de Macron, ficaria com a presidência do Conselho..O "acordo de Osaka" embateu, porém, numa oposição feroz. Irlanda, Croácia e Letónia juntaram-se aos países do chamado grupo de Visegrado (Hungria, Polónia, República Checa e Eslováquia) para contestar Timmermans. No domingo, em carta dirigida ao presidente do PPE, o primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán, avisou: "O apoio do PPE [a Timmermans para a presidência da Comissão] será uma coisa muito séria, um erro histórico até. Significaria que um partido político, que ganhou as eleições, abriria mão de um cargo pelo qual lutou.".O governante populista de direita húngaro, ideólogo da democracia iliberal, prosseguiu na missiva: "Em primeiro lugar, acima de tudo, isso é humilhante. Em segundo, isso mina completamente a nossa autoridade e dignidade a nível mundial na política internacional. Em terceiro, isso será um revés muito sério para o Partido Popular Europeu aos olhos dos seus eleitores.".O líder do Fidesz, atualmente suspenso do PPE, sabe que o seu partido é cortejado pelo grupo político de Matteo Salvini e Marine Le Pen, entre outros, no novo Parlamento Europeu, e indicou que, depois das eleições europeias, decidiria se o seu partido saía ou ficava no PPE. A linha vermelha que traçou, como agora reforçou, foi a de um apoio dos conservadores aos socialistas. O Fidesz é o terceiro maior partido do PPE, a seguir à alemã CDU e aos franceses Les Républicains. O ex-primeiro-ministro italiano Silvio Berlusconi, eurodeputado pelo Força Itália, assumiu mesmo antes das europeias que a sua principal tarefa será convencer Orbán a não tirar o Fidesz do PPE..E, assim, a ideia de Timmermans na Comissão caiu. E o grupo de Visegrado cantou vitória. "Na sua unidade, o grupo de Visegrado demonstrou mais uma vez a sua crescente força e influência sobre a direção da UE. Depois de derrotarem Weber, os quatro países eliminaram Timmermans e puseram em cima da mesa um pacote que foi aceite por um número crescente de países membros: o grupo de Visegrado apoia Ursula von der Leyen como a próxima presidente da Comissão", escreveu o porta-voz do governo húngaro, Zoltan Kovacs, no Twitter..Timmermans e Margrethe Vestager, candidata dos liberais à presidência da Comissão, terão agora de se contentar com lugares de vice-presidentes na futura Comissão. O socialista holandês, além de ser uma espécie de rei do sound bite, é conhecido pela sua intransigência em relação aos países que mais têm posto em risco ultimamente os valores da UE e as regras do Estado de direito, Hungria e Polónia à cabeça..Os parceiros de coligação que embaraçam Merkel.A chanceler alemã, que muitos têm dado como acabada politicamente, voltou a conseguir uma vitória ao assegurar a nomeação de Ursula von der Leyen para a presidência da Comissão. Durante muito tempo apontada como possível sucessora de Angela Merkel, a ministra da Defesa alemã foi o coelho que saiu da cartola neste Conselho Europeu. Falava-se de outras mulheres para o cargo mas não dela..Para o seu lugar no governo de Grande Coligação alemão deverá ir agora Annegret Kramp-Karrenbauer (AKK), que sucedeu a Merkel o ano passado como líder da CDU. Caída em desgraça, pela má reação que teve aos maus resultados eleitorais, a nível regional e europeu,tendo mesmo chegado a sugerir censurar youtubers, AKK poderá ter agora uma nova oportunidade para mostrar o que vale..Apesar de Merkel ter defendido até (quase) ao fim a candidatura de Manfred Weber, a verdade é que Ursula é membro da CDU e ele é membro da CSU. A congénere bávara do partido de Merkel, em pânico com a subida da AfD (extrema-direita), tornou-se um elemento de pressão para a chanceler, tendo o seu ex-líder e atual ministro do Interior alemão, Horst Seehofer, exercido vários tipos de chantagem sobre a chanceler a propósito do dossiê dos refugiados..Outra dor de cabeça de Merkel na Grande Coligação é o SPD, que depois da demissão de Andrea Nahles, devido aos maus resultados nas europeias, está agora nas mãos de uma liderança tripartida interina. O seu ex-líder, Martin Schulz, regressou brevemente aos noticiários na terça-feira com o seguinte tweet: "Uma vitória de Orbán e companhia. Eles travaram Timmermans, que defende o Estado de direito. Os chefes do governo estão a fazer alguma coisa, o processo principal para escolha dos candidatos está morto. Von der #Leynen é a nossa ministra mais fraca. Pelos vistos isso é suficiente para ser presidente da Comissão.".Devido às criticas dos sociais-democratas - e conforme determina o acordo de Grande Coligação -, Merkel teve de se abster na votação do Conselho Europeu. Votação essa que deu a presidência da Comissão à Alemanha. Embaraços atrás de embaraços é o que a chanceler tem sofrido com este seu quarto e último executivo. Mas, já habituada, enfrenta tudo sempre de forma pragmática..Não é, porém, inédita a oposição de um país a um candidato desse próprio país. Donald Tusk, por exemplo, foi eleito para um segundo mandato como presidente do Conselho Europeu com o veto do seu próprio país, a Polónia. Isto porque ele é de centro-direita liberal e o partido do governo, Lei e Justiça, é altamente conservador e crítico da UE..O interesse nacional falou mais alto para Macron.Não é segredo para ninguém - e foi falado durante meses na imprensa - que quem o presidente francês queria ver no lugar de Juncker no Berlaymont é o atual negociador chefe para o Brexit, Michel Barnier. Desde muito cedo, Macron deu a entender que não tencionava respeitar o processo do Spitzenkandidat e que não queria Weber na Comissão. Começou então a fazer contactos no sentido de criar uma aliança de progressistas europeus em face da onda de nacionalistas e eurocéticos, que tal como se adivinhava tiveram ganhos importantes de lugares no novo Parlamento. Essa aliança, uma espécie de geringonça, entre socialistas, liberais, centristas - e até mesmo verdes - serviria para negociar e repartir os cargos da UE. E também para negociar dossiês importantes durante a legislatura de 2019-2024 na eurocâmara..Desta joint venture, com mensagens de apoio e até reuniões, faziam parte Macron, os primeiros-ministros da Holanda, Mark Rutte, da Bélgica, Charles Michel, de Espanha, Pedro Sánchez, de Portugal, António Costa. Com a oposição feroz à solução Timmermans, Macron teve de deixar o interesse nacional de França passar à frente do compromisso progressista. Ao ver a liderança da Comissão ir para a alemã Ursula von der Leyen, quis a presidência do BCE para Christine Lagarde. Tanto uma como a outra têm visto o seu currículo alvo de forte escrutínio nos últimos dias, com os media europeus a sublinhar que a primeira é acusada de não saber gerir a Defesa na Alemanha e que a segunda chegou a estar acusada de corrupção num caso que remonta ao tempo em que era ministra das Finanças de Nicolas Sarkozy..Do governo francês, Lagarde saiu para diretora-geral do FMI, para substituir outro francês, Dominique Strauss-Khan, protagonista de um escândalo mundial ao ser detido pela polícia norte-americana sob acusação de abusos sexuais contra uma empregada de limpeza do hotel Sofitel em Nova Iorque, onde estava hospedado, em 2011. A primeira mulher naquele cargo, Lagarde, agora será também a primeira mulher na liderança do BCE, procurando a sua nomeação também tranquilizar os países que estavam mais receosos de políticas ortodoxas que poderiam vir de um eventual líder alemão. A Itália dos eurocéticos Matteo Salvini e Luigi di Maio era dos países mais reticentes..Assim, com Ursula na Comissão e Lagarde no BCE, o eixo franco-alemão ficou com o motor político e monetário da UE, mostrando que quando é preciso defender o interesse nacional, esse eixo de onde nasceu o que é hoje a UE ainda está de boa saúde. O interesse nacional falou mais alto do que a tal aliança de progressistas europeus. Os liberais ficaram com o presidência do Conselho, sim, mas os socialistas apenas com o cargo de alto representante da UE, que já detinham, mais a presidência do Parlamento durante metade da legislatura, ou seja, dois anos e meio..A Bélgica, apesar de a nível nacional ser um desastre na formação de coligações de governo, surge como um país credível, pois, em três presidentes do Conselho Europeu, Charles Michel é já o segundo. O primeiro foi Herman Van Rompuy. Espanha, à boleia do crescimento nas europeias do PSOE de Sánchez, ficou com a chefia da diplomacia para Josep Borrell. Ex-presidente do Parlamento Europeu, catalão, de 72 anos, Borrell é ministro dos Estrangeiros de Sánchez. O El Mundo questionava-se nesta quarta-feira se este é o cargo mais adequado para o catalão, dadas as constantes viagens de avião, mas sublinhava também o estilo pouco diplomático do espanhol e o seu carácter vulcânico e língua afiada. Na presidência do Parlamento fica, nesta primeira parte, o italiano David Sassoli, dos socialistas..A disponibilidade de Sánchez para negociar a nível europeu está limitada pela crise política interna em Espanha. Vencedor das legislativas antecipadas de 28 de abril, depois de ter sucedido a Mariano Rajoy através de moção de censura, o líder do PSOE ainda não conseguiu formar governo e vai ao debate de investidura, a 22 de julho, sem certeza sobre os apoios que tem. Do outro lado da fronteira, em Portugal, António Costa admitiu que foi convidado para entrar na guerra dos tronos europeia, mas que se mostrou indisponível, por estar comprometido com as eleições de 6 de outubro. Talvez o seu nome não tivesse criado tantos anticorpos como o de Timmermans. Por exemplo.."É sabido que sim", respondeu sucintamente o primeiro-ministro em Bruxelas, ao ser questionado sobre se teria sido convidado para desempenhar um dos cargos incluídos no "pacote" desta terça-feira fechado pelo Conselho Europeu. Escusando-se a entrar em pormenores aos jornalistas, António Costa, citado pela Lusa, recordou que o seu compromisso é "com os portugueses, com Portugal e em Portugal nos próximos anos, exclusivamente". E reforçou: "Já disse o que tinha a dizer várias vezes sobre essa matéria. Não tenciono desertar de Portugal. Estou muito empenhado em continuar a fazer aquilo que tenho vindo a fazer, como aliás está provado.".O que pode ainda fazer o Parlamento Europeu.Ursula von der Leyen foi nesta quarta-feira a Estrasburgo numa tentativa de acalmar o Parlamento Europeu em relação à sua escolha para presidente da Comissão..Isto porque, para chegar de facto ao Berlaymont, tem de ser aprovada pelo hemiciclo. E há muitos eurodeputados desagradados pela forma como o Conselho ultrapassou o Parlamento e matou o processo do Spitzenkandidat..Além da alemã, que entra em funções a 1 de novembro se for aprovada, na sessão plenária do PE de 15 a 18 de julho têm de ser aprovados pelos eurodeputados todos os membros da Comissão..No passado, o Parlamento já rejeitou um comissário. Em 2004, os eurodeputados travaram a nomeação do italiano Rocco Buttiglione para comissário da Justiça, Liberdade e Segurança por causa das suas opiniões polémicas acerca da homossexualidade. Acabou por ser substituído por Franco Frattini..Visivelmente desagradado com o resultado do Conselho Europeu extraordinário, o primeiro-ministro português, António Costa, disse, aos jornalistas, em Bruxelas: "Espero que o Conselho não tenha subavaliado a importância do Parlamento Europeu e da sua capacidade de decisão. (...) Mas, enfim, veremos, a partir de agora o processo segue noutra instância e vamos aguardar", acrescentou, deixando entender que "a solução possível" pode não ser plenamente satisfatória.."Se o Parlamento Europeu rejeitar as propostas", o Conselho "terá de voltar a pronunciar-se, necessariamente", vincou o chefe do governo português, que durante três semanas foi o líder das negociações, partilhando a representação dos governos socialistas com o presidente do governo espanhol..Também a líder do grupo político Socialistas e Democratas, a espanhola basca Iratxe García, afirmou: "Esta proposta é extremamente dececionante para nós. O nosso grupo permaneceu firme na defesa da democracia europeia e do processo do Spitzenkandidat, que não queremos que morra. É inaceitável que governos populistas representados no Conselho decidam descartar aquele que é o melhor candidato só porque ele se levantou em defesa do Estado de direito e dos nossos valores comuns europeus."