Emmanuel e Brigitte Macron estão no centro da imagem. Ele de fato azul, ela de vestido preto, dançam, entre dezenas de outras pessoas - muitas das quais filmam a cena com os telemóveis. A música que se ouve é arménia. Ao lado do presidente francês está uma mesa posta para um jantar oficial, com copos de vinho. Macron bate palmas e eleva os braços na dança..No dia 17 de novembro de 2018, precisamente no dia da primeira manifestação de protesto dos coletes amarelos, que levou 300 mil pessoas às ruas, o vídeo da dança foi publicado numa página de Facebook. A autora, que assina Pbt Pat, escreveu um comentário: "Enquanto a França sofre". Dois dias depois, a 19 de novembro, um outro utilizador da mesma rede social, Yann Juarez, partilhou o mesmo vídeo. E acrescentou: "Há 4 dias (partilhem depressa, ele vai desaparecer rapidamente).".xvsdfs Infogram.Até ao dia 6 de março, quando terminou a análise da ONG Avaaz sobre a difusão de mentiras nas redes sociais dos coletes amarelos, estas duas versões da dança de Macron tinham atingido mais de dez milhões de visualizações. Foram partilhadas quase 400 mil vezes. É uma das cem fake news detetadas pelo estudo, a circular nas redes sociais afetas ao protesto dos coletes amarelos. O alcance desta operação de desinformação foi considerável, revela o relatório agora divulgado: as mentiras foram vistas mais de 105 milhões de vezes..Este deve ser o vídeo mais popular que o ministro arménio da Saúde, Arsen Torosyan, alguma vez filmou. A sua popularidade não se deve, contudo, a nenhum talento especial do autor - nem, aliás, dos franceses que tentavam, timidamente, ensaiar passos de dança arménia. Foi a utilização política de uma informação, falsa, que levou este vídeo a quase um terço dos utilizadores franceses do Facebook (há 35 milhões de utilizadores regulares desta rede social, em França). A mentira foi detetada a tempo. No dia 20 de novembro, o jornal Les Observateurs publicou a informação verificada: o vídeo fora gravado no dia 11 de outubro, em Erevan, na Arménia, durante um jantar comemorativo da cimeira da Organização Internacional da Francofonia. Ou seja, mais de um mês antes da primeira manifestação dos coletes amarelos..Agressão em Madrid, fake news em Paris.Esta foi apenas uma das cem mentiras analisadas pela equipa de investigadores de dados e jornalistas de investigação que fizeram o estudo revelado agora pela Avaaz. "A pesquisa analisou histórias publicadas nas redes sociais ao longo de cinco meses - entre novembro de 2018 e março de 2019 -, principalmente no Facebook, onde a maioria da interação dos coletes amarelos nas redes sociais teve lugar. Esta pesquisa analisou cem conhecidas notícias falsas que circularam nas páginas afetas ao movimento dos coletes amarelos, todas elas verificadas por jornais franceses e internacionais. As histórias selecionadas são maliciosas, inventadas, propositadamente enganosas ou factualmente incorretas.".Olhando para os temas escolhidos pelos difusores de fake news, o vídeo de Macron insere-se naquele que é o mais popular: as histórias "antissistema". Há também desinformação bastante sobre outros assuntos, como a imigração (10%), as acusações de "censura" (14%), os falsos "apoios" ao movimento (19%) e a violência policial (27%)..6_10 Infogram.Um apoiante dos coletes amarelos partilhou uma coleção de imagens de pessoas, identificando-as como manifestantes do protesto francês, que teriam sido vítimas de brutalidade policial francesa. "Os media e o governo de Macron ocultaram as imagens de manifestantes pacíficos espancados pelo CRS [corpo da Polícia Nacional Francesa]. O post rapidamente conseguiu mais de 136 mil partilhas e mais de 3,5 milhões de visualizações. Analisadas, uma a uma, pelos media, as fotos, verificou-se, tinham sido tiradas em diferentes protestos, cidades, países e acontecimentos em todo o mundo..A imagem de uma jovem mulher que sangrava da face, por exemplo, fora tirada em Madrid, Espanha, no dia 11 de julho de 2012, durante um protesto de mineiros. É uma foto da agência Getty. A foto da mulher mais velha, sangrando da testa, foi tirada durante um protesto na Catalunha em 11 de setembro de 2017..A conspiração: substituir europeus por migrantes.Algumas destas fake news são tão improváveis que quase provocam um sorriso irónico, vistas agora. Um homem chamado Romeo Piacquaddio gravou um vídeo, no início de dezembro de 2018, descrevendo uma mensagem extremamente importante que recebeu no seu telefone. Ouve-se então o áudio de uma mulher, não identificada, alertando para uma conspiração. Macron iria, garantia a voz, "vender a França assinando o pacto de migração da ONU em 10 de dezembro". Após a assinatura do tratado, prosseguia a narradora, Macron renunciaria à Presidência da República e acusaria o movimento dos coletes amarelos de ter provocado a sua queda..Este vídeo foi partilhado 108 mil vezes e alcançou mais de 3,1 milhões de visualizações até ao último dia do estudo, 6 de março de 2019. A desinformação sobre o Pacto das Migrações da ONU, assinado em Marraquexe, foi um dos temas mais presentes no Facebook dos coletes amarelos. Chegou mesmo a ser importado pelos promotores do protesto fracassado em Portugal..No dia 8 de dezembro de 2018, uma carta supostamente escrita pelo ator francês Gérard Lanvin criticava o presidente Macron e o seu governo, os funcionários públicos e todos aqueles que "desde o nascimento até à morte vivem de fundos públicos, desfrutam de benefícios especiais de segurança social e estão isentos de impostos, pelo que devem pelo menos ter a decência de não falar de igualdade". Em menos de 48 horas, esta alegada "carta" foi partilhada mais de 251 mil vezes, com mais de 6,4 milhões de visualizações..O problema, como os leitores já terão adivinhado, é que o ator Gérard Lanvin não escreveu aquela carta (em Portugal há dezenas de "cartas" destas, falsas, a circular nas redes, atribuídas a Miguel Sousa Tavares, Adriano Moreira, Clara Ferreira Alves, entre outras vítimas do truque). O ator tinha escrito, isso sim, uma outra, que publicou em 2013, dirigida ao então presidente François Hollande, sobre outro assunto completamente diferente: um imposto para os mais ricos.."Emergência antes das eleições".A Avaaz é uma ONG criada em 2007, nos EUA, pelos movimentos Res Publica e MoveOn.org. que pretende mobilizar, online, os cidadãos do mundo inteiro para temas como o ambiente, os direitos humanos e a corrupção. A sua campanha mais recente é contra as fake news. Chama-se Correct the Record (corrigir a informação) e pretende obrigar as grandes plataformas, como o Facebook, a seguir as regras que se aplicam aos media tradicionais: sempre que uma informação falsa é difundida nas redes sociais, elas têm a obrigação legal de repor a verdade..Para esta ONG, a Europa está particularmente vulnerável aos efeitos da desinformação, em vésperas de eleições para o Parlamento Europeu. A história recente "mostra claramente que as respostas do Facebook e de outras plataformas face à desinformação na Europa são ineficazes e representam uma séria ameaça ao discurso público saudável e à estabilidade democrática, especialmente no contexto da próxima eleição para o Parlamento da UE em maio." O relatório conclui, apelando às plataformas para que "trabalhem com os verificadores de factos para dar melhor informação a todos os expostos a notícias falsas ou a conteúdo enganoso, como uma medida de emergência antes das eleições"..A metodologia deste estudo enfrentou um problema sério: o secretismo com que o Facebook gere o acesso às suas informações. "O Facebook divulga o número de visualizações de vídeos, mas para as publicações que contêm apenas texto e imagem, a plataforma exibe apenas o número de partilhas e outras interações, como gostos ou comentários", explicam os autores deste estudo. "Portanto, para estimar a audiência de conteúdo de texto e imagem, criámos uma métrica baseada nas estatísticas disponíveis publicamente dos vídeos do Facebook analisados no nosso estudo, levando em conta o número total de visualizações de vídeo e dividindo-o pelo número total de partilhas", explicam. "O Facebook reporta uma "visualização de vídeo" somente após 3 segundos, enquanto uma imagem ou texto podem ser considerados como "vistos" e ter um impacto real em menos de três segundos." É por isso que os autores consideram que a sua estimativa total, de mais de 105 milhões de visualizações de mentiras, é, no fundo, "conservadora". "A estimativa do total de visualizações neste estudo é muito provavelmente menor do que a visualização total real de todo o conteúdo e, portanto, deve ser vista como um número conservador.".O canal mais visto é russo.Numa segunda parte deste relatório, divulgado nesta semana, é analisada outra rede social, o YouTube. A conclusão é surpreendente. A estação televisiva russa RT, que no passado se chamava Russia Today, na sua emissão francesa, "é o canal mais visto em vídeos relacionados com os coletes amarelos em França e acumulou mais do dobro de visualizações (23,1 milhões) do que o Le Monde, L'Obs, France 24, Le Figaro e LeHuffPost, somados (10,9 milhões)"..Este canal foi fundado, em 2005, pela agência estatal de informação russa RIA-Novosti e tem sido, desde então, acusado por várias entidades, como os Repórteres sem Fronteiras (organização que passou a ser denominada na RT por "repórteres sem escrúpulos"), de ser uma máquina de propaganda de Vladimir Putin..Em França, o poder da RT é claro. Entre os 500 vídeos mais vistos no YouTube francês, sobre os coletes amarelos, 101 são da RT. Isso é mais do triplo do que alcançou o segundo canal mais popular, o Le Media, e é mais do que os seguintes sete todos somados. Foi um investimento bem-sucedido. Dezoito dos 20 vídeos mais vistos no canal YouTube da RT eram sobre os coletes amarelos.