"A pílula é pelo menos tão revolucionária como a eletricidade, o computador ou a internet"
Professora de Economia e investigadora no Centro de Estudos da População na Universidade de Michigan, Martha Bailey esteve em Lisboa para participar na conferência O Trabalho dá que Pensar, organizada pela Fundação Francisco Manuel dos Santos
Sentada a uma das mesas instaladas no Jardim Botânico Tropical, ali mesmo ao lado do Mosteiro dos Jerónimos, Martha Bailey fala ao DN da preocupação dos jovens americanos com o emprego, dos bons resultados de um programa social chamado Head Start e implementado nos EUA nos anos 60 no âmbito da guerra à pobreza. Mas a professora de Economia e investigadora no Centro de Estudos da População na Universidade do Michigan não podia deixar de abordar o seu estudo do impacto da pílula sobre o papel das mulheres no mercado de trabalho.
Esteve em Lisboa para uma apresentação chamada "Investir na Próximas Gerações : lições da guerra à pobreza". Por falar em novas gerações, acha que os jovens ainda se sentem discriminados no mercado de trabalho?
Eu sei que é uma grande questão na Europa, mas não sei se é tanto assim nos EUA. Temos empregos com salários baixos e temporários. Por isso não sei se estão preocupados com a discriminação. Estão preocupados em encontrar emprego. Em conseguir um emprego quando saem da faculdade.
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Sim, mas um do problemas aqui na Europa é que esses empregos precários e mal pagos se perpetuam e um curso superior já não é garantia de um bom emprego...
Nos EUA temos um grande sector dos serviços e muitos empregos a receber o ordenado mínimo nesse sector e venda a retalho que não oferecem cobertura de saúde. Ao contrário do que acontece aqui na Europa. Por isso sinto que muitos jovens americanos se sentem encurralados até certo ponto.
Dá aulas na universidade do Michigan. Foi um dos estados que nas últimas eleições deu a vitória a Donald Trump ao votar no republicano. Muito por causa da economia...
Bem, muitas pessoas ainda estão a tentar perceber porquê! E há muitas explicações diferentes. Uma dessas narrativas é que a economia na chamada Cintura de Ferro - Michigan, Detroit - fez com que esses estados fossem em peso para Donald Trump e contra Hillary Clinton...
Todos dizem que a economia americana está de boa saúde, mas essa classe média, sobretudo a classe média branca, que votou em Trump em 2016 por sentir que os progressos não lhe estavam a chegar ao bolso, continua descontente?
Essa é a parte que eu penso ser a mais complicada. Sim, os níveis de desemprego estão muito baixos, a economia está a crescer. Até é difícil arranjar alguém para vir à nossa casa quando temos um problema. Mas as pessoas queixam-se que os salários continuam baixos e sem aumentar. Os salários não sobem para a classe média e isso é algo que continua a preocupar as pessoas.
Voltando à sua apresentação, veio falar sobre um programa social dos anos 60, o Head Start e o seu impacto hoje, pode explicar as conclusões a que chegou?
Sim, tenho estudado os benefícios e os custos dos programas de apoio social. Enquanto historiadora económica, fui olhar para os programas lançadas nos anos 60, durante a guerra à pobreza. Estes programas têm provocado divisões políticas pelo menos desde os anos 80 quando alguns políticos de direita, mais conservadores, os acusaram de ser um desperdício de dinheiro, enquanto os políticos de esquerda argumentavam que estavam a ter efeitos muito positivos. Este é um dos legados desses programas. E o que fui tentar perceber com a minha investigação é quais foram os benefícios. Não só a curto prazo. Se investir nos jovens hoje, não vai ver o resultado no desemprego no ano seguinte. Pode levar até estes jovens saírem do liceu ou até saírem da faculdade para que se sintam esses efeitos. Por isso estamos a olhar para as consequências a longo prazo. Para muitos destes programas sociais, decidimos optar pela perspetiva a 50 anos. Um dos programas de que falei muito aqui em Lisboa chama-se Head Start. É um programa que visava as crianças do pré-escolar e tinha uma escala vasta . Abrangia crianças entre os três e os cinco anos. Tem financiamento público desde os anos 60. Não exige um rendimento específico, mas tende a ser dirigido às crianças mais desfavorecidas. Sobretudo porque as famílias com mais dinheiro muitas vezes enviam os filhos para escolas privadas. Fomos então olhar para os efeitos deste vasto programa com financiamento público e o que percebemos é que houve um grande aumento do número de abrangidos com acesso à educação, aumento do número dos que entraram para a faculdade, aumento das licenciaturas e dos cursos profissionais. Também percebemos que hoje têm muito menos hipóteses de viver na pobreza enquanto adultos se tiverem beneficiado de um destes programa na sua área de residência enquanto crianças. Quando analisamos os custos e benefícios, percebemos que cada dólar que investimos nos anos 60 acabou por trazer um lucro de 8%. Foi um bom investimento.
Há mais programas como esse?
Sim. Mas são difíceis de identificar. Porque financiamos uma coisa hoje mas não esperamos ver os resultados amanhã nem mesmo no ano seguinte. Leva muito tempo. Em países tão pequenos como Portugal, imagino que a amostra seja muito mais pequena, revelando resultados mais rapidamente. Mas em países grandes como os EUA, mesmo que haja grandes efeitos, é difícil detetá-los estatisticamente. Há muito desconhecimento em relação aos benefícios destes programas. E o que vim falar a Lisboa foi das provas que vão surgindo de que alguns destes programas, mesmo não sendo tão bem desenhados como os atuais, tiveram grandes efeitos. É uma mensagem muito otimista. Não sabemos que efeito os dólares que estamos a gastar agora vão ter nos próximos 50 anos e não vamos saber durante esse meio século a menos que tenhamos uma máquina do tempo. Mas se extrapolarmos do que aconteceu no passado, vamos perceber que não são só despesas, são investimentos em pessoas. Neste momento vários estados dos EUA estão a pensar implementar programas para alunos do pré-escolar baseados no modelo do Head Start. Mas tentam fazer melhor. Não são limitados pelos rendimentos. Isso é uma coisa que está em cima da da mesa em vários estados.
Uma das suas áreas de estudo são as mulheres e a forma como a pílula influenciou a carreira das mulheres. Apesar de todos os progressos, porque é que ainda há tantas desigualdades entre homens e mulheres no mercado de trabalho?
Essa é uma pergunta difícil. Estou a escrever um livro acerca disto. Chama-se A Idade da Pílula, mas é uma coisa que as pessoas me perguntam muito. Direi que ao longo da história da humanidade, as diferenças biologias entre homens e mulheres foram importantes. As mulheres, independentemente do que quisessem fazer com as suas vidas, sabiam que se quisessem ter uma relação sentimental séria, acabariam por engravidar. Tinham de casar e ter aquele homem na sua vida. E se engravidassem, provavelmente não poderiam continuar os estudos ou trabalhar. Muitos empregadores nos EUA discriminaram mulheres casadas ou grávidas. Uma das coisas que a pílula fez foi mudar o controlo que as mulheres tinham sobre este aspeto das suas vidas. Mudou tudo. Na forma como as mulheres se puderam integrar na sociedade. As mulheres que passaram a usar a pílula puderam esperar até aos 30 e muitos para engravidar. E investir na carreira antes. Isto apesar de para algumas mulheres nada ter mudado e continuarem a fazer o que as mães faziam. Hoje muita gente acha que é negativo haver uma discussão em torno das políticas de gestão da contraceção e das carreiras das mulheres. Mas eu acho que é positivo. Durante a maior parte da nossa História não houve discussão. Foi dado por adquirido que as mulheres, na maioria, não estariam no mercado de trabalho. Que estariam a trabalhar em casa. A não ser que as suas famílias fossem tão pobres que não tivessem outra opção. Hoje temos muitas escolhas. E muitas mulheres pedem aos legisladores para apoiarem essas escolhas com diferentes opções. Leis contra a discriminação de grávidas e mães, pela proteção do emprego. Isso é bom. É um problema muito moderno, agora temos de lidar com questões como o que queremos mesmo fazer. Durante a maior parte da nossa história, não tínhamos escolha. Ou eram muito más. Sempre houve mulheres que optaram por ficar de fora dos arranjos tradicionais, mas as suas vidas nem sempre foram fáceis. E eram uma exceção. Portanto, há muitas desigualdades de género, mas as mulheres podem fazer escolhas diferentes. A parte difícil é que muitas mulheres não percebem é porque não podem ser como os homens? Saiu há pouco um artigo no New York Times sobre as muitas formas de ser mulheres e a única forma de ser homem. À medida que o mundo vai mudando, nós mulheres temos mais escolhas mas para os homens as coisas continuam iguais. Muitas mulheres têm empregos que há 50 anos eram masculinos. Começamos a ver a mudança. E o que acho que vai acontecer é que vai continuar a haver discussões difíceis. Alguma desigualdade de género não é má. Mas a que é má é aquela em que as mulheres sentem que, façam o que fizerem, não conseguem quebrar os telhados de vidro. Nunca são promovidas, contratadas ou pagas de forma igual à dos seus colegas homens. É um problema nos EUA e imagino que seja um problema na Europa.
Estamos na era do #MeToo e ainda estamos a ter esta discussão sobre desigualdade. As mulheres contribuem para essa situação, exigindo mais delas próprias do que dos homens?
Concordo. Não me parece justo pormos as culpas de todas as nossas dificuldades nos homens. Ou mesmo nas gerações anteriores. Mesmo se não acho que sejam duas coisas separadas. Tenho duas filhas, de 7 e 9 anos, e a primeira coisa que nos perguntam quando estamos grávidas é "rapaz ou rapariga"? Querem saber porque define todas as formas como as crianças são tratadas mesmo ainda antes de terem nascido. É impossível achar que estas coisas não importam. É difícil perceber de que forma afetam a vida das crianças. Por isso há tanta discussão. Tantas questões que nos colocamos. Estarei a pedir demais? Estarei a ser demasiado exigente? Como reagir a estas coisas? Acho que é mais fácil para mim ver desigualdade na vida das outras mulheres do que na minha. Na minha não consigo avaliar. Serei eu? Ou estará este homem a ser injusto? Mas quando se trata de outra mulher, é muito mais claro. Quanto mais velha fico, quantas mais colegas novas tenho na universidade, mais acho que não é justo.
Quando olha para as mudanças nos últimos anos, qual a lição mais importante que transmite às suas alunas?
Para mim a grande questão é esta: houve um momento na História em que, de repente, em vez de ser a biologia a definir tudo no futuro da mulher, foi a mulher a tomar a decisão. A decidir se queria tomar um pequeno comprimido que podia adiar a maternidade, a decidir se queria adiar o casamento, a decidir quando queria engravidar. Foi revolucionário. Pelo menos tão revolucionário como a eletricidade, a internet, o computador. Estas coisas vão continuar a progredir. A pílula redefiniu totalmente a forma como as mulheres fazem as suas escolhas, como interagem com os parceiros, como se tornam mães, como lidam com os filhos... acho que essa é uma das grandes revoluções sociais que continuam a ter influência. Com todas as lutas, com o #MeToo, chegamos a uma situação em que as mulheres podem dizer que chega. Basta! Não queremos mais! Não estávamos nesse ponto há 20 anos. E se avançarmos até à geração das minhas filhas espero que haja mais movimentos que hoje nos parecem revolucionários. Não me parece que os problemas tenham desaparecido quando elas chegarem a idade adulta, mas estamos andaste progressos.
E não terem tantas mulheres como homens em locais de decisão, ainda afeta esta forma de pensar?
Sim, está estudado, a falta de diversidade afeta a forma como se pensa. Uma representação limitada gera ideias limitadas. Porque as experiências das pessoas são tão semelhantes que não geram diversidade. E é verdade. Quantas mais pessoas de raças, cores e religiões diferentes juntarmos, mais abrangente será a capacidade de uma política pública resultar.
Voltando à pobreza, apesar dos programa como aquele que estudou continua a existir. O que falta? Mais vontade política?
Não sei se precisamos que mais programas. Talvez de programas melhores. Mas nos últimos tempos, a questão nos EUA é que muitos argumentam que uma vez que estes programas não são perfeitos, não deviam ter financiamento público. Isso, do meu ponto de vista, é um erro. Estamos muito preocupados com a pobreza, com as desigualdades, com o investimento no futuro. A verdade é que nunca vamos ter provas imediatas de que estará a resultar. São precisos 40 ou 50 anos. Os políticos que exigem provas agora, só podem olhar para os resultados dos programas dos anos 60. Se pensarmos a longo prazo corremos sempre riscos, mas se usarmos a informação de forma sensata podemos tirar lições. Devemos experimentar coisas novas.
E falhar, por vezes?
Sim. É o sonho americano. Faz parte da nossa narrativa. Caímos, levantamo-nos e seguimos em frente. Mas não sei se ainda somos muito bons nisto. Não somos tão resilientes como gostaríamos de ser. Nos EUA, sobretudo para os políticos, se não tivermos provas de que um programa funciona, eles vão querer cortá-lo. A ideia é que não fazer nada é melhor do que gastar dinheiro em coisas que não funcionam ou que podem não funcionar. Este tem sido a narrativa na direita. E já fizemos coisas que não funcionaram. Mas temos de analisar caso a caso.