É em plena Alfama, na Rua do Salvador, que se encontra aquele que é considerado o sinal de trânsito mais antigo de Lisboa. É uma placa de lioz afixada na parede de um prédio entre as portas com os números 26 e 28, onde há um estreitamento da via, e que basicamente atribuía prioridade às viaturas que vinham de cima. A ordem está escrita num português de 1686 - a data em que ali foi colocada - nada fácil de decifrar. "Sua magestade ordena que os coches, seges e liteiras que rendam à portaria do convento do Salvador recuem para a mesma parte", lê, não sem dificuldade, Marina Carvalhinhos, arqueóloga do Centro de Arqueologia de Lisboa. "Isto não é um sinal de trânsito como os nossos de hoje em dia, que são todos iguais. É um sinal que está adaptado à rua e ao local em que está", comenta..Atualmente, aquele troço da Rua do Salvador é uma via pedonal, mas no início do século XVII era ponto de passagem de carruagens, coches, liteiras, seges, os transportes da época. Muito movimentada, a atual zona histórica de Lisboa era um pandemónio ao nível do trânsito. "Era uma cidade cheia de elevações, ruas estreitas, uma arquitetura do tipo medieval, com muitas reentrâncias, proeminências, muita ocupação do espaço público, nomeadamente pelas sacadas, bancos de pedra, degraus... Todos esses elementos acabavam por obstruir a via pública", contextualiza Delminda Rijo, historiadora do Centro de Estudos Olisiponenses. "Tudo isto junto, a arquitetura, as vias de circulação muito precárias, a maioria sem estarem calcetadas, contribuíram para uma cidade que estava, neste ponto de vista da circulação, caótica", diz..As discussões eram frequentes nos nós mais problemáticos, vingando a lei do mais importante ou do mais forte. "Aqui, precisamente nesta rua, houve uma contenda entre um secretário de estado que ia para despacho na zona ribeirinha, onde estava o Desembargo do Paço, e um indivíduo do mesmo estatuto social que vinha de baixo. Não houve entendimento entre quem subia e quem descia e acabaram por se confrontar fisicamente", conta a historiadora, especialista em demografia histórica. Um dos intervenientes levou uma cutilada e, achando que estava às portas da morte, dirigiu-se a uma barbearia para receber a extrema unção. "Não morreu, recuperou, mas o episódio foi tão grave que ambos ficaram presos durante oito dias nas suas respetivas casas até se apurarem os factos", resume..Era preciso fazer alguma coisa para acabar com a violência provocada pelo trânsito. "Primeiro, a cidade, do ponto de vista urbanístico, decidiu, no início do século XVII, regularizar a construção de novas casas, as obras... Sempre que havia uma intervenção urbanística decidiu-se retirar elementos da via pública para que o trânsito fosse mais fluído", partilha Delminda Rijo. "Tudo o que era sacadas, bancos de pedra, janelas de aranha, muito típicas, medievais, que tinham estruturas de ferro que saíam para a rua... tudo isso foi retirado do espaço público para que o trânsito fluísse mais facilmente", concretiza..Além disso, o rei D. Pedro II legislou a circulação num decreto de outubro de 1686: "Por esta lei geral mando que, encontrando-se em ladeiras coches, seges ou liteiras, aonde, pela estreiteza da rua, seja preciso recuar algum delles, os que forem subindo sejam os que recuem, pela maior dificuldade que tem os que vem baixando". Ainda assim, estipulou que "naquella mesma parte em uma das paredes se ponha padrão, em que estará escripto com clareza quem deve recuar". E foi na sequência deste decreto que foram identificados 24 locais onde foram colocadas placas. Alfama era a zona mais caótica, tendo lá sido afixadas 11. As restantes foram distribuídas pela Mouraria, Baixa, Limoeiro e Aljube..Restam atualmente três placas, acreditando os especialistas que esta da Rua do Salvador é a única que se encontra no local original. Está, segundo a arqueóloga Marina Carvalhinhos, "um pouco suja e com ligeiras fissuras e lacunas", havendo a intenção de conservá-la e contextualizá-la. "O que nós queríamos era que quem passasse aqui soubesse o que estava a ler, a tradução do que está aqui, e uma pequena contextualização histórica", diz..As outras duas placas resistentes estão naquele mesmo bairro. Uma na parede do número 48 da Calçada de São Vicente - a historiadora Delminda Rijo crê que terá sido colocada num outro local daquela rua. E a outra no interior de um prédio no número 88 da Rua das Escolas Gerais, vinda de um edifício que foi demolido.."Alguns dos sinais eram muito específicos, indicando o local problemático e inclusivé o nome do dono da casa onde seria afixado", explica Delminda Rijo. Não é o caso deste da Rua do Salvador, mas acontece nos outros dois, um com referência ao desembargador Gaspar Mouzinho de Albuquerque e outro ao desembargador Gonçalo Barbosa de Meireles Freire..No mesmo despacho já citado, o rei Dom Pedro II estipulava penalizações para os incumpridores. "A mais grave surgia quando se puxasse de uma espada. Isso era o extremo que podia acontecer. Mas a penalização também era muito grave: dois mil cruzados, uma pequena fortuna, e cinco anos de degredo para o Brasil", diz a historiadora, que não acredita que o objetivo do rei de "haver entre todos paz e boa concordia", tenha resultado plenamente. "Continuaram a existir problemas. Creio que menos. Mas concerteza não terminaram... Nem nos dias de hoje"..sofia.fonseca@vdigital.pt