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25 outubro 2021 às 05h00

Por terras de Odemira, um roteiro artístico e espiritual

Nascidos e criados no Alentejo, os historiadores José António Falcão e António Martins Quaresma acabam de publicar a obra Odemira, Património, Religião, Sociedade e Território. São três volumes que resultam de uma "viagem" de mais de 15 anos.

Ricardo, Coração de Leão é nome bem conhecido dos muitos seguidores das aventuras de Robin dos Bosques. Rei de Inglaterra (também conhecido por bom rei Ricardo, em contraste com o seu irmão, o príncipe João, execrado pelo povo), tinha mais alma de cruzado do que estadista e, no ano de 1190, a caminho da Terra Santa, onde ia em peregrinação, terá feito aguada no rio Mira, como ficou registado por um dos seus homens mais dados à crónica. Esta é uma das muitas revelações feitas na obra em três volumes, Património, Religião, Sociedade e Território do concelho de Odemira, da autoria dos historiadores José António Falcão e António Martins Quaresma, em edição conjunta da Câmara Municipal de Odemira e da editora Pedra Angular.

Ao longo de mais de 15 anos, os dois autores andaram por este concelho do Baixo Alentejo (o mais extenso do país, recorde-se) em trabalho de investigação, que, como dizem os próprios, não se ficou pelas salas de arquivo: "A recolha exigiu um contacto próximo com a sociedade local, com os detentores de uma cultura popular baseada fundamentalmente na oralidade, em geral os "mais velhos", cultura que os tempos em que vivemos ameaçam desprezar e, até, obliterar. Essa recolha foi favorecida por anteriores contactos com o território e a sociedade, que nos abriram algumas portas. De resto, foi um trabalho de saber perguntar e saber ouvir."

O resultado, como sublinha José Mattoso no prefácio, é um manancial único de informação: "Basta abrir uma página ao acaso para descobrir muitos nomes de pessoas, quantias exactas em dinheiro, datas (...) Olhando de perto, dir-se-ia que quem realizou a investigação não deixou literalmente escapar nada."

Sendo o Alentejo uma região do país mais esquecida pela historiografia, nomeadamente por aquela que se ocupa da Idade Média e da consolidação da nacionalidade, José António Falcão e Martins Quaresma encontraram uma realidade diferente da do resto do território, em que a Geografia ditou as suas regras: "Os alentejanos são geralmente religiosos e respeitadores da vida espiritual, como os habitantes de outras regiões marcadas pelo peso histórico não só do Cristianismo, mas também do Judaísmo e do Islão, tendo sempre como pano de fundo um universo pagão, que nunca se extinguiu de todo entre nós."

O que muda então, em relação às Beiras ou ao Norte, por exemplo? "A terra é vasta, as distâncias longas, por vezes difíceis de vencer, sobretudo no pino do Inverno e do Verão, e a igreja "oficial" alcançou mal, sobretudo a partir do momento em que se tornou assaz normativa, os fregueses mais afastados, que ficaram amiúde entregues a uma religiosidade eivada de antigas tradições." Nos séculos XIX e XX, a combinação de um laicismo crescente, com a omnipresença da grande propriedade fundiária e as significativas clivagens sociais acentuaram ainda mais estas diferenças.

O que aqui se propõe é também uma viagem pelo rico património artístico (mas também antropológico) desta zona do Alentejo. De Vila Nova de Milfontes a Santa Clara-a-Velha não faltam vestígios de uma vida cultural e religiosa intensa, como atesta a riqueza de templos, como a Igreja paroquial de Santa Clara ou a Igreja de São Salvador de Odemira. Uma riqueza que, mesmo aos autores, alentejanos de nascimento e dedicados há décadas ao estudo da História, acabou por surpreender: "Há um património muito mais extenso e diversificado, nas suas origens, tipologias e conteúdos, do que se poderia pensar à primeira vista. Isto deixou-nos maravilhados. Não faltam obras de carácter erudito, da autoria de grandes mestres, incluindo autores de relevância nacional e, até, internacional. Há também exemplares provenientes das mais diversas partes do mundo, de África à América e à Ásia, alguns dos quais de enorme raridade, só com paralelos em grandes museus internacionais."

Ao longo da investigação, os autores encontraram mesmo verdadeiras dinastias de artistas locais que moldaram os arquétipos gerais às tradições da terra: "Trata-se de outra forma de expressar a identidade alentejana, com resultados brilhantes. Isto leva a repensar, de maneira estratégica, as relações culturais e artísticas entre o centro e as periferias. Há casos em que uma periferia se converte num centro de primeira magnitude..." A estas abordagens artísticas corresponde, em muitos casos, um pensamento próprio: "Encontrámos correntes do pensamento religioso, frequentemente alimentadas por personalidades dotadas de assinalável magnetismo, muito influentes do ponto de vista social."

Ao longo destes três volumes, estão reunidos muitos documentos escritos, iconográficos, cartográficos ou fotográficos até aqui inéditos. Ficamos a saber, como vimos, que, em romagem à Terra Santa, Ricardo, Coração de Leão e sua armada (porque, em boa verdade, um rei de Inglaterra jamais seria um romeiro isolado) aqui se detiveram, mas também que Afonso X de Castela, dito o sábio, invocou um milagre de Nossa Senhora nas suas cantigas de Santa Maria. Ouvimos lendas ancestrais, passadas de geração em geração. O segredo, dizem os autores, é a disponibilidade, humildade e solidariedade com que interpelam as fontes. "A arrogância e o preconceito são adversários irredutíveis da investigação, sobretudo nas diferentes áreas das ciências humanas e sociais."

Tópicos: história, Odemira, local