Zelensky desafia Putin para negociar frente a frente
Uma semana depois de a Rússia ter invadido a Ucrânia, quando os negociadores de ambos os países se encontraram pela segunda vez na Bielorrússia, o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, defendeu que "a única maneira de parar a guerra" é num frente a frente com o homólogo russo, Vladimir Putin. "Sente-se comigo para negociar, mas não a 30 metros", afirmou numa conferência de imprensa, em Kiev, referindo-se à longa mesa no Kremlin que foi a estrela no encontro entre Putin e o líder francês, Emmanuel Macron. "De que é que tem medo? Eu não mordo", acrescentou.
Numa reunião do Conselho de Segurança Nacional da Rússia, o presidente russo não respondeu ao desafio de Zelensky. Mas disse que nunca abandonará a convicção de que russos e ucranianos são "um povo", alegando contudo que "a forma como a batalha se está a desenvolver" mostra que a Rússia está "a lutar contra neonazis". Putin acusou ainda Kiev de usar civis (incluindo estrangeiros) como "escudos humanos", tendo observado um minuto de silêncio pelos russos mortos nos combates. Na véspera, no primeiro balanço, Moscovo admitiu a morte de 498 soldados, um número muito aquém dos quase seis mil que os ucranianos dizem ter matado.
Mais cedo, num telefonema com o presidente francês, Putin deixou claro que Moscovo não vai desistir. "A Rússia pretende continuar a luta intransigente contra militantes de grupos armados nacionalistas", afirmou. O presidente russo reiterou que os objetivos da operação militar passam pela desmilitarização da Ucrânia, de forma a garantir o seu estatuto de neutralidade no futuro. "Todas as tentativas de ganhar tempo nas negociações vão levar a mais exigências", acrescentou. Depois do telefonema, o Eliseu afirmou que Macron acredita que "o pior ainda está para vir".
Numa mensagem vídeo, Zelensky tinha dito que os ucranianos não têm nada a perder a não ser a liberdade, explicando que a Ucrânia está a receber diariamente armas dos aliados internacionais e as linhas de defesa estão a aguentar. Prova disso, argumentou, é a mudança de tática dos russos, que acreditavam que teriam uma vitória rápida através de uma incursão por terra e passaram a apostar nos ataques aéreos contra as grandes cidades. Putin negou qualquer mudança de tática na reunião do Conselho de Segurança, dizendo que tudo está a correr de acordo com o calendário previsto.
Apesar de dizer que recebe armas diariamente, Zelensky apelou na conferência de imprensa ao Ocidente para que aumente a ajuda militar , reiterando o apelo a fechar os céus aos aviões russos. "Se não têm o poder de fechar os céus, então deem-me os aviões", afirmou, deixando o aviso: "Se desaparecermos, Deus nos proteja, então a Letónia, a Lituânia e a Estónia serão as próximas". Segundo o presidente ucraniano, Putin atacará toda a Europa de Leste "até ao muro de Berlim".
Para lá das intervenções de Zelensky e Putin, os negociadores ucranianos viajaram de helicóptero até à Bielorrússia, num local junto à fronteira com a Polónia, para a segunda ronda de negociações com a Rússia. O conselheiro presidencial ucraniano, Mykhaylo Podolyak, disse que levavam três temas na bagagem: "um cessar-fogo imediato, um armistício e corredores humanitários para a retirada dos civis das cidades destruídas ou alvo de ataques constantes".
No final do encontro, tinham garantido apenas os corredores humanitários que permitirão também a entrada de bens de emergência, com um cessar-fogo temporário nessas áreas, e o compromisso para uma terceira ronda de contactos brevemente. "Ou seja, não há cessar-fogo em todos os lugares, mas apenas naqueles onde os corredores humanitários estarão localizados. Será possível um cessar-fogo durante a operação", explicou o negociador ucraniano através de mensagens no Telegram, acrescentando que a sua delegação "não obteve os resultados esperados".
Por sua vez, o líder dos negociadores russos, o ex-ministro da Cultura Vladimir Medinsky, sublinhou que as delegações chegaram a um entendimento mútuo sobre várias matérias. "As posições são absolutamente claras. Estão divididas por pontos. Em parte delas conseguimos um entendimento mútuo", indicou Medinsky. "A Rússia apela aos civis que se encontrem nesta situação [na zona de confrontos militares], se as ações militares continuarem, usem estes corredores humanitários", acrescentou.
Desde o início da invasão, mais de um milhão de ucranianos fugiram para os países vizinhos, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados. "Em apenas sete dias, um milhão de pessoas fugiram da Ucrânia, desenraizadas por esta guerra sem sentido. Trabalho em agências de refugiados há quase 40 anos e raramente vi um êxodo tão rápido quanto este", disse o alto-comissário, o italiano Filippo Grandi. Segundo a UNICEF, meio milhão de refugiados serão crianças.
A União Europeia decidiu entretanto acionar (pela primeira vez) a diretiva de proteção temporária para todos os refugiados que estão a fugir da guerra na Ucrânia. A diretiva existe desde 2001 e, assente na solidariedade entre estados-membros, prevê uma repartição equilibrada do esforço assumido pelos 27 países ao acolherem as pessoas deslocadas, não impondo, porém, uma distribuição obrigatória dos requerentes de asilo. Portugal já recebeu 672 pedidos de proteção temporária, revelou o Ministério da Administração Interna.
No terreno, ao oitavo dia de guerra, os ataques russos continuam, com pelo menos 22 mortos no ataque a uma zona residencial, incluindo escolas, da cidade de Chernihiv (120 quilómetros a nordeste de Kiev). Na direção da capital, a coluna de veículos militares russa, que alguns alegam ter mais de 60 quilómetros de comprimento, parece estar parada. De acordo com um oficial de defesa norte-americano, citado pela AFP, em causa está a falta de combustível e de alimentos - que a confirmar-se revela a má preparação de Moscovo - e a resistência ucraniana.
No sul do país, a Rússia tem feito alguns avanços, conquistando na quarta-feira à noite a cidade portuária de Kherson, no Mar Negro. Segundo o presidente da câmara da localidade de 280 mil habitantes, Igor Kolykhaev, os russos impuseram um recolher obrigatório entre as 20h00 e as 6h00 e só autorizam o máximo de duas pessoas juntas nas ruas. Só podem entrar na cidade carros com comida, medicamentos ou outros bens de primeira necessidade. O autarca pediu aos habitantes que cumpram as regras, apelando aos russos que não disparem contra os civis.
Mais a Leste, nas margens do Mar de Azov, a cidade de Mariupol (onde viviam 430 mil pessoas antes da guerra) está isolada, sem água nem eletricidade. "Destruíram as pontes, destruíram os comboios para nos impedir de levar as nossas mulheres, crianças e idosos e estão a impedir-nos de obter alimentos e provisões", acusou o autarca Vadim Boïtchenko em mensagens publicadas na rede Telegram. O mesmo responsável disse que os russos estão a querer fazer um "bloqueio", comparando com a situação de Leninegrado (atual São Petersburgo), alvo de um cerco nazi durante a II Guerra Mundial.