Cautelosamente, o atual momento Tunísia deve mais ser encarado como um "golpe de força" que como um golpe de Estado, conforme a análise do especialista do Instituto de Pesquisa e Estudo dos Mundos Árabe e Muçulmano (IREMAM) Vincent Geisser. Há mesmo quem alvitre a possibilidade de uma guerra civil, mas para já há indicadores menos maus. Porquê?.Porque houve, de facto, uma interpretação e ativação abusiva do artigo 80.º da Constituição por parte do Presidente (PR), Kais Saied, mas também há atenuantes e um contexto político-social que empurram o PR para um jogo de soma zero, o qual, ganhando, assumirá o papel do estadista providencial e de encarnação da revolução permanente. Perdendo, não passará de aprendiz de ditador..A Constituição tunisina merece duas notas que são bons indicadores de que alguma "sabedoria republicana" prevalecerá. Em primeiro lugar, mas pouco conhecido em Portugal, a nova Constituição da Tunísia tem muito de inspiração portuguesa, já que deram uma atenção especial aos processos de transição português e espanhol durante o pós-revolução. Hesitaram entre o semipresidencialismo e o presidencialismo e acabaram por optar por este último. Criaram um Tribunal Constitucional e um Tribunal de Contas, não estando este último imune às causas do impasse que obrigou o PR a tomar uma posição e cortar o nó górdio, já que o problema principal se chama corrupção..Em segundo lugar, escudou-se da vaga islamista com a eternização dos dois primeiros artigos do texto. O primeiro, dentro da tradição das restantes Constituições arabo-muçulmanas, refere-se ao Islão, mas não como religião de Estado, referência, aliás, que apenas aparece após definir o país como um Estado livre, independente e soberano. Este artigo 1.º não se sustenta a si próprio, apoiando-se no segundo, que é claro ao definir a Tunísia como um Estado civil fundado na cidadania, na vontade do povo e no Estado de direito. O cimento para estes dois pilares da República se sustentarem mutuamente é o facto de não poderem ser objeto de futuras revisões constitucionais..Quanto ao referido artigo 80.º, é ele próprio sinal dos freios e contrapesos de inspiração portuguesa. A Constituição não permite ao PR dissolver o Parlamento, mas permite-lhe a suspensão dos trabalhos por um período de 30 dias, como se de um divórcio se tratasse. Uma tomada de posição presidencial, um game over para em breve recomeçar, após pausa para reflexão. A regra que o PR Saied não cumpriu foi consultar o presidente do Parlamento e o primeiro-ministro (PM) antes da ativação do referido artigo. O problema na Tunísia no último ano foi precisamente o braço de ferro de silêncio que estes três atores principais têm jogado entre si. Ninguém fala com ninguém, logo, o PR tomou a iniciativa, após uma vaga popular que o empurrou no fimm de semana de 24 e 25 para tal. Demitiu PM, destituiu a coligação governamental, suspendeu o Parlamento e assumiu todos os poderes executivos, dando-nos a perspetiva do passado. Do perfil psicológico do PR Kais Saied uma coisa é certa, não gosta de partidos políticos, tendo também uma conceção muito particular do poder e da democracia. Terá tendência para o autoritarismo, mas a sua grande frustração é não conseguir avançar efetivamente na luta contra a corrupção..A nomeação do tecnocrata Hicham Mechichi como PM visou um investimento nesse campo. Mechichi é um conhecido servidor público da nova geração, que fez toda a sua carreira em gabinetes públicos anticorrupção. Experiente e incorruptível, rodeou-se de uma equipa de outros incorruptiveis com quem trabalhava há uma vida e foi a partir daqui que a governação empastelou na Tunísia. Sem corrupção não há negociação, e o centro da política nacional, o Parlamento, passou a ser diariamente um palco de variedades e provocações entre laicos e islamistas e entre laicos mais à esquerda e laicos mais à direita, que na verdade não são laicos mas saudosistas de Ben Ali. O presidente do Parlamento, Rachid Ghannouchi, também secretário-geral do Ennahda, partido maioritário da coligação governamental que não comunica com o seu parceiro, não estava a dignificar a casa a que presidia. É perante esta degradação institucional que Saied se vê providencial ao espelho e instintivamente flete o músculo..Em resumo, o PR remeteu os islamistas para o papel que melhor desempenham, os de vigilantes da governação, colocando-os agora de atalaia, após terem provado uma vez mais que governar obriga a compromissos e a uma ética de boa convivência nunca entendida pelo Ennahda. Em rigor, esta é a luta política atual e que se arrasta desde o fim da Primavera Árabe, entre laicos e islamistas, quase entre o urbano e o rural, mas certo entre o centro e a periferia..O que virá a seguir?.Para já, o PR terá que responder ao Ennahda e à comunidade internacional com a nomeação de um governo de iniciativa presidencial e calar as vozes que o acusam de golpista. Já o começou a fazer nomeando, a 29 passado, Ridha Gharsallaoui como ministro do Interior. Trata-se, naturalmente, de um próximo seu, já que antes foi seu conselheiro de segurança, mas aponta para um mais que certo governo tecnocrata, que terá na gestão da pandemia o seu maior desafio, cuja falta de oxigénio e excessivos internamentos foram o clique para a contestação popular e apoio ao impulso presidencial..Outro caminho certo, que com resultados confirmará Kais Saied como homem providencial encarnando o espírito da revolução, é o da luta contra a corrupção. Por isso mesmo, ao suspender o Parlamento, os deputados também perderam a imunidade e a possibilidade de viajarem para o exterior, queixando-se alguns de violação de direitos humanos, ajudando à dramatização a partir de dentro para fora. Para já, nesta ofensiva anticorrupção pós-"golpe de força", 460 contas bancárias de empresários foram congeladas, sendo estes acusados de fuga de capitais ainda no tempo de Ben Ali. E aqui fica identificada a raiz do impasse tunisino, a herança de 22 anos de privilégios tentaculares do círculo presidencial, que não se conseguiu mitigar em 10 anos. Só destes 460 há um prejuízo de 4 mil milhões de euros, o equivalente a oito submarinos dos nossos! Outro sinal de "sabedoria republicana" foi o dado pelo PR ao congelar estas contas, apurar os números e propor, "devolvam o dinheiro e as acusações serão retiradas". Os tunisinos querem resultados e o PR quer apresentá-los. A ideia, pela boca do PR, é alocar estes dinheiros a regiões mais desfavorecidas do país. A exploração de fosfatos, dos raros recursos naturais do país, também precisa de se libertar dos interesses tentaculares que a sugam para o bolso privado, em vez do público..Não sendo um indefetível dos partidos políticos, estes também serão escrutinados nos próximos dias, sobretudo os que apresentam fortes suspeitas de terem visto a campanha eleitoral de 2019 financiada a partir do estrangeiro, eufemismo para de forma oficial e pública expõe a duplicidade de ética e discurso do islamista Ennahda, reforçando o braço de ferro entre laicos e islamistas referido anteriormente. Neste jogo, a cartada que o PR quererá jogar é a de apresentar uma lista com provas de ligações de deputados e membros do Ennahda a empresários corruptos, e assim descredibilizar ainda mais o bloco islamista, cujos tentáculos têm minado os centros de poder, não governando mas sendo governo..Por outro lado, os islamistas, percebendo a tormenta a caminho, apelam à calma e à não saída dos seus apoiantes à rua, mostrando-se disponíveis para o diálogo, que acontecerá dentro da "sabedoria republicana", mas agora quando o PR o decidir, o qual, dependendo dos trunfos que conseguir durante agosto, imporá as suas condições..Para já, e para a comunidade internacional, o PR terá que provar durante os próximos dias que está a fazer aquilo que Manuela Ferreira Leite uma vez alvitrou para Portugal: "Suspender-se a democracia por seis meses para se poder arrumar a casa e depois voltar à democracia." Parece-me ser isto que Kais Saied está a fazer na Tunísia, mas com janela constitucional de apenas um mês. Este será concentrado na tentacular corrupção que lá, como cá, prova a sua transversalidade social à medida que todos praticam o zelo do silêncio e da inação..A Tunísia não sofreu nenhum golpe, mas vê no seu PR a coragem de quem quer quebrar o status quo e romper com as práticas passadas que continuam a empurrar o país para a falência do empreendedorismo social. Apesar disso, desta falência social tão parecida com a nossa, é precisamente uma gorda fatia de uma população esclarecida, a que sai agora à rua em apoio ao PR, que não permitirá que este se exceda para lá da linha vermelha que já pisa..Politólogo/arabista