“Trump popularizou as fake news. Mas KGB era especialista em histórias falsas na era pré-internet”
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“Trump popularizou as fake news. Mas KGB era especialista em histórias falsas na era pré-internet”

Simon Thibault, professor da Universidade de Montreal falou ao DN da diferença entre desinformação e notícias falsas e do perigo da Inteligência Artificial.
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Em Lisboa para uma masterclass na Universidade Nova no âmbito da Festa da Francofonia e para a conferência A Verdade na Era da Desinformação (hoje, 14h00, na Católica), o canadiano Simon Thibault esteve à conversa com o DN sobre as origens das fake news, a diferença entre desinformação e informações falsas e os efeitos da IA.

As notícias falsas, são hoje uma grande preocupação, mas a propaganda sempre existiu?

Sim, não é nada de novo. Apesar de ter sido Donald Trump a popularizar o termo fake news, podemos recuar até ao Antigo Egito, onde havia declarações de vitórias militares que depois se percebeu serem histórias falsas inscritas na pedra. É um fenómeno muito antigo. No século XX, a razão pela qual se tornou tão difundido é que, na I e II Guerras Mundiais, os governos perceberam que a propaganda era essencial para o esforço de guerra. Era preciso ter um impacto na opinião pública, mobilizar a população, encorajar o esforço de guerra ou desmoralizar o inimigo. E os meios de comunicação de massas ajudaram a difundir estas mentiras muito mais amplamente. Por exemplo, o regime nazi tinha pessoas muito talentosas, nomeadamente na indústria cinematográfica, capazes de transmitir as suas histórias propagandísticas sobre a grandeza da Alemanha, a grandeza do Reich, mas também de incitar ao ódio, de transmitir mentiras para demonizar o inimigo. Ao longo da História, nos EUA, houve mentiras sobre atentados supostamente provocados por adversários a que se seguiram conflitos. Mais recentemente, aconteceu o mesmo na Guerra do Golfo e com as armas de destruição maciça. Estes são alguns exemplos de como a mentira há muito faz parte da nossa realidade política.

Podemos dizer que é um fenómeno tão antigo como a própria humanidade?

Claro. Mas com a internet passámos a conseguir transmitir estas mentiras em ainda maior escala. Antes, demorava muito tempo até se tornarem virais. Costumo dar o exemplo de um grande sucesso do KGB. É a história de que o Vírus da Imunodeficiência Humana tinha sido criado em laboratórios americanos. Esta notícia falsa foi publicada pela primeira vez num obscuro meio de comunicação indiano. Mais tarde foi retomada em Moscovo. Estamos a falar dos anos 80. E havia dois cientistas da Alemanha de Leste que promoveram a história, dando-lhe legitimidade científica. Esta acabou por ser apanhada por meios de comunicação social em mais de 80 países e chegou aos EUA, em horário nobre, na CBS. O KGB podia celebrar, mas foram precisos muitos anos e recursos para disseminar esta história, que acabou por alimentar uma teoria da conspiração sobre o governo americano. A teoria era de que o VIH tinha sido criado no âmbito de um plano malicioso do governo para afetar a saúde das minorias - afro-americanos e minorias sexuais. Esta história falsa entrou na cultura popular e contaminou as crenças de muitas pessoas.

Mas tudo se acelerou com as redes sociais…

Hoje, com a internet e as redes sociais, tudo se resume a velocidade e viralidade. E com a Inteligência Artificial, as coisas estão a disparar. No passado, eram sobretudo os governos que tinham os meios e o tempo para associar mentiras e notícias falsas. Mas na internet há uma multiplicidade de atores a fazê-lo. Podem ser Estados, mas também jovens isolados. Por exemplo, nas eleições de 2016 nos EUA, um jornalista canadiano descobriu que havia jovens na Europa, em países como a Macedónia, que ganhavam dinheiro a transmitir discursos falsos no Facebook. E não o estavam a fazer porque queriam que Trump ganhasse, estavam a fazê-lo por dinheiro. Muitos atores passaram a ter os meios para criar histórias falsas - fosse individualmente, por dinheiro, na perspetiva de um Estado, para desestabilizar um adversário ou, num contexto político, para atacar um adversário. Muitas pessoas utilizam as ferramentas à sua disposição para difundir informações falsas com más intenções. Mas também há quem passa a informação, mas não tem essa intenção. É a diferença entre desinformação e informação falsa. Na desinformação tem de haver uma intenção maliciosa de enganar. Por exemplo, quero convencer as pessoas de que devem votar neste político e vou enviar-lhes uma história falsa escandalosa. Essas pessoas reagem, ficam indignadas e partilham com os amigos. Estas pessoas não têm intenção de enganar os amigos, mas estão a partilhar informação falsa.

As redes sociais tornaram a desinformação mais rápida. Se lhes somarmos a Inteligência Artificial, temos a tempestade perfeita?

Bem, quando pensamos na evolução dos media, vemos como as convulsões tecnológicas provocam grandes mudanças. Tivemos a era da radiodifusão, a televisão, a rádio e a imprensa escrita. Com o advento da internet, as pessoas que costumavam obter as suas informações através dos meios de comunicação tradicionais, passaram a obtê-las em praticamente qualquer lugar. Houve transferência de receitas publicitárias dos media tradicionais para as grandes plataformas. E, ao mesmo tempo, do ponto de vista político, estamos a assistir a uma polarização. O populismo está a aumentar. Tudo isto constitui um ecossistema fértil para a desinformação - num contexto social, político ou mesmo de saúde. A pandemia foi a tempestade perfeita. As pessoas tiveram de ficar em casa, estavam zangadas por verem a sua liberdade pessoal restringida e acederam mais à Internet. E como nem sempre tinham este olhar crítico, podiam ser convencidas por certas histórias ou certas comunidades onde iam buscar informação, que veiculavam histórias falsas ou informações falsas, por exemplo, sobre vacinas. Portanto, sim, há um contexto muito favorável ao fenómeno da desinformação e da informação falsa. E com a inteligência artificial, ela é potenciada, amplificada ainda mais. A questão é: o que é que fazemos com ela?

Para lutar contra isso, os media têm de ter meios…

Sim. E os meios de comunicação social estão em crise. É por isso que muita gente diz que o Estado deve continuar a apoiar o serviço público. Mas os media privados dizem, e nós? É complicado. Depois há a questão da literacia mediática. Os cidadãos precisam de ser formados para pensar de forma crítica. Na minha opinião, isso deveria começar no nível primário e ir até à universidade. O contexto podia ser também de maior regulamentação. Na Europa, temos o Regulamento dos Serviços Digitais. Havia muita esperança em relação a isso. Mas também há receios. Estávamos num contexto em que, nos EUA, se Kamala Harris tivesse ganhado, as grandes plataformas seriam cada vez mais responsabilizada para terem maior transparência nos seus algoritmos, melhor verificação dos factos e melhor controlo dos conteúdos. Por exemplo, dos famosos deepfakes que vemos por todo o lado. Mas depois veio Donald Trump e mudou completamente as coisas, porque com Trump é o laissez-faire. E vai pressionar a União Europeia ao dizer: “Estão a tratar as nossas empresas de tecnologia, as nossas grandes plataformas, os gigantes da internet, Google, Meta, X, de forma injusta”. [O vice-presidente JD] Vance, quando foi a Munique, fez o seu discurso sobre a liberdade de expressão e a ideia era: deixem de se preocupar com os discursos que vos incomodam..

É quase libertário...

Exatamente. E isso não é de todo favorável ao que os especialistas dizem sobre a importância de regular estas plataformas. Como Zuckerberg, o CEO da Meta, disse no rescaldo das eleições: “Vamos fazer as coisas de forma diferente, vamos deixar o controlo nas mãos das pessoas.” É a comunidade a decidir. Mas será eficaz? As opiniões dividem-se. De certa forma, não é eficaz, na medida em que há tanta desinformação a circular e os deepfakes estão a aumentar. E no contexto americano, estão protegidos por lei. Se, por exemplo, alguém imitar a voz e pegar na cara de um perito em finanças para fazer um deepfake, pondo-o a apelar a comprar de uma bitcoin e muitas pessoas comprarem, mas depois se sentirem enganadas, normalmente, deviam poder processar a plataforma. Também a pessoa que foi difamada porque a sua imagem foi utilizada podia processar a plataforma. Mas não o podem fazer porque a empresa está protegida pela Secção 230 da Lei da Decência na Comunicação, de 1996. Muitos especialistas acham que esta secção tem de ser reformada, mas não há vontade política. Todos os líderes dos gigantes da internet estiveram na posse de Trump, há aqui uma mensagem muito forte de que Trump vai defender os interesses das empresas americanas, incluindo os gigantes da internet. Quem está online pergunta-se cada vez mais se o que vê é verdade. Há uma grande desconfiança e é suscetível de aumentar. Esta ideia de estar sempre desconfiado pode criar, segundo os especialistas, o “dividendo do mentiroso”, ou seja, a vantagem do mentiroso num contexto político é que quem estiver envolvido num escândalo político pode rapidamente dizer que é falso, negar. Portanto, de certa forma, este tipo de realidade em que estamos sempre a duvidar de tudo e em que a mentira está muito presente, é muito pouco saudável num contexto democrático.

Há cada vez mais informação, temos cada vez mais acesso a tudo, mas, ao mesmo tempo, as pessoas vivem cada vez mais na sua bolha e só recebem a informação que lhes interessa. Isso também pode alimentar o populismo?

O que percebemos quando pensamos nas comunidades que podem estar mais expostas a discursos enganadores ou conspiratórios é que, muitas vezes, são pessoas que já têm um certo grau de ceticismo e que encontram comunidades online onde as suas preocupações têm eco. Antes da internet, estas pessoas estavam nas suas caves, zangadas com a televisão e as notícias, e podiam encontrar alguém no parque ou num grupo de amigos que partilhava a sua raiva, mas agora encontram muitas pessoas online. A nível político, pode haver este fenómeno de radicalização, que será facilitado por estas comunidades online. As grandes plataformas, para captar a nossa atenção e manter-nos lá o máximo de tempo, oferecem conteúdos cada vez mais inflamatórios. E isso leva-nos muitas vezes a pensar: “Como é que cheguei aqui?” É a lógica dos algoritmos. É por isso que dizemos que as empresas precisam de ser mais transparentes sobre a forma como codificam os algoritmos. Há peritos que defendem haver organismos reguladores. Mas logo vamos ter pessoas a dizer que é censura. Há este debate filosófico sobre o que é a liberdade de expressão. Do ponto de vista europeu, em relação a questões como o incitamento ao ódio, etc., é muito mais regulamentado. No contexto americano, há grande tolerância em relação ao que se pode dizer. Os movimentos mais radicais, mais populistas - estou a pensar, por exemplo, no Reunião Nacional em França - têm estado muito interessados em usar as plataformas para chegar ao seu público, porque o seu discurso tem menos aceitabilidade pelos media tradicionais. Em 2016 Trump lembrava que se não tivesse o Twitter nunca teria conseguido falar com a sua base. Isso é excecional, porque temos um ator político que mente e que transmite regularmente histórias falsas e teorias da conspiração na sua conta pessoal. Fazia-o no Twitter, agora X, fá-lo ainda mais na Truth Social, a sua rede social. Temos um ator político poderoso que legitima discursos que antes eram marginais. E nomeou para cargos-chave na Administração atores que também são reconhecidos por terem transmitido histórias falsas no passado. Seja Robert F. Kennedy Jr., ao nível da vacinação, seja Kash Patel, ao nível do FBI com o Deep State, etc.. Estamos nos mais altos escalões do poder, com discursos que antes seriam considerados completamente, não diria surrealistas, mas fora do sistema. Durante a campanha surgiram as histórias falsas sobre migrantes que comiam cães e gatos. Trump disse aquilo e nunca voltou atrás. E houve atores políticos republicanos locais que disseram que não era verdade, mas sempre com cautela, porque têm medo da raiva de Trump. Estamos nesta dinâmica.

O que parece acontecer é que mesmo quando os jornalistas publicam esses desmentidos, acabam por estar a alimentar a narrativa inicial…

Há peritos que dizem haver aí uma estratégia. Que mesmo que a história seja falsa, dependendo da perspetiva de quem a transmite, ela refletiria uma determinada realidade. E de, certa forma, mobiliza o eleitorado. É por isso que a primeira Presidência de Trump foi extraordinária, porque foi uma destruição das normas. A regra era não atacar a imprensa, não mentir. Mas com Trump foi o contrário.

Falávamos há pouco do KGB e dos seus métodos, a máquina de propaganda russa, que tem interferido desde as eleições americanas de 2016 até à guerra na Ucrânia, é a herdeira direta do KGB?

Sim, sim. A Rússia desenvolveu uma grande expertise neste tipo de operação de desinformação, de manipulação do público. O KGB era especialista em histórias falsas virais na era pré-internet. A que mencionei sobre o VIH era, na verdade, uma forma de ilustrar como isso consumia tempo e recursos. Mas agora, na era da internet, a Rússia passou a utilizar diferentes atores, quer se trate de piratas informáticos, que roubam informações para tentar colocar certos atores políticos em apuros, quer sejam trolls, ou quintas de trolls, a divulgar conteúdos falsos para semear a divisão nas comunidades online sobre assuntos como imigração ou violência policial. Pode também envolver a utilização de software de Inteligência Artificial para difundir e amplificar conteúdos de propaganda. E há o fenómeno do astroturfing [a prática de mascarar os patrocinadores de uma mensagem ou organização]. Quando vamos ao YouTube e temos um vídeo, por exemplo, sobre a guerra na Ucrânia, vemos logo uma série de comentários, porque o que estes robôs de software vão fazer é tentar encher essa secção para influenciar a discussão online. Estas são ferramentas que os russos, mas também outros países, utilizam. Os trolls também podem intimidar, assediar, podem visar os críticos, em particular do Kremlin, quer estejam em países vizinhos ou não. Existe toda uma gama de ferramentas. E a Inteligência Artificial, acentua isto tudo.

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