Donald Trump toma posse como presidente no próximo dia 20. Desde a sua primeira campanha, o milionário dominou os media. Mas se em 2016 quase todos os grandes jornais apoiaram Hillary Clinton, desta vez jornais como o Washington Post, o Los Angeles Times ou o USA Today decidiram não apoiar nenhum candidato. Terá sido porque Trump se tornou mais aceitável para eles ou porque o democrata Kamala Harris não os convenceu?Acho que as duas coisas. Há muitos fatores envolvidos, mas o mais importante é que a capacidade dos meios de comunicação social para cobrir Trump de forma crítica e independente diminuiu desde 2016. 2016 foi visto como uma anomalia. Mas este ano não é visto como uma anomalia, é um novo normal. Por isso, os jornais que recuaram, como Jeff Bezos e o apoio do Washington Post, tornaram-se muito mais a norma do que o contrário. E apesar de prestarmos tanta atenção ao que aconteceu no Washington Post, no Los Angeles Times, e numa centena de outros jornais, pequenos, o que não prestamos atenção é a todo o contexto que levou a isso. Não prestamos atenção à deferência e à moderação das histórias. Não prestamos atenção ao eufemismo com que são contadas, ao compadrio, ao facto de sermos demasiado próximos das fontes. Não prestamos atenção ao facto de fingirmos que as notícias não vêm de lado nenhum, que a objetividade, o equilíbrio e a neutralidade são a regra. Há algo no jornalismo que não é adequado para cobrir o regresso de Trump. Eu diria que os costumes, normas e ideais jornalísticos já não se adequam ao que se está a passar no terreno. Portanto, é como cobrir o regresso de Trump ou compreender o regresso de Trump através de ferramentas que eram adequadas a outro momento no tempo. E não há maneira de os jornalistas se adiantarem à história, de se adiantarem ao regresso de Trump, a menos que descubram isso.Os tempos mudaram, mas o jornalismo não?Esse é o meu grande argumento: o jornalismo não muda. Está cada vez mais entrincheirado. Há uns anos, antes da primeira tomada de posse de Trump, estive num encontro virtual com Glenn Kessler do Washington Post, o fact checker que atribui pinóquios aos políticos quando mentem, e ele explicava que quando lhes dava o máximo de quatro pinóquios, todos tentavam explicar-se e desculpar-se. Mas Trump não. Continuava impávido e sereno. Como descreveria a relação de Trump com os media?É uma pergunta difícil. Penso que Trump expõe as deficiências na relação entre a presidência e todas as instituições americanas. Se Trump anular as normas, se for simplesmente ultrajante em termos daquilo que está a fazer e das coisas pelas quais não está a ser responsável, os jornalistas não sabem como responder. É por isso que eu digo que em vez de responderem com indignação, em vez de lavarem a roupa suja, deviam estar a desenvolver um modelo de comportamento que possa desfazer o domínio de Trump sobre a relação. Mas até que o façam, Trump vai dominar o jogo. E é assustador, porque as coisas que ele prometeu, muitas delas vão concretizar-se. Acho que a única dúvida agora é o que virá primeiro. E isso é um grande problema para o futuro.Nos últimos tempos Trump fez ameaças variadas contra o Canadá, a Gronelândia, o Canal do Panamá, etc. E os media fizeram eco e amplificaram o que ele disse. Acha que ele vai realmente fazer o que diz quando chegar à Casa Branca?Não vejo razão para não o fazer. Neste momento, o que temos são instituições em retirada. E digo em retirada e não em declínio, porque é uma grande diferença. A menos que haja um esforço do outro lado para o impedir, porque é que ele não faria o que está a preparar? Ele está a retomar exatamente onde parou em 2020. E é claro agora sobre como chegar onde quer chegar. E é claro quanto às condições de fundo que precisa de estabelecer para poder, por exemplo, controlar os meios de comunicação social, seja atirando jornalistas para a prisão, seja ao abrigo da Lei da Espionagem, seja ao abrigo da regulamentação da FCC [Comissão Federal de Comunicações], seja politizando o Departamento de Justiça. Há tantas coisas que ele prometeu e que vai fazer.E desta vez tem a ajuda de Elon Musk, o dono do X, que foi uma figura essencial na campanha. Sim. Na noite das eleições alguém tweetou que o X é a comunicação social agora. E junto ao tweet estava uma nota de agradecimento a Elon Musk por ter comprado e entregue a plataforma para servir a agenda de Trump. Não podia ser mais claro, certo?Alguém com esse poder e essa plataforma, que a partir de dia 20 será membro - mesmo que informal - da Administração, pode ficar incontrolável?Quem sabe? Penso que o que muitas pessoas estão a prever é que Trump se canse dos seus favoritos muito rapidamente. Mas Musk traz-lhe muito. Recebe muito em troca. Por isso, é difícil dizer. O que Trump está a fazer é tornar visíveis práticas que já existiam nos círculos governamentais e oficiais, mas que não eram admitidas. E acaba por funcionar em seu benefício, porque as pessoas têm dúvidas sobre a legitimidade das instituições americanas há muito tempo. O que é novo é o facto de estarmos a reconhecer a gravidade da situação. E a esperança é que, quando se chega ao fundo do poço, se tire um pouco de tempo para reagrupar e se descubra como voltar a subir. Eu diria que se tivermos a esquerda e a direita dos media a usar os mesmos ideais, normas e valores, a trabalhar a partir do mesmo sistema, isso pode acontecer. Mas enquanto os profissionais do sector não perceberem isso, os media nunca mais terão relevância. Alguém tem de acordar porque os que estão no topo vão sempre querer que as coisas fiquem como estão. Não é fácil para os media quando se tem um presidente como Trump, que governa por tweet, que chega diretamente à sua audiência. Ele nem precisa dos media e dos jornalistas. Por isso, por um lado, os jornalistas e os media estão a perder relevância, por outro lado, será que não precisamos mais deles do que nunca para filtrar toda esta informação?Sem dúvida. Tem de haver um momento de ajuste de contas, em que aqueles que estão a liderar estas instituições compreendam que isto já não é sustentável. É muito triste o que vou dizer, mas há uma crença entre a maioria dos americanos, e certamente no governo americano, de que nós somos ainda a democracia mais forte do mundo. No entanto, somos também uma democracia que se tem aproximado perigosamente do autoritarismo. E, neste momento, estamos ainda mais perto. Este facto não é admitido com a frequência necessária. Será autoritarismo? Será populismo fascista? Será fascismo? Não importa, desde que reconheçamos que está aqui, seja qual for o nome que lhe dermos, e que precisa de ser abordado. E aqui, temos de voltar à Guerra Fria. O que eu vejo como sendo relevante para o declínio e o fim do jornalismo é que os media trazem comportamentos que não desapareceram quando a Guerra Fria acabou. Os jornalistas perderam a sua autonomia, promoveram uma narrativa de inimizade, agindo sempre contra os outros, e começaram a perder a sua ligação com as provas.A propaganda ou a desinformação sempre existiram, mas hoje os jornalistas enfrentam o desafio da inteligência artificial. Como é que esta pode mudar a nossa realidade?Os media e o jornalismo sempre se basearam nas novidades mais brilhantes. Sempre se moveram com a tecnologia mais recente. E esta é sempre vista, no momento em que surge, como terrivelmente perigosa, certo? Enquanto não percebermos isso, não vamos ultrapassar a situação. O que está a acontecer é que a IA e a desinformação estão a ir à boleia das mesmas práticas, normas e valores de que nos devíamos ter livrado. É como construir uma casa sobre uns alicerces muito fracos. Temos de começar do rés do chão, perceber o que se passou e porque é que ainda cá está. Eu diria que a lógica da Guerra Fria é o motor do jornalismo norte-americano, porque oferece uma forma muito clara e fundamental de compreender assuntos difíceis da atualidade. Quer se trate, no passado recente, do 11 de Setembro e da guerra ao terrorismo, quer se trate da intervenção dos EUA no Afeganistão e no Iraque, quer se trate de fluxos de migração global, da guerra na Ucrânia ou da guerra entre Israel e Gaza e o Médio Oriente, todos estes são momentos para os quais os jornalistas não estavam preparados e em que confiaram nessas ferramentas que lhes vão permitir fazer a sua cobertura de uma forma que os faça sentir-se autorizados, fiáveis e relevantes. E digo isto como antiga jornalista. Durante muito tempo, não avançaria com um argumento como este porque se trata, de facto, de documentar o declínio e o desaparecimento do jornalismo. Mas acho que não temos outra saída.CNN versus Fox News, são o melhor exemplo de que existem duas Américas irreconciliáveis?Exatamente. E é precisamente por isso que digo que têm de agir em conjunto. Se a CNN e a Fox News não encontrarem uma forma de reconhecer que estão no mesmo sistema, que estão a enfrentar os mesmos problemas, não terão forma de ultrapassar esses problemas.Mas cada vez mais as pessoas, não só os americanos, em todo o lado, só querem ver e ouvir aquilo com que concordam. Essas pessoas estão preparadas para aceitar pontos de vista diferentes ou a divisão é tão forte que será difícil?Temos de acreditar que sim mas não acho que vá ser fácil. O que estou a dizer não é só sobre o jornalismo, é sobre todas as instituições americanas. Criámos um sistema que faz com que esta realidade pareça estar bem, mas o resultado é uma guerra civil. Não creio que vá haver guerra civil tão cedo, claro. Não acredito que os americanos queiram que isso aconteça. Mas foram cometidos erros graves de ambos os lados, tanto em termos políticos, como de sistemas mediáticos. Erros reais que, na minha opinião, deveriam obrigar os jornalistas de esquerda e de direita a dizer: “O que é que fizemos de errado?” Se não o fizerem, não vejo como poderemos voltar a encontrar o caminho para um terreno que os una. Quem seguiu a cobertura das eleições sabe que a narrativa de que os eleitores não compreendiam aquilo em que estavam a votar é tão arrogante. E mesmo agora, há um discurso nos media de esquerda que diz: “Nós informámo-los e eles votaram nele na mesma”. Mas quero pensar que este é um momento de acerto de contas e que haverá vozes que se farão ouvir, de forma a apontar para um caminho responsável a seguir.Em 2016, uma das narrativas era que Trump ia salvar os media. Mas os jornais continuam em crise e a perder leitores. Afinal Trump não chegou para os salvar...Não, Trump não salvou os media. Ele mudou os media, assustou os media. O medo que ele instituiu deveria ter sido um sinal. Mas nada mudou. Não há nenhuma organização de notícias, que eu saiba, que tenha instituído as mudanças necessárias. Eu diria que isso se deve em parte ao facto de não poder acontecer apenas com um lado do sistema dos media. .Trump seria condenado caso não tivesse sido eleito, revela relatório de procurador