“Trump despreza a Europa e não revela grande preocupação com os apetites imperialistas de Putin”
Cumpriram-se na semana passada os 100 dias de Trump no poder. Tarifas, imigração, universidades, Ucrânia, etc, desde Franklin Roosevelt que nenhum presidente mudava tanta coisa em tão pouco tempo. Se quer deixar marca, Trump tem de acelerar enquanto tem maioria nas duas câmaras do Congresso, antes das intercalares de 2026?
A bússola moral deixou de ser americana. Se Trump fosse um presidente normal, a sua má governação teria uma consequência clara nas eleições intercalares de novembro de 2026. Mas esta não é uma presidência normal. É um mandato disruptivo, de alguém que diz pretender fazer uma revolução dentro do sistema. Donald Trump já está a deixar uma marca. Mas, infelizmente, é a de ter tido os primeiros 100 dias mais negativos, erráticos e desastrosos de que há memória no último século americano. Prometeu “tornar a América grande outra vez”, mas quase tudo o que fez nos primeiros 100 dias contribuiu para enfraquecer os EUA, interna e externamente. Há algo de fundamental que Trump nunca conseguiu perceber: o poder da economia americana, de longe a maior e mais robusta do mundo há várias décadas, não é só o poder das empresas, do capital, da inovação e do seu mercado interno. Esse poder só atingiu uma dimensão praticamente inalcançável durante mais de meio século também pela força da cultura norte-americana, do prestígio da diplomacia norte-americana, pelo alcance mundial do papel dos presidentes norte-americanos. Comprar americano, seguir o que os EUA foram sempre conseguindo liderar, inspirar-se na democracia dos EUA: isto e muito mais foi sempre chave para que os EUA fossem a grande superpotência mundial das últimas décadas. É isto que Trump não compreende mesmo. Sim, a economia é fundamental. Mas economia acima de tudo e o resto a ser desprezado não é política respeitável em lado algum. E nem a economia se salva neste comportamento inaceitável. O Colapso da Verdade passa também por esta negação do atual presidente dos EUA.
Qual a maior diferença entre esta segunda Administração Trump e a primeira?
Está a ser muito pior do que no primeiro mandato. Trump 2.0 tem-se mostrado uma presidência fraca, errática e incompetente, sob a capa de uma suposta superioridade absoluta da sua autoridade presidencial, desrespeitando os poderes judicial, legislativo ou mediático. Abro o livro com uma citação de Trump que diz tudo sobre o que está a ser feito pela Casa Branca: “Aquele que salva o seu país não quebra qualquer lei.” A partir deste pressuposto, tudo passa a ser possível. Até o impensável. A legitimidade eleitoral que Trump tem, bem maior que em 2016, faz com que corporize o cargo de presidente dos EUA de forma muito mais autocrática. Da “carnificina americana” do primeiro mandato presidencial de Trump a disrupção trumpista escalou, nesta versão 2.0, para um combate ao suposto “inimigo interno” que passa por pintar um cenário catastrofista da situação doméstica dos EUA e do alegado (mas fantasioso) “grande prejuízo” decorrente das relações com os aliados permanentes, que seria preciso desfazer. Os ataques às universidades ilustram essa diferença. A menor preocupação com os direitos individuais tem levado a situações até agora impensáveis nos EUA como a deportação de cidadãos americanos, incluindo crianças. E depois há a dimensão internacional. O “Make America Great Again” é, desta vez, como é explicado neste livro, também uma afirmação com cariz expansionista (Gronelândia, Canadá, Canal do Panamá).
A nível interno, Trump apertou as regras para os imigrantes, tentou reduzir o peso do governo federal, lançou uma campanha contra o wokismo, etc, mas será pela economia, sobretudo pelas consequências das suas tarifas, que vai ser avaliado?
Acredito que sim. Curiosamente, acho até que todo o ruído anti-woke e mesmo os ataques às agências federais ajuda o presidente a distrair as atenções do que verdadeiramente lhe pode causar dano político. Trump, que prometia crescimento económico e baixa da inflação, autoimpôs aos EUA um flagrante risco de recessão e iminente subida de inflação. O líder da Casa Branca chamou-lhe “o dia da Libertação”, mas revelou-se a decisão presidencial com maior dano nos mercados em várias décadas. Trump faz um statement: o suposto “aproveitamento” de europeus, chineses e tantos outros aos EUA “acabou”. E ele, o presidente defensor dos trabalhadores americanos, apareceu para defender o produto americano e as empresas americanas. Só que não. A espiral tarifária será altamente danosa para as empresas americanas e, por consequência, para os trabalhadores americanos.
Além de deixar o mundo em alerta perante uma possível guerra comercial, Trump tem procurado cumprir a promessa de acabar com a guerra na Ucrânia. Estamos mais perto de um cessar-fogo do que com Biden? A que preço?
A “paz apressada” que Trump quis dar a Putin representa muito mais do que a capitulação da Ucrânia: é, também, uma humilhação à Europa, selada pelo discurso “moralista” de JD Vance na Conferência de Segurança de Munique, de 14 de fevereiro de 2025. Assim se consolida o fim da Ordem Liberal, sucedida pelo regresso da competição regulada pelas Grandes Potências. Desde o telefonema de 90 minutos com Vladimir Putin, a 12 de fevereiro, em vez de aproveitar para exigir ao agressor que parasse a invasão e retirasse as suas tropas dos territórios que ocupava além-fronteiras, o presidente americano deu o pontapé de saída para um processo negocial em que deixou de fora das grandes decisões o país agredido (a Ucrânia) e todo o espaço a ocidente deste (a União Europeia e o Reino Unido), dando prioridade ao restabelecimento. Dessa forma, confirmou aquilo que se temia, mostrando que se colocava ao lado do agressor e recolocando a Rússia no palco internacional. Os sinais de que a Administração Trump se rendeu aos interesses de Putin são cada vez mais evidentes. Atentemos ao que Alexander Dugin, o “ideólogo” do ultranacionalismo imperialista e anti-liberal russo, proclamou em entrevista a Fareed Zakaria, na CNN Internacional: “O putinismo venceu nos EUA”. “Com Trump na Casa Branca”, exortou Dugin a Zakaria, “temos uns EUA diferentes: não a fortaleza e a sede do globalismo, mas o tipo de estado nacional soberano, potência global com valores tradicionais”. Nas atuais condições, a Ucrânia pode ficar potencialmente indefensável. Sem o respaldo americano e afastado o objetivo de entrar na NATO (o não de Washington corta cerce essa conversa), e ainda por cima sem uma eventual proteção que o artigo 5.º pudesse dar aos seus parceiros, a única defesa efetiva do país passaria pela devolução das armas nucleares de que abdicou em 1994 - e ninguém no seu perfeito juízo acredita nesse cenário. Pelos pressupostos de partida que elencou para conseguir “rapidamente a paz”, confirma que tem uma visão mais próxima de Moscovo do que de Kiev: não é realista a Ucrânia entrar na NATO; não é realista a Ucrânia recuperar os territórios ocupados pelas forças russas nos últimos três anos; os ucranianos vão ter de ceder para terem a paz e se não o fizerem são responsáveis pela continuação da guerra; é preciso haver eleições na Ucrânia o mais rapidamente possível.
No Médio Oriente, o cessar-fogo que ajudou a negociar ainda antes de tomar posse não durou, mas, por outro lado, os EUA parecem dispostos a negociar com o Irão um acordo que Trump rasgou no primeiro mandato. O que esperar do presidente americano nesta zona do globo?
Diria que o único ponto positivo que poderemos vislumbrar desta presidência até agora é um possível acordo com o Irão, aproveitando o momento de grande fragilidade do regime iraniano, que tem uma necessidade urgente de ver aliviadas as sanções de que é alvo. Não me surpreenderia que fosse assinado um novo acordo em que Trump pudesse proclamar que tinha garantido por um largo período de tempo (15 ou 20 anos, talvez) que Teerão não disponha de um programa nuclear para efeitos militares. Menos provável é um bom desfecho para a questão de Gaza. O aparente alinhamento Trump/Netanyahu tem tudo para agravar divergências de Israel com países árabes da região.
Quanto à Europa, e à NATO, Trump e a sua equipa têm multiplicado as críticas e aumentado a pressão para que reforcem os gastos em defesa. Uma saída dos EUA da Aliança Atlântica é um possível ou é mais retórica?
Os EUA, que fundaram a sua liderança global na promoção desse protagonismo, passaram a querer abdicar dele. O fim do “mundo unipolar americano”, inicialmente desejado por russos e chineses, é agora um objetivo desta administração. A potência dominante deixou de querer dominar e o desfinanciamento da NATO é uma grande prova disso. A presidência Trump despreza a Europa e não revela grande preocupação com os apetites imperialistas de Putin - até insinua que a Rússia deveria voltar a um “G8” e admite retirar tropas americanas de dissuasão, colocadas na Alemanha. Parece atender mais às razões do nacionalismo russo (que permite o expansionismo revisionista de Putin) do que ao nacionalismo ucraniano (que eventualmente deixará cair). A Europa já percebeu o risco - e isso muda pelo menos uma parte deste jogo. Os europeus demoraram a aceitar, mas já acordaram e estão a agir. A “Coligação de Vontades”, liderada por Starmer e Macron, e o “RearmEU” gizado pela presidente da Comissão, Von der Leyen, são respostas firmes - desde que tenham consequências práticas. A grande questão para os próximos anos é: vai a Europa sobreviver ao afastamento americano e ser capaz de se rearmar a tempo de evitar uma invasão russa ou aproveitará Putin as hesitações europeias para dinamitar, em definitivo, as nossas democracias, minadas pela desinformação e com grande parte das opiniões públicas atiradas para a ideia errada de que “armar a Europa é uma escalada belicista que interessa aos EUA”?
Uma coisa que não mudou muito da Administração Biden para a Trump é o colocarem a China como grande rival. Mas com tarifas de 145%, que impôs mas já veio dizer que terão de baixar, Trump desafiou Pequim. Neste caso, é mais provável que Trump tenha de ceder do que o contrário?
Obviamente que sim. A escala de tarifas que Trump impôs à China é insana. A necessidade que teve de dizer que agora quer negociar e que está a falar “todos os dias com os chineses” (algo que o presidente Xi Jinping já desmentiu) é a prova do total falhanço da sua política de tarifas. A realidade já está a impor-se e Trump acabará por recuar, pelo menos na dimensão da guerra tarifária. Nem que seja por mera sobrevivência.
Trump deu a Elon Musk um enorme poder, como líder de facto do Departamento de Eficiência Governamental. Mas aumentam as notícias de que o bilionário dono da Tesla estará de saída. É a solução, por um lado, para evitar um mais que provável choque de egos e, por outro, permitir a Musk voltar a focar-se nos seus negócios - que têm sofrido o impacto do seu papel ao lado de Trump?
A influência excessiva e ilegítima de Elon Musk só podia acabar mal. Quem mantém um comportamento como Musk teve – arrogante, exibicionista, abusivo nos poderes que nunca teve mas gabou-se de exercer, metendo-se nos poderes dos outros – acaba sempre sem apoio. Mesmo sendo o homem mais rico do mundo. Bastou que as suas empresas perdessem 100 mil milhões de dólares em três meses para que Elon Musk mudasse de ideias sobre o trabalho que tinha no governo norte-americano. Mas o mal já estava feito: nem esta saída precoce - ainda que sem causar grande surpresa - retira importância ao papel que Musk teve no regresso de Trump à Casa Branca, muito menos à sua ação na "criação de caos" dentro da administração federal. Foi crucial para que Donald Trump agarrasse as big tech e controlasse o algoritmo.
Estamos a ano e meio das intercalares e o Partido Democrata parece estar com dificuldade em se organizar, depois da derrota de Kamala Harris em novembro. Qual pode ser o rumo para os liberais, para vencer as intercalares, mas sobretudo garantir que o próximo presidente será democrata?
Pelo menos para já, a reação está a ser feita à esquerda, por Bernie Sanders e Alexandria Ocasio-Cortez, com o movimento Fighting Oligarchy, que tem conseguido juntar multidões de 30 a 40 mil pessoas em comícios. Mas é preciso ter em conta que o atual panorama político na América - com Trump na presidência, as duas câmaras do Congresso controladas pelos republicanos e maioria clara dos conservadores no Supremo - torna o papel da oposição muito difícil para os democratas. E não apenas para os democratas. Atendendo à gravidade das medidas irresponsáveis desta presidência irresponsável, a apatia dos republicanos, que juntam a maioria nas duas câmaras do Congresso, perante as decisões do presidente, vergando-se obedientemente ao poder do chefe, é constrangedora e reforça os piores receios de que os EUA caminham, rapidamente, para um sistema de “ditadura presidencial”. Quem pode avançar do lado democrata nas presidenciais de 2028? Vai depender muito do que acontecer nas intercalares 2026, mas diria que é mais possível vencer com alguém do estilo de Josh Shapiro, governador da Pensilvânia, ou Gretchen Whitmer, governadora do Michigan, para mais dois estados decisivos na eleição geral. Mas devemos também prestar atenção ao desafio que está a ser feito na Califórnia pelo governador Gavin Newsom, numa espécie de “grande resistência” legislativa e judicial às piores decisões da Administração Trump.
Acaba de lançar O Colapso da Verdade, com o subtítulo “a reeleição de Trump e o risco democrático da Europa e no mundo”. Mais quatro anos de governo Trump ameaçam mesmo a democracia americana ou os checks and balances, criados pelos Pais Fundadores vão limitar o seu impacto?
Donald Trump junta traços de populismo claramente identificáveis (culto da personalidade, culpabilização das elites, ligação direta do líder carismático com “o povo”, ataque aos poderes capazes de contrapor o poder do presidente) com um uso hábil e, por vezes, abusivo das novas plataformas de comunicação política, pela via tecnológica. Até Trump 2.0, todos os presidentes americanos (Trump 1.0 incluído), tentaram minimizar a ascensão das autocracias e a perda de influência das democracias. A atual Administração americana não só não tenta proteger as democracias liberais como, na verdade, as ataca, alinhando com as autocracias em temas fundamentais. Trump está a destruir décadas de alianças altamente frutuosas para a força da América e a desfazer um posicionamento que colocava os EUA como espécie de “império por convite”, tão atrativo era para boa parte do mundo o seu poder de influência. A Casa Branca de Trump não esconde que o seu chefe gostava de ser tratado por Rei. Logo na América, a República Constitucional Federada, que foi pensada para evitar monarquias absolutas. Sim, acho mesmo que Joe Biden pode ter sido o último presidente dos EUA claramente liberal. Os próximos meses e anos serão uma soma de alta tensão de constantes ataques do poder presidencial aos checks and balances, que até agora funcionaram porque havia o pressuposto de que iriam ser respeitados. Se em apenas 100 dias essa garantia deixou de ser clara na sociedade norte-americana, creio sinceramente que o risco da democracia sair seriamente abalada até ao resto deste mandato presidencial existe. Estamos a entrar em território desconhecido - e o que acontece na América nunca fica na América.