Jornalista e escritor, Taghi Ramani sofreu na pele a repressão do regime fundamentalista religioso. Desde 1981, dois anos depois de Ruhollah Khomeini se tornar o guia supremo do Irão, Ramani foi preso em várias ocasiões por defender a modernização religiosa no seu país. Devido ao ativismo político foi impedido de prosseguir os estudos universitários e de trabalhar para o Estado. Acabou por tomar a decisão de se exilar em França em 2012 quando soube que o regime tinha mais quatro acusações contra si. Em 1999 casou-se com Narges Mohammadi, que tinha sido libertada após cumprir a sua primeira pena de um ano de prisão. Com dois gémeos nascidos em 2007, a engenheira física foi despedida e perseguida devido às suas atividades no Centro de Defesa dos Direitos Humanos. Ao contrário do marido, Narges optou por ficar no país. Em 2021, iniciou uma campanha na cela contra o confinamento solitário, a chamada tortura branca. Além da sua experiência, conseguiu recolher testemunhos de outras 12 detidas no livro Tortura Branca, o que lhe valeu a 12.ª detenção e o quarto confinamento solitário. Apesar do precário estado de saúde, juntou-se ao movimento Mulheres, Vida, Liberdade contra a imposição do véu islâmico. Há um antes e um depois para si com a entrega do Prémio Nobel? Para mim e para a Narges não existe esse antes e depois. O objetivo desse prémio é dar a voz à mensagem que temos para divulgar. Quando se consegue chegar a mais ouvidos consegue-se ter mais influência. E agora há essa possibilidade. E tanto a Narges como eu temos que aproveitar essa oportunidade para fazer chegar a voz do povo iraniano. .A sua vida quotidiana não sofreu alterações grandes? Tem sido mais difícil porque há mais críticos, mas também mais pessoas que nos apoiam. É mais interessante e desafiante. Nós tivemos uma vida cheia de aventuras. Mas não como os atores de Hollywood. .E quais foram as consequências para a Narges? Desde então adicionaram mais dois anos de pena à que tinha. Negaram-lhe acesso ao contacto com os familiares que estão no Irão. Não tem acesso a visitas de ninguém. O regime iraniano vê o Prémio Nobel como um prémio político e, por isso, tem dificultado ainda mais a vida dela..Qual foi a última vez que os seus filhos conseguiram contactar a mãe? Há dois anos. Desde que voltou a ser presa não tiveram mais acesso. Há nove anos que não veem a mãe. E eu não a vejo há 12 anos. É um castigo, é uma tortura desumana. O regime iraniano quer impor essa tortura como uma forma de vida constante. .No ano passado, o embaixador iraniano em Portugal disse-me numa entrevista que a Narges tinha acesso à internet e ao mundo livre. E que quer ela quer outros laureados com o Prémio Nobel da Paz nunca disseram nada sobre a Palestina. Qual o seu comentário? A posição da Narges sobre a Palestina é muito clara. Como um Prémio Nobel da Paz, ela procura a paz tanto para os israelitas como para os palestinianos. O que o regime iraniano quer é que seja o seu ponto de vista sobre a Palestina a prevalecer. Defender a Palestina é uma espécie de armadilha. O que eu e a Narges pensamos sobre essa situação é que deve haver dois governos e deve haver paz naquela terra, enquanto do ponto de vista do regime há que eliminar o povo israelita. Embora seja sempre o povo israelita a matar mais os muçulmanos do que o inverso, a paz pertence a ambos. Tal como Netanyahu é um problema atual na região, Khamenei é outra parte do problema. Muitas vezes os inimigos são muito parecidos um com o outro. O Irão ajudou a Síria porque o povo sírio queria acabar com o regime, mas o regime iraniano ajudou a ditadura da Síria a manter-se à força sobre o seu próprio povo. Rahim Safavi, que é um dos líderes dos Guardas da Revolução, disse: 'Nós chegámos três vezes ao Mediterrâneo. Uma vez na altura de Alexandre, o Grande, outra na altura de Dário e agora com Khamenei'. Se acusam os EUA de imperialismo isto também não está correto. Se nós somos um país com ideais de expansão territorial então estamos a fazer parte do problema e não parte da solução. Por exemplo, no Iraque existe um grupo de forças patrocinado pela Arábia Saudita e outro pelo Irão e esses dois grupos combatem-se um ao outro dentro do território do Iraque. Os Estados Unidos tiram proveito, continua-se a vender armamento e a nossa posição económica piora. E de certa forma, o próprio embaixador do Irão em Portugal e o Irão são parte desse problema. Neste momento estamos sob severas sanções económicas. Essas sanções estão a prejudicar mais o povo do que o próprio regime. [Joe] Biden autorizou o regime a vender mais petróleo à China, mas esse dinheiro não vai para o povo, vai para o regime. É a classe média que tem aspirações para a democracia e as sanções e a pobreza estão a destruir a classe média iraniana. Durante 16 anos tivemos dois presidentes, Khatami e Rouhani, que tentaram fazer algumas reformas em prol do povo. Mas Khamenei impediu-as. Chegou até ao Mediterrâneo, mas não sabe dizer o que deu ao seu próprio povo em troca disso..E em relação ao comentário do embaixador sobre as condições da prisão da Narges? Eu estive durante 14 anos em Evin. É uma prisão de uma imensidão gigante. Tem alas separadas. Narges está na ala das presas políticas, onde há quatro celas e 70 mulheres. Têm acesso ao jornal e à televisão do regime. Os serviços prisionais dão um cartão de telefone onde estão configurados os números para os quais tem autorização para fazer chamadas. Se tentar ligar para outro número é bloqueado. Narges podia telefonar para duas pessoas, o irmão e a irmã. Há sete meses tiraram-lhe esse direito. Acha que isso é acesso livre ao mundo e à internet? O regime também diz que os prisioneiros que se portam bem têm autorização para sair em precária três dias por mês, mas é uma farsa. Neste momento, sem acesso a visitas e sem aceitar usar o véu não dão autorização para ser vista pelos médicos. O acréscimo da pena, quer em janeiro quer agora foi feito em tribunal sem a presença da Narges..Essa nova condenação vem na sequência, entre outras coisas, de um apelo que Narges fez para o boicote às eleições parlamentares. Um dos motivos prendeu-se com isso, o outro motivo é que a Narges denunciou o abuso sofrido por uma mulher, Dina Ghalibaf, quando foi detida..Tem esperança de que a sua mulher venha a ser um dia libertada? Nós vivemos com a nossa fé e a nossa esperança. A Narges tem uma energia infinita. Eu quero que o mundo olhe para o caso da Narges e que isso venha a ser uma ajuda para a sua libertação. Se ela for libertada, também pode ajudar a liberdade iraniana porque ela tem tentado ser a voz daqueles que não são ouvidos. .Em relação às eleições presidenciais de sexta-feira, há condições para que o candidato reformista, Massoud Pezeshkian, vença? Terá condições para fazer reformas? Massoud Pezeshkian, na verdade, aparenta ser uma boa pessoa e de bons princípios. É um reformista, contudo o próprio diz que a sua linha vermelha é a manviat, ou seja, as palavras da liderança do Irão. E a liderança do Irão não tem relação com a democracia e a liberdade. Se a linha vermelha é não pisar as palavras do líder religioso, então por mais boa pessoa que seja, não entendo que tipo de reforma ou de benefício poderá trazer para o país. Há reformistas que pensam que no dia em que o líder morrer, pela idade avançada que tem, será possível avançar com as reformas. Nada disso é claro para o povo iraniano. Nem a morte de Khamenei. O povo quer resolver os seus problemas hoje. Em redor de Khamenei não há pessoas que tenham interesse em soluções no sentido reformista. Esses são Ghalibaf, o presidente do parlamento, e Jalili, o conselheiro de topo de Khamenei. A grande luta política será entre esses dois que sabem que, depois de Khamenei, o presidente é quem transita para líder religioso e fica com o poder na mão. Mas existe a possibilidade de Khamenei fazer com que esse reformista venha a ser o presidente do país por meros interesses próprios de diminuir as sanções e de aliviar as tensões do povo contra o regime. O nosso problema é a democracia e a liberdade. De nada vale atenuarmos a nossa relação com a comunidade internacional e continuarmos a ter uma ditadura. Isso não tem nenhum benefício, nenhum valor para a população. Gostava muito que o Khamenei fosse afastado, tal e qual como o salazarismo em Portugal..Uma mudança só é possível com uma revolução? Algo parecido com uma revolução. Um novo líder religioso que esteja disponível para as reformas. A resistência continua no meio do povo e essa resistência pode trazer algumas formas de mudança. Temos de ultrapassar o atual regime e a atual Constituição do país, mas enquanto Khamenei estiver vivo não haverá qualquer reforma, a não ser que apareçam milhões de pessoas na rua a criarem uma nova história. Deve haver uma revolução mas não será como a francesa, nem a bolchevista, nem a islâmica de 1979. A revolução é necessária, mas a forma de revolução deve ser nova. Ainda não existe a forma, não está traçada a forma de acontecer esta revolução. .Há pouco criticou a lógica das sanções. Tendo isso em conta, o que é que o Ocidente pode fazer para ajudar o povo iraniano? Os países ocidentais não têm uma visão de como querem liderar. Neste mundo, no meu telemóvel provavelmente não vou conseguir falar com o meu amigo que está no Irão, mas se estiver nos Estados Unidos consigo. Não é justo que se crie uma zona onde há ditadura e onde se vai buscar petróleo barato e no seu próprio país haja todas as condições. É por causa do petróleo barato que os países ocidentais mantêm essas políticas para países como o regime iraniano. Esses países alimentam guerras e em consequência as pessoas fogem para a Europa. Qual é a solução? Investir nos países circundantes para criar condições para que esses imigrantes não venham para cá. Prevê-se que mil milhões irão emigrar por causa das alterações climáticas. Se 100 milhões dessas pessoas quiserem vir para a Europa é o suficiente para alterar a harmonia. Enquanto isso a extrema-direita aproveita-se para destruir a democracia. Nós estamos todos no mesmo barco. Mas esse barco tem vários níveis. Se afundar, afundamos todos. .cesar.avo@dn.pt