A recente Conferência das Nações Unidas sobre biodiversidade teve lugar em Cali. A Colômbia é um país que apresenta uma grande diversidade de paisagens, pois tem litoral nas Caraíbas, também litoral no Pacífico, tem ainda os Andes e também a Amazónia. Mas aproveitar essa riqueza natural é um desafio. Fala-se muito, por exemplo, sobre a necessidade de encontrar alternativas ao cultivo da coca, para combater o narcotráfico. É concretizável?Vou só tentar contextualizar o que significou para nós colombianos organizar esta COP16 sobre biodiversidade. Inicialmente, estava planeada para decorrer na Turquia, mas por causa de um terramoto informaram que já não a podiam realizar. E nesse momento a ministra do Ambiente, Susana Mohammad, levantou a mão e oferece o nosso país para ser o anfitrião. Tivemos oito meses para preparar este evento. Um evento, além disso, que sentimos dividir a história da Colômbia em duas, porque é o primeiro, digamos, de estatura internacional que a Colômbia organizou nos últimos 50 anos. E foi um evento muito importante porque não permitiu apenas uma articulação a nível do governo nacional, entre os vários ministérios, mas também porque conseguimos trabalhar com a câmara de Cali, com o Governo de Valle del Cauca. Portanto, foi um evento que permitiu a cada pessoa, a cada entidade, contribuir com o seu conhecimento e experiência. E foi, digamos, uma experiência que não só fez a cidade de Cali falar sobre biodiversidade, sobre a importância de proteger as nossas riquezas, mas também gerou um debate a nível nacional. Somos o país com maior biodiversidade por quilómetro quadrado. E foi também um exercício muito importante porque o apelo à ação não foi feito apenas a nível estatal. Como Governo entendemos que a forma de fazer a paz com a natureza não é só através dos Estados, mas principalmente a partir da participação ativa dos cidadãos, e foram milhares os participantes. Queremos que as pessoas compreendam que todos temos um papel a desempenhar na preservação da nossa biodiversidade..Insisto na questão da coca, pois se é verdade que a Colômbia, graças também à natureza deslumbrante, tem um enorme potencial turístico, muitas comunidades indígenas do país ainda não veem, para já, uma alternativa ao cultivo tradicional da folha de coca.Indo diretamente à questão da coca, nós na Colômbia, juntamente com o Governo da Bolívia, estamos agora a promover uma reclassificação da folha de coca. Existe um estereótipo sobre a folha de coca por causa de certos usos específicos que lhe foram dados. Temos uma embaixadora, Elizabeth García, que é atualmente embaixadora na Bolívia, que é da comunidade arhuaco, que vive no norte da Colômbia, em Sierra Nevada de Santa Marta, e que conta que a folha de coca é a principal diplomata das comunidades indígenas, porque é uma folha que no consumo tradicional que lhe dão essas comunidades permite iniciar conversas. Facilita, digamos, a amizade com as pessoas, sendo um meio fundamental para as comunidades indígenas interagirem. E, nesse sentido, o que estamos também a promover em conjunto com o Governo da Bolívia é precisamente uma reclassificação dos usos da folha de coca. Estamos a falar de mais de 40 utilizações que podem ser obtidas desta planta, e não só utilizações tradicionais, mas também de novas utilizações comerciais. Produtos de beleza, por exemplo, que também temos interesse em divulgar..É uma alternativa não ao cultivo da folha de coca, mas à produção até agora destinada aos produtores e traficantes de cocaína?Exatamente. A folha de coca não é cocaína. A cocaína é um derivado que surgiu a partir daí. Acreditamos que há potencial nesta planta: do ponto de vista ancestral, pelo que representa para as comunidades indígenas, mas também pelos diferentes usos comerciais possíveis. Então, nesse sentido, este exercício, este apelo à paz com a natureza, implica ser capaz de reconhecer todas estas potencialidades e todos estes usos que têm os produtos que infelizmente foram estigmatizados por usos específicos que foram derivados, neste caso, da folha de coca..As conversações de paz com a guerrilha das FARC há alguns anos, promovidas pelo então presidente Juan Manuel Santos, e os acordos com outros grupos armados têm tido resultados no terreno? Trouxeram além da paz, também o recuo do narcotráfico?Estamos a celebrar oito anos desde a assinatura do acordo de paz do Teatro Colón. Claro que é um caminho, digamos assim, e não tem sido um caminho fácil. Viemos de 50 anos de conflito interno, com uma das guerrilhas mais antigas da América. É uma paz imperfeita, mas não há processos de paz perfeitos. Há também algumas lições aprendidas apesar dos desafios que ainda temos em termos de consolidação da paz e, portanto, isso também é central na agenda deste Governo, a insistência em fazer a paz. Não já com as FARC, mas com os outras organizações que subsistem ativas, o ELN e outros grupos ilegais que estão à margem da lei. E nesse sentido, na questão da promoção deste processo de paz, temos para mostrar muitos casos de pessoas que regressaram à vida civil, ex-combatentes das FARC que hoje têm iniciativas empresariais, por exemplo, a nível do café..A origem de guerrilhas revolucionárias como as FARC e o ELN, que também se envolveram no narcotráfico, tem muito a ver com o facto de a Colômbia, embora por tradição fiel à democracia, ser um país com graves problemas de desigualdades sociais. Com esta presidência de Gustavo Petro, um político de esquerda, antigo guerrilheiro, existe um combate especial a essas injustiças sociais que vêm de trás?Sim. Aliás, uma das principais origens do conflito armado interno na Colômbia, sobretudo com as FARC, estava relacionada com as questões da terra, da propriedade da terra. É preciso uma reforma agrária e temos essa tarefa pendente enquanto sociedade. Venho precisamente de estar em Roma. Acabámos de reabrir a nossa delegação depois de 25 anos. A Colômbia não tinha, digamos, representação exclusiva para as questões da FAO, do Programa Alimentar Mundial. Essa embaixada foi reaberta há seis meses e, no âmbito deste processo, estamos a trabalhar para garantir que a Colômbia será a sede da Segunda Conferência Internacional sobre Reforma Agrária. Porque é essencial para o país que a reforma agrária possa ser realizada, que as questões da posse da terra possam ser analisadas, que as terras produtivas possam estar nas mãos dos camponeses. Isto é muito importante e central para este Governo e, neste sentido, estar na FAO e poder realizar esta Conferência Internacional sobre Reforma Agrária permite-nos, mais uma vez, fazer a discussão destas questões, que na Colômbia é mais complexa do que parece. Porque há uma tradição de concentração fundiária. E novos desafios. Por exemplo, quando as FARC saem de algumas regiões do país e o Estado não chega lá, impõem-se outros grupos armados que estão instalados nesses territórios e que não têm permitido que o processo de restituição de terras decorra da forma que o Governo espera..Quando falamos da Colômbia, falamos muito do problemas das comunidades indígenas e menos dos afro-colombianos. Com a vice-presidente Francia Márquez é a primeira vez que um afro-colombiano está tão próximo do topo do Estado. Isso também significa que com este Governo se está a fazer um esforço para integrar mais os afro-colombianos?Claro. Como mencionou, a Colômbia é infelizmente um dos países mais desiguais da América Latina. Temos uma dívida histórica para com as comunidades indígenas e também para com as comunidades afro-colombianas. As comunidades indígenas e afro-colombianas têm os seus territórios nas zonas mais pobres da Colômbia, nas zonas onde ainda hoje temos indicadores de educação de baixa qualidade. Nestas zonas, o acesso aos serviços é extremamente limitado. Por exemplo, o departamento de Chocó, que é um dos departamentos com maior população afro-colombiana e indígena, tem problemas de ligação à Internet. Neste momento, poder-se-ia pensar que isto já não é possível, termos uma região tão desconectada, por exemplo, da Internet, mas ainda acontece. E isto deve-se a esta dívida histórica, e a um racismo estrutural que não é de agora. Este Governo está empenhado em construir um país mais equitativo, mas temos 200 anos de atraso na concretização plena do ideal republicano. Neste sentido, ter uma mulher como a vice-presidente Francia Márquez, que vem de projetos comunitários e sociais, não só no seu departamento de origem, o departamento de Cauca, mas também em todo o país, é muito importante, porque precisamente ela é responsável não só pela vice-presidência, mas também pelo Ministério da Igualdade e Equidade, o primeiro ministério que existe no país focado precisamente em colmatar o fosso da desigualdade entre géneros, entre as populações afro-colombianas e indígenas, os jovens, os adultos mais velhos, as populações diversas e sexualmente diversas. É muito importante porque precisamente a agenda que tem está focada nestas questões da desigualdade, para podermos dar passos que nos permitam fechar um pouco estas brechas históricas de desigualdade, de exclusão, de racismo, que obviamente não vão desaparecer de um dia para o outro. E este Governo é também um Governo de mudança, e de mudança em todos os sentidos, ao dar voz a quem não tinha voz, ao dar aos setores da população tradicionalmente excluídos um espaço à mesa onde são tomadas as decisões. Portanto, temos a primeira vice-presidente negra da Colômbia, mas também temos o primeiro ministro dos Negócios Estrangeiros afro-descendente, Luis Gilberto Murillo, do departamento de Chocó. Eu, por exemplo, sou de uma comunidade chamada San Basilio de Palenque, que é uma comunidade localizada a 40 minutos da cidade de Cartagena, uma comunidade fundada por cimarrones, pessoas que chegaram escravizadas à Colômbia e que lutaram contra os espanhóis para conseguir a liberdade. San Basilio de Palenque é considerada a primeira cidade negra livre da América, porque foi uma cidade que não se vergou aos esclavagistas, foi uma cidade que lutou pela liberdade e foi uma comunidade que recebeu todas aquelas pessoas que estavam numa condição difícil, de escravização para que pudessem ser livres. A coroa espanhola não conseguiu dominar San Basilio de Palenque, e teve de a reconhecer como território livre. Temos mesmo um crioulo, o palenquero, do espanhol mas com influências também do português..Uma última questão, sobre as relações internacionais. A Colômbia tem muitos desafios . Por exemplo, o agravamento da crise na vizinha Venezuela traz muitos imigrantes para a Colômbia. Mudanças na política externa dos Estados Unidos também são previsíveis. Como reage a Colômbia a este contexto internacional?Pois bem, primeiro temos uma relação muito boa com os Estados Unidos, que são os principais parceiros comerciais. Temos também feito um trabalho muito bom em torno da migração. Recebemos mais de três milhões de imigrantes, na sua maioria venezuelanos, mas também de outras nacionalidades. E o que este Governo tem feito para lhes dar garantias de poder estabelecer mecanismos que lhes permitam, com base na identificação, inserir-se na sociedade colombiana, é um exercício que tem sido reconhecido a nível regional e internacional. O compromisso da Colômbia com a migração tem reconhecimento internacional. Recentemente, por exemplo, aprovámos o projeto PEP Tutor, que basicamente também está a ajudar um pouco a regularizar a situação dos pais ou acompanhantes de menores venezuelanos na Colômbia. E nesse sentido, destaco também o trabalho que tem sido feito com os Estados Unidos, e com o Panamá, sobre toda a questão da selva do Darién, que serve de rota migratória. Trata-se de um mecanismo tripartido que existe precisamente para poder continuar a identificar formas de colaboração e cooperação para dar um pouco mais de dignidade à questão da migração. Para a Colômbia, a migração não é ilegal. Reconhecemos sim que existe uma situação de irregularidade nos processos de imigração. As pessoas não migram porque querem. Na maioria das vezes, os migrantes respondem a situações socioeconómicas ou a algumas situações políticas. E é por isso que temos insistido em continuar a reforçar estes mecanismos migratórios como resultado de tudo o que está a acontecer no Darién, com todos os países através dos quais vemos originar estas caravanas de migrantes em direção aos Estados Unidos, e com os Estados Unidos também. E esperamos continuar a colaborar nesse sentido com os Governos e as administrações de ambos os países.