Como é que a defesa dos direitos humanos entra na sua vida, levando-o desde Vila Nova da Barquinha onde nasceu até diretor-geral da Amnistia Internacional - Portugal?Acho que foi em Coimbra. Quando comecei o curso [Economia], comecei a envolver-me na Associação Académica e muito rápido me liguei aos direitos estudantis. Toda a história de Coimbra sempre me impressionou. A partir daí, com a vontade que tinha de ajudar os outros, tive ali o dilema entre a ajuda mais automática e o mudar as coisas. Vim para Lisboa, tirei o mestrado na área da Cooperação e Desenvolvimento e tive a minha primeira oportunidade com as Nações Unidas em Timor. E a partir daí continuei a fazer o meu caminho, mais para a área humanitária, de resposta automática de emergência, menos para a área humanista. Durante muitos anos trabalhei com os Médicos Sem Fronteiras, em contextos de guerra, sobretudo, e contextos onde as violações dos direitos humanos eram imensas. E, ao final de muitos anos, com uma paixão enorme pelo que fiz, percebi que queria fazer um pouco mais. Queria não só ajudar, não só aliviar o sofrimento, mas também fazer parte de uma mudança. E é aí que os direitos humanos voltam e me permitem tentar seguir diferentes maneiras de fazer esse impacto. A Amnistia surge depois nesse contexto.Há algum momento que o tenha marcado no seu tempo nos Médicos Sem Fronteiras? Muitos. Na República Democrática do Congo, em Salamabila, uma região onde existem diferentes minas, de ouro e outros minérios, e que é muito disputada por grupos armados, alguns patrocinados por multinacionais outros pelo governo. Em 2018, ouvimos que havia conflitos. Fomos e quando chegámos havia cerca de 150 mulheres que tinham sido violadas no último mês. Foi um momento marcante e, claro, demos todo o apoio a nível médico, a nível psicossocial. Conectámos, na altura, com o Dr. Denis Mukwege, que entretanto ganhou o Prémio Nobel da Paz, que tinha um centro de recuperação. Porque estas mulheres, para além do sofrimento que tinham tido, para além das consequências físicas e psicológicas, eram expulsas das suas comunidades, não eram aceites de volta. Portanto, havia ali uma série de elementos que a Médicos Sem Fronteiras sozinha também não podia trabalhar. Claro, podemos ajudar no pós, mas há um trabalho muito importante a fazer no pré. E é por isso que estou aqui também.Olhando então para o desafio da Amnistia Internacional - Portugal. Quais são os seus objetivos?A Amnistia está em Portugal há décadas, mas talvez este seja o momento mais importante de sempre para a Amnistia. Estamos num período em que o mundo desliza para políticas autoritárias, mas não é só lá fora, também o vemos cá dentro. Um exemplo disso agora, por exemplo, o tipo de consultas que são feitas para alterações curriculares na educação para a cidadania. Está tudo dentro do que é regulamentado, mas não se pode dizer que existe uma democracia de facto quando se pretende alterar uma lei e se faz um período de consulta, e as pessoas que vão ser consultadas são maioritariamente professores, no final de julho, princípio de agosto. Temos que perceber o que é que está a acontecer. Existe, claro, este deslize para políticas autoritárias, existe um discurso de ódio cada vez maior, existem retrocessos a diferentes níveis, seja a nível laboral, seja a nível de saúde pública, e lá fora, claro, vemos o que está a acontecer nos diferentes países e a erosão de instituições multilaterais.Mas os direitos humanos estão em risco em Portugal?Sem dúvida. Nunca estiveram tanto em risco desde o 25 de Abril. Estamos num momento de viragem de página e tem que ser a sociedade civil, tem que ser a população portuguesa a decidir para que página quer virar. Neste momento temos grupos de pessoas que nos querem influenciar numa direção que não é a direção dos direitos humanos. E a Amnistia tem que, junto com a sociedade civil, puxar na direção contrária.Há interesse das pessoas nisso?Claro que há interesse. Todas as pessoas acreditam nos direitos humanos. Mas se calhar os próprios, não os dos outros...É preciso também que compreendamos todos que os direitos humanos, para serem realizáveis, têm que ser universais, têm que ser para todos. Quando atacam os direitos humanos de um, atacamos os direitos humanos de todos. E é isso que temos que entender e é isso que a Amnistia também tenta dialogar com a sociedade civil e é para aí também que a Amnistia é muito importante. Porque num momento em que existe tanta propaganda, existe tanto discurso de ódio, tanta desinformação, são precisas organizações como a Amnistia que trazem para a discussão factos. E que conseguem desconstruir esta desinformação.Mas num momento em que numa Assembleia Nacional temos um segundo maior partido que está a espalhar essa desinformação, como é que se consegue responder a isso?A desinformação compartilhada por um segundo maior partido na Assembleia tem que ser combatida por todos os outros partidos, que são partidos que se dizem democratas e a favor da boa informação e da boa explicação. E esses ainda são 75% do Parlamento. Portanto, têm também uma responsabilidade. Nós, enquanto Amnistia, estamos prontos para ser consultados, estamos prontos para contribuir com a nossa perícia em diferentes situações, estamos prontos para falar com o Ministério dos Negócios Estrangeiros e explicar como é que, com a nossa investigação, acreditamos que há um genocídio a acontecer em Gaza, quando o governo português ainda não o consegue reconhecer. Estamos prontos para desempenhar esse papel.Cada vez que sai um relatório da Amnistia, no meio de outros problemas em Portugal, estão sempre as prisões. Há anos. Há o alerta, mas parece que nada é feito. Como é que se consegue passar de identificar o problema à ação?Isso é um dos grandes desafios meus e da nova direção, porque a mudança é feita através de chamadas de atenção, através de relatórios e de informação, de factos que são postos cá fora, mas também é feito construindo pontos com os órgãos decisores, com os decisores políticos. E isso é uma coisa que eu pretendo fazer. Na verdade já enviámos comunicação, desde que eu cheguei, a diferentes decisores políticos, incluindo a liderança do sistema prisional. Estamos prontos a dialogar e há aqui um problema importante, porque a Amnistia é um eixo de resistência contra o autoritarismo e contra a desinformação, mas também tem que ser um parceiro forte de diálogo, de compreensão, de estabelecer pontos e de mudar políticas com os decisores políticos, sejam de esquerda ou de direita, porque os direitos humanos não são de esquerda nem de direita, são de todos nós. . Falou do genocídio em Gaza. Seguindo o exemplo de França e do Reino Unido, Portugal parece preparado para reconhecer o Estado Palestiniano. Parece-lhe uma boa ideia?A Amnistia não tem uma posição sobre o reconhecimento de Estados. Agora falamos de Gaza, mas já falámos de outros. Embora na Amnistia sempre se fale da Palestina enquanto Estado da Palestina, não temos esta política de promover quaisquer que sejam as soluções. O que a Amnistia diz é que Estados ou não Estados, exércitos regulares ou grupos armados, todos têm de cumprir os direitos humanos e as Convenções de Genebra, Direito Internacional e Humanitário, e é aí que nós pomos a nossa posição. Mas há muita coisa que o Estado português já podia ter feito e ainda não fez. Como assim, por exemplo? O reconhecimento que existe um genocídio a acontecer, uma posição forte na União Europeia contra o acordo comercial com Israel, continuar medidas como foi agora, por exemplo, a questão do programa Horizon Europe. Israel foi cortado, mas é uma medida simbólica no número de coisas que a União Europeia e o Estado português deviam promover. Existem diferentes coisas que devem fazer, basta pensarmos na maneira como tratámos a Rússia quando a Ucrânia foi invadida e na maneira como tratámos Israel neste caso. Bastava fazer igual. Mas no caso de Israel houve o ataque do Hamas. Não teme, na defesa dos palestinianos, ser acusado de ser pró-Hamas?Estamos num mundo muito polarizado, às vezes esta discussão acontece, mas eu ainda acredito que para ser contra uns não tem que ser pró os outros. Aliás a Amnistia, nos maiores conflitos que temos agora e nos mais mediáticos, o ataque da Rússia à Ucrânia e o conflito Israel-Palestina, em ambas as situações a Amnistia já falou de ambos os lados, e da necessidade de ambos os lados respeitarem os direitos humanos. Agora o que não se pode querer é que a Amnistia venha a falar 50% do tempo do Hamas e 50% do tempo de Israel, porque não é assim que está a acontecer. [O secretário-geral das Nações Unidas] António Guterres dizia no início, os ataques do Hamas não aconteceram num vácuo...E ficou debaixo de fogo por isso...Os ataques foram criticados, são sempre criticados, quaisquer que sejam os ataques, seja de Israel, seja do Hamas, seja de algum dos outros grupos que existem na Palestina. São sempre investigados, analisados e criticados quando têm de ser criticados pela Amnistia. Ser contra o extermínio que Israel está a fazer não quer dizer que seja pró-Hamas. A Amnistia é pró-direitos humanos, só isso.Falou também da situação na Ucrânia. Que áreas considera críticas nesse conflito?Na Ucrânia há um conflito que se arrasta. Eu estive na Ucrânia em 2022, no início da guerra. Cheguei a Kiev quando as tropas russas saíam da periferia e vi bem o que são os ataques a civis, vi bem, estive lá quando foram os primeiros ataques às estações de comboio e às linhas de eletricidade, vi bem o que são os ataques às infraestruturas civis e é isso que temos vindo a ver ao longo dos tempos. Já passaram três anos e continuam esse tipo de ataques?Exatamente, continuamos com esse tipo de ataques. Havia, penso eu, uma estratégia da comunidade internacional, que agora foi parada pela mudança de rumo político nos Estados Unidos..Que impacto é que tem o regresso de Donald Trump à Casa Branca em termos de deterioração geral dos direitos humanos, não só na América, mas a nível global?O efeito Trump tem sido e vai continuar a ser nefasto para o dito Ocidente, para a Europa, por diferentes razões. Por um lado, porque as políticas autocráticas, a maneira de tomar a decisão, o desrespeito e o retrocesso nos direitos humanos, da forma como a propaganda é feita à volta disso, normaliza um comportamento ao qual já não estávamos habituados. E claro que temos em Portugal e no resto da Europa forças políticas ou figuras políticas que querem também aproveitar-se desses efeitos para atingir os seus próprios objetivos de dominação, de poder, de retrocesso de direitos humanos, de controlo da sociedade civil. No momento em que estamos todos interconectados, tudo tem ligações, tudo tem consequências, umas coisas sobre as outras. E corre-se o risco de a Carta de Direitos Humanos passar à história, de se querer uma revisão daquilo que nós consideramos os direitos humanos básicos?Podemos falar sobre a Carta dos Direitos Humanos, da mesma maneira como falamos agora sobre as Convenções de Genebra. Não sei se correm o risco de serem alteradas, mas todos os dias as vemos desrespeitadas. Portanto, a sua alteração ou não... O problema é como as coisas estão a avançar, como as coisas mudaram nos últimos anos, em termos de como as guerras são conduzidas, o que é que é permitido. A partir do momento em que os Estados que estiveram na base da criação das Convenções de Genebra não as respeitam, ou admitem que elas não sejam respeitadas, como está a acontecer, não podemos esperar que grupos que nunca as respeitaram e que nós advogávamos que tinham que as respeitar, porque eram as Convenções de Genebra, que o façam também. Portanto, a partir do momento em que quem cria as regras as começa a quebrar, as regras deixam de existir. E isto acontece no Direito Internacional Humanitário, e claro, temos muito receio que também aconteça na Carta dos Direitos Humanos. Para acabar, o que é que cada cidadão pode fazer para tentar ajudar a mudar a situação? Acho que a informação é muito importante. Informarmo-nos, tentarmos ter fontes fidedignas. Há muito barulho nos meios de comunicação social, nas redes sociais, tudo se mistura. Criar as próprias opiniões baseadas em diferentes fontes e obviamente seguir determinados núcleos, sejam organizações dos direitos humanos, sejam agências de informação, que possam trazer factos para a discussão. E isso é importante. É importante contrastarmos esses factos com o que são rumores, com o que são opiniões, definir o que é que é informação e o que é que é opinião. Isso também, a comunicação social tem um papel importante a desempenhar.