"Se o mundo não conseguir parar Putin nesta agressão à Ucrânia, o próximo vai ser a Geórgia" 

Veio a Portugal apresentar o romance <em>Onde as Peras Caem</em>, mas a guerra iniciada pela Rússia a 24 de fevereiro acabou por ser o grande tema da conversa com Nana Ekvtimishvili, pois não faltam pontos em comum com a experiência pessoal da escritora georgiana.
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Sei que nasceu em 1978 e que tinha, portanto, 13 anos no momento da desagregação da União Soviética e da recuperação da independência pela Geórgia. Nessa altura, sendo uma adolescente, foi fácil compreender que iria haver tantas mudanças para si enquanto jovem e para a população em geral? Foi um momento de otimismo?
Para mim, como para as outras pessoas, foi uma ideia de novidade. Havia manifestações todos os dias e as pessoas lutavam pela liberdade contra a Rússia.

Liberdade no sentido da luta pela independência?
Independência, sim. Eu frequentava, na altura, um curso extracurricular de escrita para jovens escritores e, junto ao edifício onde o curso era ministrado, havia um edifício governamental, onde havia todos os dias enormes manifestações. Para mim foi um momento crucial a 9 de abril de 1989 quando, durante a noite, apareceu o Exército russo com tanques para acabar com a manifestação e morreram pessoas. Foram cerca de 30 pessoas e a maioria eram jovens. Foi um momento muito marcante para mim, muito visual, que não precisava de explicações, um corte com a história, com o passado, com algumas ideias. Foi muito óbvio. Vi algumas fotografias daquela violência uns dias depois e vi que o Exército russo apareceu, destruiu e matou pessoas que estavam à frente daquele edifício a dizerem que queriam ser livres. Esse dia foi muito importante na minha infância porque fui lá depois com a minha escola para pôr flores em homenagem às vítimas que foram mortas pelo Exército soviético. Alguém mais velho, da minha escola, disse-me para tirar o meu lenço de pioneira e eu não compreendi que o lenço vermelho de pioneira tinha alguma coisa que ver com aquilo. Foi um momento de viragem em que, quando voltei com os meus colegas para a sala de aula, tirei o lenço e deitei-o fora, assim como todos os meus colegas. Foi o momento em que comecei a pensar em que tipo de país vivíamos e o que representavam aqueles símbolos.

Ainda era o Exército soviético, mas em 2008, bem mais perto de hoje, houve também uma guerra com a Rússia. De novo tanques. Também tem memórias dessa guerra?
Sim, sim. Eu estava na Geórgia, em Tbilisi, e vi realmente as bombas a caírem. A casa da minha mãe é perto de todas as instalações militares, que não estavam a funcionar, e vi as bombas a chegarem junto à casa. Foi também um sentimento muito estranho - eu não conseguia compreender como é que eles se conseguiam manter calmos. Eu não tinha feito nada e estava a enfrentar a guerra. É uma coisa muito antinatural. Em 1992, logo após o fim da União Soviética, também houve guerra entre a Geórgia e a Rússia - a Guerra na Abcásia. Eu vivia em Tbilisi, era uma adolescente e o meu pai foi para a guerra. Foi muito difícil, compreender a guerra, é mesmo antinatural.

Ao fazer parte de um país pequeno como a Geórgia, um país muito antigo, mas muito pequeno entre grandes potências, com todo um histórico de relações difíceis com a Rússia, a atual guerra na Ucrânia afeta-a de uma forma pessoal?
Muito, muito pessoal. Eu vivi a guerra de 2008, vi os refugiados, vi as consequências da guerra, mas esta guerra atingiu-me muitíssimo por dentro. Desde o princípio da guerra que me sinto fora da realidade, desequilibrada, adormeço a chorar, porque é brutalidade pura, não tem qualquer fundamento. Tive pessoas da Ucrânia em minha casa em Berlim, onde hoje vivo, e vejo as pessoas comuns, como eu, como você, que querem viver em Kharkiv, em Kiev, e não foi permitido que o seu país escolhesse o seu caminho rumo à Europa. A Rússia quer castigá-los e mostrar-lhes que não têm direito à sua própria escolha. Esta luta também é a minha luta contra a Rússia, a luta dos georgianos contra os 200 anos de colonialismo russo. Foi muito difícil para os georgianos dizerem ao mundo o que se passa - nunca foi muito claro mostrar quem tinha começado a guerra, ou o que acontece naquela região, ou o que fez então o presidente da Geórgia - era como que um cartão da propaganda russa. Agora é muito óbvio. Não há nenhum lado bom nesta guerra, mas a única coisa boa foi que o mundo entendeu finalmente quem é Vladimir Putin e qual é a sua política - é a da violência pura.

Falou de 200 anos do colonialismo russo, e da União Soviética, mas, ao mesmo tempo, um georgiano - Estaline - foi uma das maiores personalidades do regime soviético. Como é que explica que tenha sido possível um georgiano ser líder durante três décadas da União Soviética? Ser georgiano não era importante para o regime comunista?
Não, nada. Estaline nasceu numa cidade georgiana, em Gori, mas identificava-se inteiramente com o regime totalitário soviético e ser georgiano não fazia qualquer diferença.

Ele era mais soviético do que georgiano?
Sim, sim. Há uma pequena quantidade de fãs de Estaline na Geórgia, que têm orgulho no facto de ele ser georgiano, mas para a maioria ele foi um grande criminoso, que fez tanta gente sofrer sob o seu regime. Eu não vejo diferença entre Hitler e outros ditadores que mataram muitíssima gente.

Qual é a sua proximidade como escritora e realizadora, como cidadã, com a cultura russa? Aprendeu russo na escola e ainda fala a língua?
Sim, sim.

A cultura russa - os grandes escritores e músicos - influenciou-a?
Os meus pais inscreveram-me num jardim infantil russo para que aprendesse a língua, pois eu vivia num ambiente onde só se falava georgiano. A língua russa foi para mim uma coisa muito natural, mas não era a língua oficial. Os soviéticos fizeram várias tentativas para transformar o russo na língua oficial. No ano em que nasci, 1978, houve uma tentativa de anunciar a língua russa como idioma nacional, mas houve uma enorme manifestação estudantil na época de Eduard Shevardnadze e, perante a perspetiva de um banho de sangue nas ruas de Tbilisi, aceitaram retirar a proposta e deixar o georgiano como língua oficial.

Mas para além da política, nomes russos como Dostoievski ou Tolstoi são importantes para si? Estabelece uma diferença entre o sistema soviético, e mesmo o russo atual, e o património cultural do país?
Eu fui educada na cultura georgiana, com os escritores georgianos - Rustaveli, Vazha-Pshavela, etc. - provavelmente nomes desconhecidos na Europa até hoje, mas eu fui criada segundo os valores georgianos. A hospitalidade georgiana, a cultura georgiana, a relação da Geórgia com as outras nações, o conceito de liberdade, de solidariedade, são tudo ideias com as quais fui educada. Claro que também aprendi e apreciei muito a cultura russa, mas nunca deixou de ser cultura estrangeira, cultura vizinha, não era a minha. Eu falo e percebo russo, mas a língua em si, a dada altura, percebi que era usada como um instrumento de propaganda no meu país. As pessoas consumiam canais russos de televisão e eles começaram imediatamente a repetir a propaganda de Putin, e, a partir de certa altura, decidi não falar russo no meu país e responder, por exemplo, aos turistas russos em inglês, para tornar claro que a Geórgia não era uma parte da União Soviética nem da Rússia, era um país independente.

Como é que explica esta abordagem pró-ocidental de todos os governos georgianos nos anos mais recentes? Esta ideia de vir a ser um dia parte da União Europeia ou da NATO é um sentimento verdadeiramente partilhado pelo povo?
Sim, sim. Não é apenas um desejo de pertencer à Europa na perspetiva de benefícios económicos ou porque a Europa é bonita, é realmente uma coisa ligada à nossa cultura. Se lermos os escritores georgianos do séc. XII, do séc. XVII ou do séc. XIX, vemos que a ideia de sermos europeus é muito georgiana, muito liberal. Somos um país muito pequeno, que lutou todos estes séculos contra vizinhos e conseguiu sobreviver. E, na minha opinião, sobreviveu devido à ideia de humanidade, de paz e por acreditar no ser humano e na bondade humana. Isso está presente até agora na literatura georgiana. Os outros países têm, por exemplo, monumentos de estadistas, de guerreiros, etc., nós temos monumentos de escritores, e são esses os valores em que acreditamos. Ninguém se lembra de quem foi um estadista no séc. XII, por exemplo, o rei David IV que fez da Geórgia um país forte e unido, mas a maioria dos monumentos que temos hoje no país são de escritores, escritores pobres que não tinham mais nada além do poder da palavra.

Para os portugueses que leem o seu romance agora traduzido em português Onde as Peras Caem ou veem o filme My Happy Family, disponível na Netflix, pensa que depois de verem o filme ou lerem este livro ficam com uma ideia muito mais correta da sociedade georgiana, mesmo sendo ficção?
Penso que está muito próximo da realidade. Continua a ser a minha ideia, mas no caso do filme - onde trabalhei muito de perto com a realização - penso que reflete a Geórgia atual, sim.

A ideia com que fiquei do filme, e de certa forma do livro, foi que a Geórgia continua a ser um país pobre, onde as condições de vida das pessoas são inferiores às da Europa Ocidental, mas ao mesmo tempo parece verdadeiramente ocidentalizado. A ambição da Geórgia é fazer parte do ocidente, principalmente porque sente que pertence ao ocidente?
Sim. Devido aos valores que partilhamos com os ocidentais, com a Europa - a liberdade de expressão, em que podemos dizer aquilo que pensamos, é um valor muitíssimo importante para os georgianos. Agora vimos que o governo atual prendeu um opositor e é uma coisa muito, muito penosa para mim, porque esse canal sobreviveu a tempos muito maus e agora existe e é uma voz muito importante na atual Comunicação Social. Cada ser humano, independentemente da sua nacionalidade, opinião política, religião ou orientação sexual, é único e pode ter a sua vida na Geórgia sem sofrer humilhação, opressão. É assim que eu vejo a Geórgia.

Pensa que o futuro do seu país depende desta guerra na Ucrânia? Acha que a Geórgia vai ser afetada pelo resultado da guerra?
Sem dúvida. Porque se o mundo não conseguir parar Putin nesta agressão à Ucrânia, o próximo vai ser a Geórgia. Nós estamos a enfrentar esta guerra diariamente desde 2008. O resto do mundo dizia: tudo bem, Putin pode ficar com a Crimeia, com a Abcásia, com uma parte da Geórgia... mas não há limites. Nós enfrentamos todos os dias, na região ocupada, o Exército russo, que pôs a fronteira em território georgiano também - são 2 Km, 3 Km - até agora, desde 2008 que continua a acontecer. Os cidadãos georgianos foram raptados e eles pedem dinheiro; aconteceu também em territórios ocupados, onde as pessoas foram simplesmente mortas sem razão; ou, às vezes, pessoas georgianas querem visitar os seus parentes, usam um rio para passar ilegalmente e há lutas diárias se o Exército russo descobre que estão a atravessar a fronteira dos territórios ocupados... pedem dinheiro, licenças ou, se não estão bem dispostos, simplesmente matam-nos. Nós estamos em guerra, agora. Toda eu, em corpo e espírito, respondo a esta guerra na Ucrânia, porque apesar de ter a minha família em Berlim e ter podido vir para a Europa Ocidental e viver cá, sinto a guerra pessoalmente e toda a minha existência se sente ameaçada por esta guerra.

Nana Ekvtimishvili
Dom Quixote
160 páginas
15,90 euros

leonidio.ferreira@dn.pt

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