Scholastique Mukasonga mostra com orgulho o seu cartão de cidadã do Ruanda. “Nenhuma identificação étnica. Nenhuma”, diz. Foi esta uma das decisões imediatas das novas autoridades depois do genocídio de 1994, meses terríveis - abril, maio, junho, julho - em que cerca de um milhão de pessoas foram mortas, sobretudo tutsis, mas também os hutus que os tentaram defender contra os outros hutus, extremistas, que se comportaram como algozes. “O que aconteceu no Ruanda foi um genocídio entre vizinhos”, explica a autora de Inyenzi ou as Baratas, livro que fala da perseguição que sofreu na juventude, na aldeia de Nyamata, no início dos anos 1960, e depois, numa escala incomparavelmente mais mortífera, o que aconteceu à sua família em 1994. Foram 37 os assassinados. “Para eles, éramos baratas, umas meras baratas”.Esta conversa tem um ano. Foi feita durante a edição do Fólio de 2024. O Festival Literário Internacional de Óbidos começou na quinta-feira e foi pretexto para recuperar uma gravação que chegou a ser dada como perdida. Nessa conversa, em francês, Scholastique, que pede que a trate assim, pelo primeiro nome, contou que teve a sorte de ir para o Burundi ainda jovem e mais tarde para França. E foi em França, em 1994, que soube do que estava a acontecer no seu país, uma vaga de violência “não cega, mas sim organizada”, que matou gente a tiro, muitas mais a golpes de machete, além das queimadas vivas depois de incendiadas as igrejas onde procuraram proteção da turba assassina, mobilizada pela Interahamwe, uma milícia hutu. A cronologia do genocídio aponta para o início a 7 de abril, um dia depois de o avião onde seguiam o presidente ruandês Juvénal Habyarimana, hutu, e o seu homólogo burundês, Cyprien Ntaryamira, também hutu, ser abatido por dois mísseis, disparado do solo, em Kigali. Habyarimana liderava um governo com hutus e tutsis resultante de um acordo de paz com a guerrilha tutsi e a sua morte gerou acusações trocadas. Os extremistas hutus disseram que tinha sido morto pelos rebeldes tutsis por ser um hutu, os rebeldes tutsis acusaram os extremistas hutus de terem assassinado Habyarimana por ter procurado reconciliar as duas comunidades. Em poucas horas, os extremistas hutus passaram das palavras aos atos e a carnificina teve início no Ruanda..Inyenzi ou as BaratasScholastique Mukasonga Livros do Brasil176 páginas .Scholastique diz que “antes deste genocídio, havia o que chamamos minigenocídios. Desde 1960, os ataques aos tutsis eram frequentes. Massacres repetidos. Não éramos mais humanos. Fugimos para Nyamata, na savana, terra de animais selvagens. Mesmo lá continuávamos a ser massacrados. Para eles, não passávamos de baratas. Por isso intitulei o livro de Inyenzi ou as Baratas. Inyenzi é a palavra na língua ruandesa para baratas. Desde criança, assisti a massacres periódicos, até me enviarem para fora do país, para me protegerem”. A língua ruandesa, o quiniaruanda, é falado por todos naquele país da África Central, três vezes mais pequeno do que Portugal, mas hoje com 13 milhões de habitantes. Scholastique garante que não há diferenças entre tutsis e hutus. Diz que não é possível dizer quem é o quê, apesar das estatísticas pré-genocídio (15% versus 84%). Mesmo os twas (1%), antes descritos como pigmeus, segundo a escritora, só se distinguem por terem sido caçadores. Os tutsis eram criadores de gado enquanto os hutus eram agricultores. “Foram os belgas, com o apoio da Igreja Católica, que criaram as diferenças. Em 1931 criaram o cartão de identidade com a etnia”.Reino africano parte da África Oriental Alemã, o Ruanda, com as suas montanhas férteis, passou depois da Primeira Guerra Mundial a ser administrado pela Bélgica, que já controlava o imenso Congo. O rei era um tutsi, assim como a maior parte da elite. Mas no momento da descolonização, e confrontados com a rebelião hutu, os belgas decidiram aquando da independência, em 1962, favorecer a maioria hutu. A nova república viveu então num ciclo de violência, intermitente até 1994.“Houve uma época em que o país era tão organizado que surpreendeu os europeus. Não esperavam encontrar em África um reino em que tudo funcionava. Não havia violência entre os ruandeses. As tensões eram entre clãs, entre linhagens. O rei pertencia a uma linhagem especial. Era tutsi. Mas havia linhagens que podiam ter tutsis e hutus. E havia casamentos mistos, por isso não nos distinguimos. Só pelo que estava escrito no cartão de identidade. Por isso no genocídio queriam ver o documento. Queriam matar os homens tutsis. Com as mulheres era ainda pior. Antes de as matarem, eram violadas. Outras vezes esqueciam-se de as matar logo para lhes servir de objetos sexuais. O projeto era um genocídio. Não era suposto ninguém escapar”, explica Scholastique, que confessa que escrever sobre o que aconteceu a ajuda a seguir em frente.Tal como o reino que surpreendeu os europeus, o atual Ruanda tem fama de ser dos países mais funcionais de África. Tem como presidente Paul Kagame, um tutsi, líder da Frente Patriota do Ruanda, a guerrilha que conseguiu acabar em 1994 com o genocídio e tomou o poder em Kigali. As milícias extremistas hutus refugiaram-se no vizinho Congo (ex-Zaire), e o Ruanda nunca mais deixou de se envolver em conflitos além fronteiras, com o seu próprio exército ou através dos tutsis congoleses, muitas vezes com interesses nos minérios. Kagame é também acusado por alguns de ser um ditador no poder há 31 anos, primeiro como ministro da Defesa todo-poderoso e desde 2000 como presidente. Mas a sua política de reconciliação nacional parece ter resultado, depois da aplicação da justiça, com um tribunal internacional para julgar os líderes genocidas e tribunais nacionais para lidarem com outros casos.“As vítimas têm de coabitar com os carrascos. Como no Ruanda não se pode criar territórios para os tutsis e para os hutus, no dia a seguir ao genocídio tivemos de continuar a viver juntos. Se houver verdadeira reconciliação, as vítimas são capazes de perdoar os carrascos”, afirma Scholastique. .Ruanda vota continuação de presidente Kagame até 2034