Pastor e traficante, "Peixão" persegue outras religiões e desafia polícia no Rio
O Rio de Janeiro parou ao início da tarde de quarta-feira, 12 de fevereiro: a Avenida Brasil e a Linha Vermelha, duas das principais artérias da cidade brasileira, foram fechadas ao trânsito depois de traficantes do Complexo de Israel, comandados por Álvaro Malaquias Santa Rosa, mais conhecido como "Peixão", terem atingido um helicóptero do Grupo Aeromóvel da Polícia Militar carioca. Seguiu-se um tiroteio entre polícias e criminosos que causou quatro feridos.
“Fiquei no meio do tiroteio”, disse Mônica, moradora da região, em vídeo pessoal partilhado pela TV Globo, logo após os disparos. “Eu já distingo os tiros da polícia, que são um de cada vez, dos tiros dos traficantes, em rajadas e com som mais grave, eles têm um armamento muito mais poderoso do que a polícia”, concluiu, instantes depois de o helicóptero policial ser obrigado a um pouso forçado numa unidade da Marinha nas redondezas, como num cenário de guerra.
A operação policial partiu da informação de que Peixão, um dos criminosos mais procurados do Rio com 20 mandados de prisão por tráfico de drogas, homicídio, extorsão e formação de quadrilha, estava escondido num imóvel do Complexo de Israel, conjunto de bairros e favelas assim nomeados pelo próprio criminoso de 38 anos depois de ler na bíblia que os israelitas eram “o povo escolhido por Deus”. No bairro, há bandeiras de Israel desfraldadas e estrelas de David desenhadas nos prédios.
O uso da simbologia do Estado de Israel não é incomum em igrejas neopentecostais brasileiras, consideradas as mais radicais do cristianismo protestante: o próprio bispo Edir Macedo, da Igreja Universal do Reino de Deus, reza alguns cultos com um kipá, o tradicional chapéu judaico. Mas apesar dos símbolos do judaísmo, Peixão intitula-se "fundamentalista evangélico".
Nessa condição, além dos crimes citados acima, foi ainda condenado em 2023 a seis anos e seis meses por violação de domicílio, dano qualificado com violência à pessoa ou grave ameaça, furto qualificado e crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor, por perseguir fiéis de outras religiões, sobretudo de matriz africana, em terreiros de Umbanda e Candomblé
Peixão decidiu ainda, em julho de 2024, que as igrejas católicas dos bairros Brás de Pina e Parada de Lucas, dentro do Complexo de Israel, não poderiam mais celebrar missas, casamentos ou batizados. “Comunicamos que o nosso arraial está suspenso neste fim de semana. Não teremos Santa Missa nem atividades na nossa paróquia também. Igreja fechada. Em breve, retornaremos com mais informações”, dizia uma mensagem da igreja católica Santa Edwiges, após homens de Peixão, armados, se deslocarem de moto ao local para transmitir a determinação.
Peixão, no entanto, é filho de uma umbandista. Mas ainda criança, depois de ver quatro irmãos se envolverem no crime (dois já morreram, um perdeu uma perna, uma outra está no ativo), juntou-se ao Terceiro Comando Puro (TCP), organização criminosa do Rio, e tornou-se pastor. Foi ganhando influência no TCP, rival do Comando Vermelho na cidade, até liderar a zona norte, onde está o Complexo de Israel, na sequência de uma série de assassinatos de líderes anteriores, como Robertinho, Furica, Chopp, Branco, Targino e Tião, a quem sucedeu.
A religião, entretanto, é levada tão a sério por Peixão como o crime: durante uma ação no local, polícias encontraram um pequeno bunker com coletes à prova de bala, munições e um exemplar da Torá, o livro sagrado judeu, segundo reportagem do jornal O Globo.
O traficante, que lidera o grupo criminoso autodenominado Exército do Deus Vivo, Tropa do Arão ou Bonde da Cabala (em referência a uma antiga tradição mística judaica), escolheu como símbolo pessoal o Peixonauta, personagem de desenhos animados representado por um peixe que utiliza um capacete de astronauta, conta reportagem da edição brasileira do El País, de 2021.
Expoente do chamado narcopentecostalismo – o neologismo usado por quem estuda a ligação entre o tráfico de droga e as igrejas evangélicas pentecostais –, Peixão tem a bíblia numa mão e a metralhadora na outra. “O modo pentecostal de ver o mundo é, de certo modo, muito próximo à maneira como os traficantes entendem o mundo. Os traficantes veem o mundo como uma luta, uma guerra, um campo de disputas de forças entre o bem e o mal, de disputa de almas e corpos. E, assim como os evangélicos, também precisam de proteção para lidar com esse mundo de guerra”, escreveu Christina Vital, pesquisadora da Universidade Federal Fluminense.
Victor Santos, secretário de segurança pública do Rio de Janeiro, negou que a operação em que os narcopentecostalistas às ordens de Peixão dispararam sobre o helicóptero da polícia fosse “uma operação para prender o líder”. “A operação, que apreendeu 87 metralhadoras, foi para evitar mais banhos de sangue na região, porque o Peixão é sanguinário, é terrorista, mata com crueldade e impede as pessoas de ter a sua religião”.