Cerimónia fúnebre de um soldado polaco na praça da Independência, Kiev, no final de janeiro. Invasão iniciada há três anos pela Rússia salda-se em centenas de milhares de baixas militares, dezenas de milhares de civis mortos, 4 milhões de deslocados internos e 6,8 milhões de refugiados.
Cerimónia fúnebre de um soldado polaco na praça da Independência, Kiev, no final de janeiro. Invasão iniciada há três anos pela Rússia salda-se em centenas de milhares de baixas militares, dezenas de milhares de civis mortos, 4 milhões de deslocados internos e 6,8 milhões de refugiados.EPA/SERGEY DOLZHENKO

Onze anos de guerra, três anos de luta contra o invasor e uma dúzia de dias a lidar com um aliado hostil

Nunca como nos últimos dias se falou tanto de paz para a Ucrânia, mas esse cenário ainda parece longínquo, apesar da pressão dos EUA.
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No terreno não há boas notícias. O avanço russo continua, inexorável, e agora uma região poupada até ao momento, Dnipropetrovsk, está à beira de ser invadida. Os ucranianos debatem-se com falta de pessoal e o comando das Forças Armadas está sob fortes críticas. No campo político, o presidente tenta ao mesmo tempo combater a oposição interna e manter a guerra na ordem do dia para os países aliados, uma tarefa cujo grau de dificuldade foi multiplicado nos últimos dias quando o norte-americano Donald Trump decidiu dar meia volta na política até agora seguida e abraçar o russo Vladimir Putin e o seu discurso. Deixado cair o seu plano da vitória, e aparentemente deixado cair pelo presidente dos EUA, ao líder ucraniano não sobram muitas saídas airosas. Um acordo que envolva os minerais críticos e garantias de segurança tornou-se de importância capital. Mas o aliado, agora em atitude hostil , poderá manter o rumo de aproximação à Rússia.

A escala e a velocidade da viragem da administração norte-americana surpreenderam os observadores mais cínicos e chocaram os ucranianos. Pela primeira em três anos, os Estados Unidos não copatrocinam uma resolução condenatória à Rússia na Assembleia-Geral das Nações Unidas. Além disso, segundo o diário The Wall Street Journal, pressionaram Kiev a retirar a sua resolução, o que foi rejeitado. Em vez de votarem a favor do documento que exige o fim da agressão russa e que defende a integridade territorial e a soberania da Ucrânia, os EUA apresentam o seu próprio a voto (na Assembleia e no Conselho de Segurança) num fraseado que omite quem é o invasor, refere-se à guerra como “conflito” e que tem uma sugestão de emenda da parte russa. Moscovo quer acrescentar “incluindo a resolução das suas causas profundas” à frase final em que se “implora um fim rápido do conflito e insta a uma paz duradoura entre a Ucrânia e a Rússia”.

Causas profundas

O ministro dos Negócios Estrangeiros ucraniano Andrii Sybiha foi incapaz de manter o silêncio. “As causas profundas desta guerra são a negação do direito da Ucrânia a existir e o seu desejo de destruir a nossa nação”, publicou nas redes sociais. “Foi por isso que a Rússia começou esta guerra, comete atrocidades e tenta mudar as fronteiras pela força.”

Para a diplomacia norte-americana importa o desejo do seu líder em alcançar um acordo de paz, e não em apontar o dedo a quem é que iniciou a guerra em 2014 e a invasão em 2022, quanto mais responsabilizá-lo. O secretário de Estado Marco Rubio afirmou que o projeto de resolução reflete a visão de Trump de que a ONU deve voltar ao propósito fundador de manter a paz e a segurança internacionais, inclusive por meio da solução pacífica de litígios. “Através do apoio a esta resolução, afirmamos que este conflito é terrível, que a ONU pode ajudar a acabar com ele e que a paz é possível”, disse num comunicado em que realçou a “oportunidade de criar um verdadeiro impulso em direção à paz”.

Na última dúzia de dias, a Casa Branca desfez a política anterior de Biden e deu sinais de que poderá sacrificar a Ucrânia em prol de um acordo com a Rússia, através de um conjunto de declarações que vão de inverter o ónus da responsabilidade da guerra a negar as pretensões ucranianas de restabelecer as fronteiras e de aderir à NATO, até aos ataques pessoais ao presidente Volodymyr Zelensky. Em paralelo, os dirigentes norte-americanos tentaram que o líder ucraniano assinasse, em mais do que uma ocasião, um documento em que iria ceder 50% dos proveitos da extração de todos os minérios e também do gás natural e do petróleo a troco de nada, ou como Trump afirma, para compensar os EUA pelos gastos. Kiev só aceita um acordo desse género em troca de garantias de segurança.

Independentemente do resultados das votações desta segunda-feira em Nova Iorque, a mensagem europeia é a de que a Ucrânia não está sozinha. Em Bruxelas, os ministros dos Negócios Estrangeiros reúnem-se para debater os contornos de um pacote de ajuda militar de 20 mil milhões de euros. Em Kiev, Volodymyr Zelensky recebe António Costa (presidente do Conselho Europeu), Ursula von der Leyen (presidente da Comissão) e Pedro Sánchez (primeiro-ministro de Espanha). E em Washington Emmanuel Macron irá apresentar o ponto de vista francês – e europeu – a Trump.

Antes da vitória de Trump, as perspetivas para a Ucrânia entrar em negociações numa posição sólida não eram brilhantes, mas tinha conseguido assestar um golpe ao orgulho russo ao tomar território na região de Kursk. Esta manobra tinha o objetivo de desviar militares russos da frente leste, capturar soldados para trocar com cativos ucranianos e ter território (ainda que em dimensões muito menores) para negociar. Antes, a contraofensiva de 2023 saldou-se por um fracasso, entre planos militares controversos, um calendário que permitiu às forças russas erguerem as maiores fortificações desde a Segunda Guerra e minarem o terreno, e meios insuficientes. No ano passado, a Ucrânia voltou à postura defensiva, com a Rússia a forçar nova invasão terrestre na região de Kharkiv e a ganhar território no leste ucraniano.

Do lado de Kiev, conseguiu-se -- sem Marinha -- o feito de negar a superioridade naval à Rússia no Mar Negro, tendo obrigado a frota sobrevivente a trocar a Crimeia pelo porto de Novorossiysk, no sudoeste russo. E os seus drones conseguiram chegar cada vez mais longe, 1800 quilómetros, atingindo paióis, depósitos de combustível, bombardeiros ou fábricas de armamento. Mas se o apoio da Administração Biden (prudente para uns, timorato para outros) foi insuficiente ao não permitir o uso de mísseis em solo russo, aliado a uma quantidade e qualidade de armamento impossível de virar o tabuleiro, mais se tornou a partir do momento em que a Câmara dos Representantes passou a ter maioria republicana.

Os seis meses que os congressistas demoraram a aprovar o último pacote de assistência puseram a nu a dependência ucraniana dos EUA, perante uma Europa que gastou até mais, mas que não tem capacidade de produção própria, e deram uma ajuda inestimável para as forças russas progredirem no campo de batalha. A falta de meios humanos acentuou-se nos últimos meses, sem rotação de militares na linha da frente e uma política controversa de formação de brigadas sem quaisquer experiência, o que levou a deserções em massa e elevado número de baixas. “O problema na Ucrânia não é falta de dinheiro, é falta de ucranianos”, disse Marco Rubio durante a sua audição no Senado.

A Rússia, além de não mostrar problemas de consciência pelos ataques diários às populações, transformou-se numa economia de guerra (41% do Orçamento destina-se à Defesa e Segurança) financiada ainda e sempre pelos hidrocarbonetos, apesar das sanções. Estas também não impediram Moscovo de se abastecer com drones e mísseis iranianos, munições, mísseis e soldados norte-coreanos, bem como de tecnologia de uso duplo da China.

Em Moscovo, um líder que chegou a ser desafiado pelo chefe dos mercenários, Yevgeny Prigozhin, tem motivos para, por uma vez, mostrar emoções na sua expressão esfíngica. Ao ponto de poder declarar vitória, três anos depois do início do que apelidou de “operação militar especial” para “desnazificar, desmilitarizar e neutralizar” a Ucrânia. Segundo adiantaram na sexta-feira os serviços de informações militares ucranianos, Moscovo iria declarar hoje vitória na guerra contra a Ucrânia e contra a NATO. Além disso, o relatório dos serviços secretos diz haver instruções para os propagandistas russos intensificarem os esforços para desacreditar a Ucrânia e semear a discórdia na sociedade do país sob agressão.

Cenários para um acordo

A Ucrânia quer pôr fim à guerra, mas não a qualquer preço. O deputado da oposição Volodymyr Ariev disse ao site Kyyv Independent que há dois temas em que não pode haver compromisso: aceitar a anexação dos territórios ocupados e aceitar limitações quanto às forças militares e às suas alianças.

Para o lado russo, o enviado especial norte-americano Keith Kellogg fez saber que este deverá fazer concessões territoriais e uma possível “renúncia ao uso da força e uma redução das forças militares”. Entre os Estados Unidos e a Rússia joga-se o levantamento das sanções, o que permitirá aos norte-americanos comprarem petróleo russo a baixo preço (fazem-no neste momento via Índia).

Cerimónia fúnebre de um soldado polaco na praça da Independência, Kiev, no final de janeiro. Invasão iniciada há três anos pela Rússia salda-se em centenas de milhares de baixas militares, dezenas de milhares de civis mortos, 4 milhões de deslocados internos e 6,8 milhões de refugiados.
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