Numa entrevista à Time, depois de a sua associação ter sido premiada com o Prémio Nobel da Paz, disse que a Ucrânia precisava de armas e que o mundo precisava de reformar as organizações internacionais e de fazer justiça com a criação de um tribunal para crimes de guerra. Volvidos mais de dois anos, as armas continuam a ser um assunto atual. As outras questões evoluíram? Posso dizer que se registaram alguns progressos em matéria de justiça. Há umas semanas, delegações de mais de 40 Estados reuniram-se na Áustria e tomaram a decisão de criar um tribunal especial no âmbito do Conselho da Europa. É claro que estamos a tentar responsabilizar Putin, os seus dirigentes políticos e o alto comando militar pelo crime de agressão. Porque é que isto é importante? Porque tudo o que agora documentamos como crimes de guerra russos na Ucrânia é o resultado da decisão da sua liderança de iniciar esta guerra..Quantos crimes de guerra documentaram até agora? Quando a guerra em grande escala começou, unimos os nossos esforços com dezenas de organizações de diferentes regiões. Construímos uma rede nacional de observadores locais e cobrimos todo o país, incluindo os territórios ocupados. Trabalhando em conjunto, apenas durante estes mais de dois anos de guerra em grande escala, documentámos mais de 80 mil episódios de crimes de guerra. É uma quantidade enorme, mas é a ponta do icebergue porque a Rússia utiliza os crimes de guerra como método de guerra. A Rússia tenta quebrar a resistência das pessoas e ocupar o país infligindo uma dor imensa à população civil. É por isso que sublinho sempre que não estamos a documentar apenas violações das convenções de Genebra e de Haia, estamos a documentar a dor humana..Mas não há meios para instaurar tantos processos. As pessoas veem a justiça de forma muito diferente. Eu sei disso porque trabalhei diretamente com as pessoas. Para algumas, justiça significa ver o autor do crime atrás das grades. Para outras, significa receber indemnizações. Para outras ainda, significa a possibilidade de conhecer a verdade, o que aconteceu com os seus entes queridos. Para outras pessoas, justiça significa a possibilidade de serem ouvidas publicamente e de obterem o reconhecimento público de que algo que aconteceu com elas e com as suas famílias não é apenas imoral, mas ilegal.Isto significa que temos de construir uma estratégia de justiça muito abrangente, com diferentes elementos e diferentes instituições para responder a todas estas necessidades. Não se trata apenas de ações penais. Trata-se de indemnizações. Trata-se de memorializações. Trata-se de devolver às pessoas os seus nomes e a sua dignidade. E a segunda coisa que quero salientar, que muitas vezes não é visível para as pessoas que tomam decisões políticas importantes, é que a justiça tem um enorme impacto no presente. O que é que eu quero dizer com isso? Os russos nunca foram punidos por todas as atrocidades que cometeram na Chechénia, na Geórgia, no Mali, na Líbia, na Síria, noutros países do mundo. Se dermos início a ações judiciais decisivas, mesmo que só uma parte dos russos comece a duvidar de que, provavelmente, desta vez não se esquivarão à responsabilidade, que provavelmente desta vez não se poderão esconder atrás de Putin, essa dúvida converter-se-á num efeito inibidor sobre a brutalidade das violações dos direitos humanos. E porque estamos a falar de uma guerra em curso, isso significa que podemos salvar milhares e milhares de vidas. E gostaria de referir que, mais cedo ou mais tarde, os regimes autoritários entraram em colapso e os seus líderes, que se consideravam intocáveis, foram levados a tribunal. O último exemplo foi Milosevic. A Sérvia não queria transferir Milosevic para Haia, mas fê-lo..Acredita que um dia Putin e outros altos dirigentes russos sejam levados à justiça? Tenho uma esperança, mas tenho algo ainda maior. Tenho uma estratégia. E não posso prever o futuro, não há garantias, mas acredito que temos de fazer tudo no presente para cumprir a estratégia e concretizar a nossa esperança..A ucraniana Oleksandra Matviichuk, de 41 anos, é advogada e ativista dos direitos humanos. (FOTO: PAULO SPRANGER).O procurador-geral ucraniano demitiu-se há alguns dias no meio de um escândalo de corrupção. A luta contra a corrupção e a independência do poder judicial são temas essenciais para a Ucrânia fazer o caminho para a União Europeia. Permita-me que descreva algo que não é claro para as pessoas que vivem em democracias estáveis. Nós, na Ucrânia, não nos podemos dar ao luxo de viver com instituições estatais eficazes e bem desenvolvidas. Só há 10 anos é que tivemos a oportunidade de criar essas instituições. E esta oportunidade não nos foi concedida e não veio do céu. Lutámos por esta oportunidade. Sei do que estou a falar porque fui coordenadora da iniciativa civil Euromaidan SOS. Ajudámos milhares de pessoas ao prestar assistência jurídica aos manifestantes perseguidos. E todos os dias passaram por nós centenas e centenas de pessoas que foram espancadas, detidas, torturadas, acusadas e vítimas de processos criminais forjados. Milhões de pessoas na Ucrânia pagaram um preço por uma oportunidade de construir um país onde os direitos de todos são protegidos, o governo é responsável, o sistema judicial é independente e a polícia não bate em estudantes que se manifestam pacificamente. E quando tivemos essa oportunidade, quando o regime autoritário caiu e o anterior presidente fugiu para a Rússia, a Rússia invadiu o país para nos impedir de fazer a transição democrática. Por isso, só tivemos 10 anos para efetuar reformas e tivemos de as realizar durante a guerra. Os países desenvolvidos constroem as suas instituições democráticas sustentáveis ao longo de décadas ou mesmo de séculos. Queremos proteger o nosso país, o nosso povo, a nossa escolha democrática e, paralelamente, proceder a reformas e aplicar a nossa escolha democrática. E isso é difícil de fazer porque estamos presos entre duas lógicas. A primeira é a lógica da guerra e a segunda é a lógica da integração europeia. E a lógica da guerra é oposta a toda a lógica da integração europeia e da democratização. Mas temos aquilo a que chamo a bênção de Deus. É o processo oficial de integração europeia, porque recorda não só às autoridades ucranianas mas também ao povo que temos de ser mais ambiciosos. Não nos podemos dar ao luxo de adiar o nosso crescimento democrático após o período da guerra, porque não fazemos ideia se estamos no fim da guerra, no meio ou apenas no início.Por isso, temos de realizar estas duas tarefas em paralelo. E quando formos bem-sucedidos, teremos a oportunidade de cumprir o nosso objetivo histórico e de regressar à dimensão civilizada europeia..Foi correto não realizar eleições presidenciais durante a guerra? É proibido pela nossa Constituição. Todos os países democráticos têm de cumprir a Constituição. Mas também coloca uma série de questões práticas, porque a Rússia tem tido algo a que chamam eleições, mas não o são de todo. Há uma diferença entre uma verdadeira eleição, organizada de acordo com todos os princípios internacionais, e um processo de imitação que a Rússia e outros países organizam de tempos a tempos. Precisamos de uma eleição a sério e não de imitações. E é por isso que temos de pensar como resolver vários problemas práticos. Como dar uma oportunidade de voto a mais de 6,5 milhões de pessoas que deixaram o país quando a guerra começou? Como dar a oportunidade de votar às pessoas que vivem em territórios ocupados ou em zonas próximas da linha da frente? Onde podemos encontrar dinheiro para todo o processo eleitoral? Como garantir a segurança durante todo o processo? Porque as eleições não são o último dia em que se põe o boletim de voto numa caixa. Tem de ser um processo competitivo. E as pessoas têm de ter segurança. Como é que podemos organizar eleições nestas circunstâncias? E, por último, a questão da justiça. Temos a parte mais ativa da sociedade ucraniana que se juntou ao exército ucraniano. O nosso exército é constituído por antigos civis que deixaram os seus empregos como jornalistas, cabeleireiros, designers, trabalhadores siderúrgicos, professores. Porque decidiram defender os seus valores com armas nas mãos. Como podemos organizar o processo eleitoral nas trincheiras? Não podemos permitir-nos excluir deste importante processo político a parte mais ativa da sociedade ucraniana. Por isso, não se trata apenas da Constituição, há questões práticas que precisam de respostas práticas..Sente que os partidos da oposição são ouvidos e os direitos e liberdades civis cumpridos? A democracia não é apenas uma eleição. É uma possibilidade real de os cidadãos participarem na tomada de decisões a nível local e nacional sobre o seu país. E nós temos uma sociedade civil muito ativa, muito mais forte do que as instituições estatais. E toda esta situação prova-o. Vou ser sincera. Há muitas dificuldades. Porque é muito difícil salvar a democracia durante uma guerra em grande escala. É por isso que a sociedade civil se concentra na proteção da democracia local. Temos de salvar a reforma da descentralização. A sociedade civil concentra-se na proteção da liberdade de expressão porque é uma base fundamental para todas as decisões e comportamentos das pessoas. E é muito importante proteger outros campos de expressão quando existe censura militar, que é legítima durante a guerra. Mas o que me deixa otimista é que em cada inquérito sociológico sobre a Ucrânia, os ucranianos escolhem sempre a liberdade em primeiro lugar na hierarquia de valores. Estou certa de que, mais cedo ou mais tarde, seremos bem-sucedidos..cesar.avo@dn.pt