O que representa o acordo com Israel que a União Europeia vai rever?
O Acordo de Associação entre a União Europeia e Israel, que entrou em vigor em junho de 2000, visa estabelecer “uma estrutura jurídica e institucional adequada para o diálogo político e a cooperação económica entre as duas partes”, conforme refere Bruxelas, o que inclui a livre troca de bens.
Essencial para a sua existência é o ponto 2, que estabelece que “as relações entre as partes, bem como todas as disposições do próprio acordo, assentarão no respeito pelos direitos humanos e pelos princípios democráticos, que norteiam a sua política interna e internacional e constituem um elemento essencial do presente acordo”, sendo que qualquer revisão por parte de Bruxelas baseada em preocupações relativas aos direitos humanos envia um forte sinal diplomático a Telavive.
E foi precisamente este ponto 2 que levou esta terça-feira os ministros dos Negócios Estrangeiros de 17 dos 27 países da União Europeia, um dos quais Portugal, a aprovarem a revisão do acordo de associação com Israel, conforme explicou a líder da diplomacia europeia, Kaja Kallas. “A situação em Gaza é catastrófica. A ajuda que Israel permitiu a entrada é, obviamente, bem-vinda, mas é uma gota no oceano. A ajuda deve fluir imediatamente, sem obstrução e em grande escala, porque é isso que é preciso”.
O Ministério dos Negócios Estrangeiros de Israel rejeitou as críticas de Kallas, dizendo que estas refletem “um total mal-entendido da complexa realidade que Israel está a enfrentar”, mas também que “ignorar estas realidades e criticar Israel apenas endurece a posição do Hamas e encoraja-o a manter a sua posição”.
O acordo de associação, tal como ele existe atualmente, é de particular importância para Israel, que tem na União Europeia o seu principal parceiro comercial, representando 32% do seu comércio total de bens com o mundo em 2024 - 34,2% das importações de Israel vieram da UE, enquanto 28,8% das exportações do país foram para a UE. Já Telavive é apenas o 31.º parceiro do bloco, com 0,8%. No total, o comércio de bens entre as duas partes em 2024 ascendeu a 42,6 mil milhões de euros.
De forma mais pormenorizada, e segundo dados disponibilizados pela União Europeia relativos a 2024, as importações do bloco vindas de Israel ascenderam a 15,9 mil milhões de euros, lideradas por máquinas e equipamento de transporte (7 mil milhões de euros, 43,9%), produtos químicos (2,9 mil milhões de euros, 18%) e outros produtos manufaturados (1,9 mil milhões de euros, 12,1%).
Já as exportações da União Europeia para Israel ascenderam a 26,7 mil milhões de euros e foram dominadas por máquinas e equipamento de transporte (11,5 mil milhões de euros, 43%), produtos químicos (4,8 mil milhões de euros, 18%) e outros produtos manufaturados (3,1 mil milhões de euros, 11,7%).
No que diz respeito a serviços, as trocas ascenderam a 25,6 mil milhões de euros – as importações do bloco tiveram um valor de 10,5 mil milhões, enquanto que as exportações ascenderam a 15,1 mil milhões. De referir ainda que fora deste acordo comercial estão os bens vindos dos colonatos israelitas.
Está também previsto um apoio político e financeiro a Telavive, mas, segundo documentos de Bruxelas, “devido ao nível avançado de desenvolvimento económico de Israel, os fundos da UE no âmbito do Instrumento Europeu de Vizinhança são utilizados principalmente para projetos de geminação e administração pública nas áreas da educação, telecomunicações e gestão dos recursos hídricos”. O que, em média, equivale a 1,8 milhões de euros por ano.
Suspensão já devia ter acontecido
Agora, cabe ao executivo liderado por Ursula von der Leyen, uma grande defensora de Israel, à semelhança da sua Alemanha natal, iniciar uma revisão para estabelecer se Telavive violou as suas obrigações em matéria de direitos humanos ao abrigo do artigo 2.º do acordo de associação. De recordar que, há mais de um ano, Espanha e Irlanda pediram à Comissão a revisão do acordo, mas sem sucesso.
Este passo de revisão não implica uma suspensão imediata das trocas comerciais ou do diálogo político entre as duas partes, mas abre a porta a que isso venha a acontecer, embora seja altamente improvável.
Depois de a Comissão Europeia fazer o seu relatório sobre a revisão do Artigo 2, cabe aos países do bloco decidirem se suspendem ou não o acordo de associação com Israel, o que terá de acontecer por unanimidade, ou por uma maioria qualificada, no que diz respeito a disposições comerciais ou à participação de Telavive em projetos comunitários, como o programa-quadro de investigação e inovação Horizonte Europa – ou seja, com 55% dos 27 Estados-membros a votar a favor, representando pelo menos 65% da população total da União Europeia. O que quer dizer que a Alemanha, o país mais populoso do bloco, em conjunto com os Estados mais próximos de Israel, poderá conseguir vetá-lo. Além do mais, nem todos os 17 países que votaram esta semana a favor da revisão são a favor da sua suspensão.
“A realização de uma revisão formal do cumprimento por parte de Israel das suas obrigações ao abrigo do acordo de associação é um primeiro passo necessário”, refere Hussein Baoumi, responsável pela defesa da política externa da Amnistia Internacional junto da UE, que defende ainda que “os imperativos legais, diplomáticos e estratégicos estão a tornar a suspensão não só necessária, mas inevitável”.
Uma opinião partilhada por vários analistas políticos, como Nathalie Tocci, diretora do think tank italiano Istituto Affari Internazionali. “A UE não deve suspender hoje o acordo de associação UE-Israel. Já o devia ter feito há muito tempo. Pelo menos desde que os crimes de guerra de Israel na Faixa de Gaza foram claramente documentados, com o Tribunal Internacional de Justiça a considerar as provas suficientes para avançar com o caso de genocídio da África do Sul contra Israel, e o Tribunal Penal Internacional a emitir mandados de captura contra os líderes israelitas. A manutenção de um acordo de associação, que eleva os direitos humanos como um dos seus elementos essenciais, tem ridicularizado a UE e os seus valores.”
“Um movimento deste tipo permitiria à UE responder às acusações de inércia e de dois pesos e duas medidas - que a Rússia, a China e o Irão estão ansiosos por explorar - e marcaria um passo no sentido do surgimento de uma Europa geopolítica. Acima de tudo, estaria em linha com a ideia de que a Europa pode, e deve, incorporar uma alternativa democrática no panorama global, acrescenta Amélie Ferey, diretora da Unidade de Investigação de Defesa do Institut Français des Relations Internationales.