exclusivo
Internacional
30 julho 2021 às 05h00

O presidente campesino que renuncia ao palácio presidencial

Metade do país e mercados apreensivos com o novo chefe de Estado. Mas o marxista Pedro Castillo garante que não quer importar modelos estrangeiros nem contornar a legalidade

Quando um político esquerdista alcança o poder na América Latina todos vemos como começa, mas ninguém sabe como acaba. O insucesso tanto se pode dever às tendências autoritárias do líder, à tomada do aparelho do Estado pelo partido e corrupção associada, à sabotagem da oposição, ou todas as anteriores. Os exemplos são inúmeros. Por isso não é de estranhar que na quarta-feira, dia da tomada de posse de Pedro Castillo, Lima tenha sido também palco de manifestações de repúdio ao novo presidente, um homem que representa as classes mais pobres, os indígenas, as gentes rurais e o sindicalismo.

Por outro lado, a classe política está desacreditada, bastando recordar que só em novembro o país teve três presidentes. Aos comentadores da vida política peruana, o que causa estranheza é ainda não haver um governo, sinal de provável desacordo entre Castillo e o seu partido marxista Peru Livre.

À tomada de posse de Pedro Castillo, um professor e sindicalista de 51 anos, acorreram vários líderes, inclusive de direita como Iván Duque e Sebastián Piñera, presidentes da Colômbia e do Chile, num sinal de unidade perante a diferença. "Viemos para reafirmar a irmandade entre os nossos dois países", disse aos jornalistas o colombiano que mantém uma relação tensa com a Venezuela de Nicolás Maduro.

O secretário de Estado norte-americano Antony Blinken enviou felicitações e a administração Biden fez-se representar pelo secretário da Educação, Miguel Cardona. Também marcou presença o rei Felipe VI, no mesmo dia em que o país comemorou o bicentenário da independência de Espanha. O monarca ouviu de viva voz Pedro Castillo, vestido de casaco andino e de chapéu de palha na cabeça, demarcar-se do passado. "Esta é a primeira vez que o nosso país será governado por um campesino, alguém que pertence àqueles que têm sido oprimidos há tantos séculos. É difícil expressar a grande honra que isto é para mim. O orgulho e a dor do nosso país correm-me nas veias", disse.

Em coerência, mas para surpresa geral, anunciou que não iria residir nem presidir a partir do Palácio do Governo, o edifício do século XVI mandado construir pelo conquistador Francisco Pizarro. "Acredito que temos de romper com os símbolos coloniais. Vamos ceder este palácio ao novo Ministério das Culturas para que possa ser usado como um museu da nossa história", disse.

Leia também: Surpresa eleitoral coloca professor contra Fujimori

Noutro assomo de humildade, Castillo disse que pretende regressar ao seu trabalho de professor na região natal de Cajamarca uma vez terminado o mandato presidencial.

Num país com 58 grupos étnicos e 14 famílias linguísticas, o seu presidente, que se autointitula de campesino, membro da classe rural, maioritariamente indígena e mestiça, propôs a extensão do que já acontece no sistema judicial na Amazónia peruana, o reconhecimento de outras línguas nos serviços da administração pública nas regiões onde são faladas.

Num discurso muito aguardado, Castillo falou para os seus eleitores, mas tentou estender a mão aos restantes, bem como aos investidores, tendo em conta que durante a campanha eleitoral as nacionalizações de empresas fizeram parte dos temas, e alguns membros do Peru Livre defenderam a legalização da folha da coca e a expulsão de militares e de agentes norte-americanos estabelecidos no Peru em programas de combate ao tráfico de cocaína.

"Durante a campanha eleitoral tentaram assustar a população com a história de que queríamos desapropriar poupanças, casas, carros, fábricas e outros bens de propriedade dos cidadãos, o que é totalmente falso. Não faremos nada disso, porque queremos que a economia mantenha a ordem e a previsibilidade, que estão na base das decisões de investimento. A propriedade das pessoas, obtida com esforço e no quadro da legalidade, é garantida pelo Estado", garantiu.

Leia também: Até a contagem de votos mostra divisões no Peru

No entanto, advertiu que iria combater os monopólios e que poderia rever os contratos com as empresas que extraem minérios, para "regular de acordo com os interessas da maioria".

Castillo reiterou que quer uma nova Constituição, menos dada ao neoliberalismo da que foi aprovada em 1993 durante o mandato de Alberto Fujimori, e para tal comprometeu-se em seguir os passos previstos na lei, que passam por um referendo e uma assembleia constituinte. Esta aspiração terá de passar por um congresso onde o seu partido não tem maioria.

Num discurso em que a palavra mais repetida foi "saúde", prometeu um sistema universal de saúde, apoios sociais aos mais pobres, investimento público para criar um milhão de empregos e novas ferrovias. Numa pasta que lhe é cara, a educação, declarou o "estado de emergência": quer um acesso livre ao ensino superior e vai criar um Ministério da Ciência e Tecnologia. Mas ainda não há governo. "É irresponsável ainda não haver primeiro-ministro nem ministros", diz o analista político Gonzalo Banda ao La República.

Aos 46 anos, Keiko Fujimori tem um lugar nos manuais de ciência política, não tanto por concorrer em três eleições presidenciais consecutivas sem sucesso (Lula da Silva, por exemplo, já o tinha feito), mas pela curta margem da derrota na segunda volta (48,5% em 2011, 49,8% em 2016 e em 2021). Além do mais arrisca-se a ocupar uma exclusiva galeria de pais e filhos dirigentes políticos condenados a penas de prisão.

Apesar de tangencial (uma diferença de 44263 votos em mais de 17,6 milhões de votos válidos) na segunda volta das presidenciais disputadas em junho, a rejeição pelos eleitores peruanos da populista de direita custa-lhe logo à partida a imunidade e a possibilidade de emitir um indulto presidencial ao pai Alberto, de 83 anos, que cumpre pena de prisão por cinco sentenças, a mais recente do ano passado. Quanto à própria, os procuradores pediram uma pena de mais de 30 anos de prisão por corrupção.

Para já um juiz rejeitou o pedido da procuradoria de prisão preventiva (onde já esteve 15 meses) para evitar que interfira com testemunhas no seu caso de corrupção. Após mais de dois anos de investigação, o procurador acusou Keiko e outras 41 pessoas de "crime organizado, lavagem de dinheiro, obstrução à justiça, falsas declarações". Fujimori é acusada de ter aceitado um milhão de dólares da empresa brasileira Odebrecht em 2011.

O Ministério Público pediu também que o partido Força Popular fosse dissolvido. "Temo que o fujimorismo seja desmembrado", disse o analista Augusto Álvarez, colunista do diário La República, à AFP.

cesar.avo@dn.pt