Depois do 25 de Abril e do sucesso da transição democrática, Portugal fez da linha europeísta de Mário Soares, conjugada com a vinculação à NATO, a prioridade. Essa opção foi determinante para o que Portugal é hoje e a nossa posição no mundo? Decisiva. Desde logo é inseparável da democratização. Retrospectivamente, a democratização e a europeização são paralelas e reforçam-se reciprocamente. É a primeira vez que essa combinação se faz, e vai repetir-se depois em Espanha, vai repetir-se na Europa do Leste, depois de 1989, mas Portugal é o ensaio geral. E não tinha que correr bem. A posição de Mário Soares é importante, duplamente. Em primeiro lugar porque na oposição, ao contrário do que acontecia nas fileiras do regime, havia muito poucos europeístas. Não havia nenhum outro dirigente político da oposição que defendesse não só o regresso à Europa, mas a entrada de Portugal nas Comunidades Europeias, que é uma coisa específica. Nós já estávamos na EFTA e na NATO. Ao contrário do que é visão comum, não éramos uns dissidentes africanistas. Mas Mário Soares achava que precisávamos de aderir às Comunidades Europeias como membro de pleno direito e não apenas através de um tratado ou acordo de associação. E ele tem essa ideia clara desde os tempos do exílio, mas que era minoritária mesmo no Partido Socialista. Mas ele vai seguir essa linha. Soares tinha essa grande ideia de que democratização e europeização eram uma e a mesma coisa e era o caminho certo. Soares impôs a sua linha estratégica e não foi fácil.Portugal foi um dos fundadores da NATO em 1949, mesmo não sendo uma democracia... Sim. Portugal insistiu que a Espanha devia também ser um dos membros fundadores, mas o regime espanhol era um regime que tinha sido imposto pelas armas do fascismo italiano e do nazismo alemão. Nós éramos apenas um regime autoritário nativo, não fazíamos parte da vaga totalitária. E havia do lado dos EUA uma visão de que o regime salazarista era um regime autoritário benigno. Não tinham razão, mas era a visão deles. E a de muitos conservadores britânicos, e os gaullistas, a mesma coisa. Ao contrário, o franquismo era um regime terrorista, imposto pelo fascismo e ninguém queria ter nada a ver com ele.Hoje, a NATO, que alguns davam como morta, voltou a ganhar importância com a guerra na Ucrânia. E os aliados americanos estão a pressionar para todos os países gastarem não 2% do PIB em defesa, mas 5%. Esta é a oportunidade para a Europa finalmente assumir a sua defesa e não depender tanto dos EUA?Já o devia ter feito há imenso tempo. Adiou sempre, mesmo no fim da Guerra Fria. Os EUA, aliás, também reduziram significativamente os gastos de defesa depois de 1991. Agora somos obrigados, pela invasão da Ucrânia, a levar a sério a defesa europeia. Não é uma situação inteiramente nova neste sentido em que julgo que era Paul-Henri Spaak que dizia que Estaline era o verdadeiro fundador da NATO. De certa maneira, Putin é o primeiro responsável por termos deixado de achar que a NATO estava obsoleta, ou em morte cerebral.Como dizia o presidente Emmanuel Macron...Como dizia Macron, exato. É uma oportunidade para a Europa fazer a sua parte. A minha ideia é que os europeus deviam ser metade da NATO, no sentido em que, em primeiro lugar, devem garantir a defesa convencional da NATO contra a Rússia. Isto é, fora a questão da dissuasão estratégica nuclear, as forças armadas europeias devem poder derrotar a tentativa convencional russa de atacar um membro da NATO. É uma coisa muito precisa e concreta, e é o que se está a fazer. E por outro lado, devia ser a Europa a pagar metade, porque ainda não é o caso. Mas vai ser e se calhar até mais do que a metade, embora a dissuasão estratégica nuclear seja uma coisa que também custa dinheiro, como os franceses e os britânicos sabem.Nessa área, os franceses até são mais autónomos em relação aos EUA do que os britânicos...O Programa Manhattan é um programa inglês que Churchill exporta para os EUA. Os EUA depois não partilham a informação com os britânicos, mas eles têm suficientes cientistas no projeto para o reconstruir em 1952, por conta própria. Mas, na dimensão dos vetores de lançamento, tiveram sempre uma parceria com os norte-americanos, que eram os mísseis, os aviões, os bombardeiros. No caso dos franceses, escolheram desde o princípio ser autónomos em tudo, incluindo os Rafale, os bombardeiros, que os britânicos não têm mas vão ter porque vão comprar F-35 com capacidade para ser um vetor de lançamento.Vão comprar aos EUA...Vão comprar aos EUA, como os alemães também vão. A defesa europeia para os britânicos, para os alemães e para os franceses é uma aliança transatlântica. Existe uma comunidade transatlântica e nenhum deles tem a ilusão de que pode ser de outra maneira, enquanto pela frente tiver a Rússia, que é a outra grande potência nuclear. No seu livro cita Medeiros Ferreira a dizer que “a defesa das nossas fronteiras começa na Alemanha Ocidental”...“Começa no Elba”. A frase dele era dirigida aos militares e dizia que a fronteira estratégica de Portugal já não estava no Rovuma, estava no Elba. Parece uma coisa trivial, mas foi preciso dizer isso em 1976. Medeiros Ferreira era ministro dos Negócios Estrangeiros e disse-o com uma grande frontalidade.Hoje essa fronteira começa na Ucrânia?Claro. A fronteira da defesa europeia é a fronteira entre a Ucrânia e a Rússia. Desde o dia 24 de fevereiro de 2022 e, mais uma vez, graças ao presidente Putin.Putin e a Rússia acabam por moldar a geoestratégia mundial?Claro, sim. Como no passado. Os EUA a seguir à II Guerra Mundial, queriam regressar para penates, como tinham feito em 1918. As tropas americanas não deviam ter ficado. A NATO não devia existir. Os EUA nunca tinham feito um acordo de aliança em tempos de paz. Tudo aquilo só foi possível porque a União Soviética, que logo depois de 1945 ainda não era uma potência nuclear, representava uma ameaça estratégica de longo prazo à qual os EUA tinham que responder. .Num mundo hiperpolarizado, Portugal mantém-se hoje fiel ao velho aliado, mas precisa de manter outros parceiros, incluindo a China. É um equilíbrio difícil para a nossa diplomacia?Com certeza, e vai ser cada vez mais difícil, mas temos de ver as datas. Os EUA reconheceram a República Popular da China antes de Portugal. Pouco, mas antes. Em Portugal, aliás, Mário Soares, o primeiro trabalho que me mandou fazer foi saber porque é que os chineses não tinham respondido ao comunicado que ele fez, em janeiro de 1975, a dizer que já não reconhecia Taiwan e reconhecia a República Popular da China. A minha resposta, como é típico das pessoas que não sabem o que responder, foram 400 páginas [risos]. E a resposta era Macau. A resposta, aliás, era dupla. Havia uma transição de poder dentro do Partido Comunista da China. Estávamos em 1975, Chu En-lai vai morrer, Mao Tsé-tung vai morrer e Deng Xiaoping demora ainda algum tempo a chegar ao poder. Quando Deng chega ao poder, em 1978, as coisas concluem-se rapidamente e finalmente a questão era Macau. No acordo bilateral, é a primeira vez que a República Popular da China abre a possibilidade da devolução de Macau. E as únicas entidades que tomam nota do que aconteceu nas conversações entre Portugal e a China são os britânicos por causa de Hong Kong. É o primeiro sinal que os chineses dão de que estão preparados para tomar conta de Taiwan, de Hong Kong e de Macau. Em Portugal ninguém acreditou que eles queriam mesmo fazer isso, porque achavam que nos dávamos tão bem [risos]. Eu acho que é o otimismo da decadência. Mas há outro lado. Nós tivemos de fazer toda a transição de Macau com a República Popular da China, incluindo na altura de Tiananmen. Fizemo-lo com autonomia. Fomos os primeiros a voltar a convidar ministros e primeiros-ministros chineses a romper o boicote diplomático. Para grande alegria de todos os que não o faziam. Houve durante essa década relações de alto nível que um país como Portugal não devia ter com a República Popular da China. Era sobretudo uma relação política, que só teve uma tradução económica no período da Troika, muito mais tarde, quando os chineses mostraram disponibilidade em responder ao nosso pedido para investimentos externos. É nessa altura, por volta de 2010 que os EUA começaram a pensar em mudar de estratégia em relação à China. E nos últimos anos a União Europeia também fez essa correção, reconheceu que a China não era um gentil país em vias de desenvolvimento, mas que era a outra superpotência e, portanto, era preciso ter uma estratégia correspondente. Portugal, gradualmente, seguiu essa orientação e deu vários sinais nesse sentido, o mais notório é a história da Huawei. Sines também é um sinal importante. No segundo caso, houve uma pressão dos EUA, que foi pública. E do outro lado, houve uma pressão das Comunidades Europeias, incluindo da Comissão Europeia.Os EUA têm dificuldade em perceber essa relação de Portugal com a China?Não têm dificuldade, não têm é nenhum interesse. Nós é que temos que compreender os EUA, ao contrário do que pensamos.Vivemos uma guerra na Ucrânia, uma guerra no Médio Oriente, podemos estar à beira de uma guerra comercial. Muito do futuro destes conflitos passa pela secretária de Donald Trump?Com certeza que sim.O regresso dele ao poder veio alterar a geopolítica mundial?Não. E aliás, há uma linha de continuidade essencial entre o presidente Trump e os seus antecessores, que o incluem a ele próprio. Na minha opinião, desde 2008 há uma viragem dos EUA para, não apenas uma estratégia de retraimento, mas para um ciclo de retraimento estratégico, que já tinha existido no passado. Existiu com Eisenhower, existiu com Nixon, no período da Revolução Portuguesa. Nós, aliás, pagámos as favas por causa desse recuo. A intervenção soviética e cubana em Angola era um sinal dessa retração dos EUA, depois do Vietname. Mas esses períodos anteriores foram curtos. Dois mandatos presidenciais americanos. Agora vamos no quinto mandato e no terceiro presidente. Portanto não é apenas um recuo temporário, é o reconhecimento do declínio dos EUA. Os EUA já não têm uma posição hegemónica na política internacional. Têm, como durante a Guerra Fria, de fazer o jogo da balança do poder com a China, com a Rússia. E é isso que Obama começou a fazer, o primeiro Trump também fez. Biden continuou. É o período em que deixa de haver intervenções externas dos EUA. Obama sai do Iraque. Biden retira do Afeganistão. É um ciclo. E a Rússia de Putin tomou nota - na Crimeia, na Ucrânia e na Síria, em 2015. A China tomou nota, o Irão tomou nota. Portanto, há uma nova realidade que se constrói nestes 15 anos. A posição do presidente Trump é essa: como adaptar os EUA, que ao contrário de Portugal não tem experiência da decadência, nem do declínio. E é importante ter. Os britânicos têm, os franceses têm, os russos têm, os chineses têm, os iranianos têm, os indianos têm, nós, mais do que qualquer outro, mas os EUA não têm, portanto eles estão a aprender o que é os EUA como um primus inter pares e não como uma potência hegemónica. Eles ainda são a principal potência internacional, isso é perfeitamente claro. Mas se pensarmos a 30 anos - e os EUA pensam a 30 anos - o problema é a China. E isso significa que o Médio Oriente é secundário, a Europa é secundária, duplamente, em relação ao Médio Oriente e em relação à Ásia, e é nesse sentido que as coisas têm evoluído, com personagens mais espaventosas e com personagens mais convencionais. Mas há uma linha de continuidade. Há variações estratégicas importantes, quer em relação à Europa, quer em relação ao Médio Oriente, quer em relação à Ásia. Estamos numa reconstrução da posição internacional dos EUA. As coisas continuam a passar muito por Washington, mas passam também por Pequim e por Moscovo. A diferença é que sabemos boa parte do que passa em Washington, um bocadinho do que passa em Moscovo e nada do que se passa em Pequim. Há uma tradição de secretismo, de facto, oriental. .Voltando a Portugal, que tem esta relação forte e antiga com os EUA e que viu agora a intervenção americana no Irão provar que a base das Lajes ainda tem muita importância. Esta relação transatlântica é mais forte do que quem se senta na Sala Oval, seja ele ou ela quem for?A questão nem sequer se põe. O Atlântico é uma espécie de Mare Nostrum dos EUA, também é um bocadinho o nosso, e portanto, nós aí somos um aliado natural dos EUA. Nos dois sentidos. Exceto os pessimistas dos pessimistas, nunca houve nenhuma dúvida em Portugal de que as Lajes eram importantes. Os EUA têm três bases indispensáveis nos três oceanos: Diego Garcia no Índico, que é uma base britânica, Guam, no Pacífico, e as Lajes, no Atlântico. Está em todos os manuais militares, e sem ser militares, há três bases de que os EUA não saem, para o bem e para o mal. Em 1974, 1975, isso ficou claro, quando apareceram os movimentos separatistas nos Açores, a partir da comunidade portuguesa nos EUA. Há um sinal muito forte. Há uma conversa, esta é uma versão apócrifa, entre Gerald Ford e Helmut Schmidt, uma parte da qual é citada neste livro, em que o chanceler alemão diz ao presidente dos EUA que os Açores são a fronteira ocidental da Europa. Mas também são a fronteira dos EUA com a Europa, se as duas partes alguma vez se separarem. É por isso que as Lajes, ao mesmo tempo, são um elemento essencial da nossa política externa e da nossa política de defesa. E é por isso que o pior pesadelo para a diplomacia portuguesa é uma rutura entre os EUA e a Europa ocidental. É isso que explica a Cimeira das Lajes. Em parte. Tão criticada, mas que simboliza justamente a importância da relação transatlântica e o pesadelo que é para a diplomacia portuguesa quando há uma crise entre a Europa e os EUA. Nós somos, e é essa a política externa que é construída entre 1974 e 1986, ao mesmo tempo, atlânticos e europeus, atlanticistas e europeístas. Também não temos alternativa. Os historiadores sabiam isso, os diplomatas sabem isso. E as Lajes, obviamente, têm sempre importância. Podem ter um destacamento maior ou menor de militares norte-americanos. É a mesma coisa em Diego Garcia, e até Guam, que foi reforçada recentemente.Secretário-geral das Nações Unidas, presidente do Conselho Europeu. 50 anos depois da Revolução, a diplomacia portuguesa tem muito mais peso do que o tamanho do país poderia deixar adivinhar?Sim, e ambos têm a ver com a revolução e a democratização e a europeização, como é evidente. O embaixador José Cutileiro foi secretário-geral da União da Europa Ocidental, foi o primeiro. Em seguida, José Manuel Durão Barroso foi presidente da Comissão Europeia. Depois houve vários cargos importantes que foram sendo ocupados por portugueses. De certa maneira, com a democratização e a europeização, Portugal voltou a existir, voltou a ter uma personalidade própria na política internacional e um lugar próprio na comunidade das democracias.Apesar de uma descolonização complicada e um início de relação difícil com as antigas colónias, Portugal podia explorar melhor a relação com África?Não apenas com África. Aliás, uma última contribuição importante do presidente Mário Soares foi explicar que não era apenas com África e que a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa tinha, obviamente, de incluir o Brasil. O Brasil é o parceiro mais importante de Portugal nesse registo. E também é importante ter, obviamente, Timor como membro da CPLP. A Holanda não tem uma CPLP. Aquilo que Espanha tem não é comparável. O facto de haver apenas três países, a Grã-Bretanha, a França e Portugal, que tenham conseguido reestruturar as suas relações pós-coloniais é importante em si mesmo. Era, talvez, o mais difícil de fazer para a diplomacia portuguesa. Foi possível fazer isso em vários registos sucessivos. Timor ainda não fazia parte, era um dos temas importantes e difíceis no quadro da CPLP. As Nações Unidas tiveram um representante brasileiro em Dili, depois do referendo de independência. Angola e Moçambique apoiaram os nacionalistas timorenses. Tudo isso aconteceu e nós fizemos parte desse processo, o que significa que a diplomacia portuguesa mantém uma visão internacional, mantém uma experiência da política internacional como um todo. E se queremos manter essa tradição de ter não apenas uma política europeia, mas uma política internacional, devemos valorizar essa dimensão nas relações com o Brasil. E com Angola, com Moçambique, com Cabo Verde, com Timor-Leste, separadamente. Não há África, não há países africanos, há Estados com os quais temos relações bilaterais e é fundamental compreender que nessa dimensão da nossa política externa, as relações bilaterais são o essencial.