O país onde juízes e políticos se confundem
Lula e Temer foram presos, Bolsonaro teme sê-lo e todos os governadores vivos do Rio estão ou estiveram detidos numa realidade onde um magistrado, Sergio Moro, influenciou uma eleição.
"Eu atiro para matar, mas ninguém me leva preso. Prefiro morrer"", disse, agitado, Jair Bolsonaro a aliados nas últimas semanas, segundo relatos publicados em mais de um órgão da comunicação social brasileira. O presidente da República, acusado de cerca de 20 crimes e alvo de 160 pedidos de impeachment mas protegido pela imunidade parlamentar do cargo e por uma aliança com o presidente da Câmara dos Deputados, receia que a sua sorte jurídica mude após o sufrágio em que o rival Lula da Silva, de acordo com as sondagens, é o favorito.
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O país onde até ao início do século todos os processos jurídicos com poderosos, da política ou dos negócios, "terminavam em pizza", a expressão local para "em águas de bacalhau", o que resultava numa sensação histórica de impunidade, tornou-se o seu oposto: agora, todos os poderosos, da política ou dos negócios, temem uma visita matinal da polícia federal que os leve, nem sempre com provas sólidas, para a prisão mais próxima.
Michel Temer, o antecessor de Bolsonaro, acabou detido em março de 2019, meses depois de exercer o cargo, por ordem de Marcelo Bretas, um dos juízes-celebridade do Brasil. A prisão acabou revogada uma semana depois por decisão de um desembargador para quem os motivos da prisão "simplesmente não existiam".
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Bretas é amigo e admirador confesso de Sergio Moro, o juiz que prendeu Lula da Silva a meses da eleição de 2018, que acabaria por eleger Bolsonaro, que, por sua vez, convidaria o magistrado para a superpasta da Justiça e da Segurança Pública. Lula acabou ilibado dos processos e Moro, hoje a meio de uma sinuosa carreira política, assim como Deltan Dallagnol, o procurador do ministério público que liderou a Operação Lava-Jato, foi acusado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) de parcialidade.
No Rio de Janeiro, todos os governadores vivos do estado estão na prisão ou passaram por uma cela: Moreira Franco, no mesmo processo de Temer, o casal Rosinha e Anthony Garotinho, Sérgio Cabral e o seu braço direito e sucessor Luiz Fernando Pezão, e Wilson Witzel, não por acaso um juiz que em 2018 passou das profundezas das sondagens à surpreendente eleição, clamando não ser um político e sim um magistrado determinado a acabar com a corrupção - foi detido, menos de dois anos depois, por corrupção.

A 18 de maio de 2017 os jornais fizeram manchetes com o escândalo de corrupção que envolveu o antigo presidente Michel Temer e o senador Aecio Neves
Uma vez eleito, Bolsonaro dedicou boa parte do seu tempo a guerras com o poder judicial. Ao ponto de escolher a dedo o novo procurador-geral da República, Augusto Aras, acusado pelos observadores nacionais e internacionais de servir de escudo ao presidente. Mas em recente entrevista do próprio à imprensa estrangeira, incluindo o DN, Aras negou favorecimentos e garantiu, a propósito da especulação sobre eventual não aceitação dos resultados das eleições de 2 de outubro pelo campo do presidente, que tudo decorrerá com normalidade democrática: "Nem quero crer que, se o presidente não lograr êxito na reeleição, ele permaneça no Palácio do Planalto ou da Alvorada, porque isso seria uma afronta à democracia".
Além disso, Bolsonaro, que foi acusado por Moro, na hora da demissão deste, da citada superpasta, de aparelhar polícias, vem atacando os juízes do STF, acima de todos eles, Alexandre de Moraes, um magistrado, com carreira anterior na política, que o presidente e os seus apoiantes acusam de perseguição - um pouco à imagem do que sucedia com o Partido dos Trabalhadores em relação a Moro e à Lava Jato.
"Qualquer decisão do senhor Alexandre de Moraes este presidente não mais cumprirá. A paciência do nosso povo já se esgotou. Ele tem tempo ainda de pedir o seu boné e ir cuidar da sua vida", disse o presidente nas comemorações da independência do Brasil, em 2021.
Acumulando o cargo no STF com a presidência do Tribunal Eleitoral, Moraes mandou, no mês passado, cumprir mandados de busca e apreensão em moradas de oito empresários, fãs de Bolsonaro, além de bloquear os perfis nas redes sociais e quebrar o sigilo bancário de todos eles, por terem trocado mensagens antidemocráticas num grupo de Whatsapp. Em editorial, o jornal Folha de S. Paulo criticou os excessos do juiz. "A atuação severa do STF - e particularmente de Moraes -- na defesa do Estado de Direito e na dissuasão de investidas de tom golpista é valiosa e merece elogios. Entretanto, é preciso, em quaisquer circunstâncias, evitar que se borrem os limites entre a resistência intransigente contra atos antidemocráticos e o cerceamento à liberdade de expressão".
Em artigo no jornal Fórum, conotado com a esquerda, o colunista Rodrigo Perez Oliveira "iliba" o termo "judicialização da política" e distingue-o de "corrupção do sistema de justiça", ao mesmo tempo em que critica Moro e aplaude Moraes. "A Lava Jato abalou as garantias jurídicas fundamentais, como os direitos de presunção de inocência, de ampla defesa, de sigilo processual, de ser julgado pelo juiz natural da causa e imparcial. Isso não é "judicialização da política". É corrupção do sistema de justiça".
"Pensar na política sem judicialização seria o mesmo que pensar numa partida de futebol profissional que não seja regulada por árbitro. Imaginem só: os jogadores em campo sozinhos, sem árbitro, marcando pénaltis, foras de jogo e faltas na consciência", afirma.
"Moro era juiz vaidoso, gozava com os holofotes, vazava informações para a imprensa, antecipava despachos em entrevistas, associava-se à acusação para impedir que o réu tivesse direito à plena defesa (...) Moraes é discreto, fala apenas nos autos e nos pronunciamentos oficiais. Não é caça microfone", completa Perez Oliveira.

Uma manifestação, em março de 2018, durante a sessão do Supremo Tribunal do Brasil que decidia sobre um habeas corpus referente à prisão do antigo presidente Lula da Silva.
Os juristas Cristiano Zanin e Valeska Martins, advogados de Lula, e Rafael Valim publicaram, entretanto, o livro Lawfare, sobre a guerra política por meios jurídicos. Ao DN, Valeska Martins contou que o conceito ultrapassa a divisão entre esquerda e direita.
"O conceito de lawfare que propusemos no livro consiste no uso estratégico do Direito para fins de deslegitimar, prejudicar ou aniquilar um inimigo. O lawfare envolve, como detalhamos na obra, a utilização ilegítima do Direito nas mesmas dimensões da guerra tradicional que pode resultar na destruição de pessoas e também de empresas. Políticos de todos os espectros ideológicos estão sujeitos ao lawfare, assim como empresas".
O DN está a publicar desde 1 de setembro um conjunto de reportagens sobre os 200 anos da independência do Brasil, que se celebram amanhã, dia 7 de setembro.
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