Quando Volodymyr Oleksandrovych Zelensky nasceu, num frio dia de janeiro de 1978, numa família judia de Kryvyi Rih, na zona metalúrgica do sudeste da então república soviética da Ucrânia, Vladimir Putin já há três anos se juntara ao KGB, os serviços secretos soviéticos, após se ter formado em Direito. O próprio Zelensky acabaria por se deixar seduzir pelo estudo das leis, formando-se também em Direito na Universidade Nacional de Economia de Kiev, mesmo se já estava envolvido na comédia desde os 17 anos. Este será talvez um dos poucos traços comuns entre os homens que agora são os rostos dos dois lados da guerra entre a Rússia e a Ucrânia.."1 de abril, que dia fantástico para vencer. Afinal sou um palhaço!", exclamava o homem que fez campanha apenas como "Ze", numa entrevista ao jornal Ukrayinska Pravda em plena campanha para as presidenciais de 2019 na Ucrânia. Em poucos meses, o humorista que ganhara fama com o programa de televisão Servo do Povo, em que interpretava o papel de um professor que acidentalmente se torna presidente, conseguiu imitar na realidade a ficção que representara..Num país que ainda não esquecera os acontecimentos de 2014 - o derrube do presidente pró-russo Viktor Ianukovich pelos protestos de rua pró-ocidentais -, a campanha em jeito de brincadeira de Zelensky, que recusou discutir assuntos sérios ou participar nos debates, convenceu os eleitores de que o presidente que viam no ecrã a fazer piadas com a mulher ou a pedalar para o trabalho com uma cara de pânico era mesmo o melhor para ocupar a chefia do Estado. E deram-lhe a vitória, recusando um novo mandato a Petro Poroshenko e gerando comparações como italiano Silvio Berlusconi ou o americano Donald Trump, outras figuras do show-business que chegaram ao topo na política dos seus países..Eleito com quase três quartos dos votos, o ator tornado político instantâneo viu do outro lado da fronteira a sua vitória saudada por um Vladimir Putin já há mais de 20 anos no topo do poder - quase sempre na presidência, com uma curta passagem pela chefia do governo. O presidente russo afirmou esperar de Zelensky "bom senso", "honestidade" e pragmatismo" para melhorar a relação bilateral. Depois do pró-ocidental Poroshenko, Moscovo não via com maus olhos a chegada ao poder em Kiev de um jovem sem qualquer experiência política. O próprio ex-comediante prometera reaproximar-se da Rússia, mas mantendo a independência..Pelo sim pelo não, três dias depois da vitória de Zelensky, Putin assinou uma ordem para a emissão de passaportes russos para centenas de milhares de residentes das autoproclamadas repúblicas populares de Donetsk e Lugansk, russófonas e parcialmente sob controlo dos separatistas apoiados por Moscovo desde a anexação da Crimeia pela Rússia em 2014. Um passo que agora ganhou novo peso, com Putin a alegar que o envio de tropas para a Ucrânia visa em parte proteger estes cidadãos russos..Para compreender a fixação de Putin com a Ucrânia é preciso recuar à sua juventude. Afinal o presidente, nascido Vladimir Vladimirovich Putin a 7 de outubro de 1952 em Leninegrado, atual São Petersburgo, como muitos russos da sua geração - sujeitos enquanto cresciam à força da propaganda soviética -, ainda tem bem frescas as feridas do colapso da União Soviética e da perda da sua esfera de influência..Filho de um veterano gravemente ferido na II Guerra, Putin gosta de lembrar que o seu avô paterno, Spiridon Putin, trabalhou como cozinheiro, primeiro para Lenine, o líder da revolução bolchevique que derrubou o czar em 1917, e depois para o sucessor deste, Estaline, servindo este último na dacha deste na região de Moscovo..Nos anos 1980, enquanto Zelensky seguia a família até Erdenet, a cidade da Mongólia onde o pai, engenheiro de minas, trabalhou durante quatro anos antes de regressar à Ucrânia para o filho entrar na escola primária, Putin ia subindo no KGB. E foi de Dresden, na Alemanha de Leste comunista, onde esteve estacionado entre 1985 e 1990 como agente secreto, que viveu os últimos anos da União Soviética..O próprio Putin já disse muitas vezes como passou pelas mesmas dificuldades que os seus companheiros durante o colapso da URSS, tendo mesmo confessado recentemente ter tido de trabalhar como taxista para pagar as contas quando voltou à Rússia. Para muitos russos, os anos que se seguiram ao desmantelamento da União Soviética foram marcados pela humilhação e a pobreza - um contraste claro com o triunfalismo e a prosperidade do Ocidente na altura..Putin já considerou o fim da União Soviética como "a maior catástrofe do século XX", pior na sua opinião do que as duas guerras mundiais. E na passada segunda-feira, no discurso em que reconheceu a independência de Donetsk e Lugansk, Putin voltou a 1991 para argumentar que a Ucrânia não é "um Estado", tendo sido "roubada" à Rússia pelo colapso da União Soviética. "A Ucrânia tornou-se uma grande colónia de fantoches", garantiu. Antes de acrescentar que os ucranianos "desperdiçaram não só o que lhes demos durante a União Soviética, mas até tudo o que herdaram do império russo. Até o trabalho criado por Catarina, a Grande", afirmou. E nem Lenine escapou às suas críticas, com Putin a considerá-lo "autor e criador" da Ucrânia..Para Putin, os anos 1990 significaram também a saída do KGB e a entrada na política. Depois de pedir a demissão da secreta em 1991, na sequência do golpe contra Mikhail Gorbachev, começou a trabalhar no gabinete do presidente da Câmara de São Petersburgo, onde ficou até 1996, quando se demite após perderem as eleições. É então que se muda para Moscovo. Após uma breve passagem pelo Departamento Presidencial de Gestão de Propriedades, o presidente Boris Ieltsin nomeia-o chefe do protocolo, ficando mais tarde responsável pelas regiões antes de ser nomeado primeiro-ministro no dia 9 de agosto de 1999..A sair da infância aquando do colapso da União Soviética e da independência da Ucrânia, enquanto Putin trocava o fato de espião pelo de político, Volodymyr Zelensky começava a perceber que o humor era o seu futuro. Em 1995, aos 17 anos, aquele que sempre fez rir os colegas de turma juntou-se ao KVN, um concurso local de comediantes, e acabou por vencer a edição nacional. Com a sua própria equipa de stand-up comedy, a Kvartal 95, foi fazendo tournées pela Ucrânia, mas também pela Rússia e outros países da antiga URSS. Em 2003, Kvartal 95 passou a ser o nome do seu estúdio que produziu programas de televisão. A sua especialidade: a sátira política..Estrela também de cinema, foi contudo com o programa de televisão Servo do Povo que ganhou fama e fez fortuna. Das críticas aos políticos na ficção para as críticas aos políticos na realidade foi um passo. Em março de 2019 confessava numa entrevista à revista alemã Der Spiegel o seu desejo de entrar na política para "levar gente decente e profissional" até ao poder. Já no cargo, fez dos oligarcas um dos seus alvos, procurando afastar-se do passado em que trabalhara para um - Ihor Kolomoisky..Homem forte do Kremlin há mais de duas décadas, Putin tem tido nos últimos anos uma relação tensa com o Ocidente. E deixou bem claro que uma das suas linhas vermelhas é o continuado alargamento da NATO para leste. Tal explica que depois do início até auspicioso quando este chegou ao poder, a relação com Zelensky se tenha degradado até chegar ao ponto do confronto militar. Os dois chegaram a participar numa reunião em Paris para tentar resolver o conflito no Donbass, que desde 2014 já fez mais de 14 mil mortos, mas a afirmação de Zelensky no final de que fora alcançado "muito pouco" parece ter azedado as relações Kiev-Moscovo..Desde então , Putin acusou o governo Zelensky de "discriminar" os habitantes de língua russa e de renegar as promessas de solucionar o conflito no leste do país. A proposta de Zelensky em janeiro para uma cimeira entre ele, Putin e o presidente americano Joe Biden não teve resposta de Moscovo. O tom subiu nesta semana, com Putin reconhecer a independência dos separatistas de Donetsk e Lugansk e, ontem, a lançar uma operação militar em larga escala em resposta, disse, ao "genocídio" no leste da Ucrânia. E garantiu tratar-se de uma "desmilitarização" e "desnazificação" do país e não de uma "ocupação"..A ideia de que a Ucrânia é controlada por "neonazis" e "fascistas" já fora antes veiculada pelo Kremlin, referindo-se a grupos ultranacionalistas e de extrema-direita que agem no país, muitas vezes recorrendo à intimidação e à violência para impor as suas agendas, muitas vezes com a cumplicidade das autoridades. A resposta do judeu Zelensky - que lembrou que o avô perdeu três irmãos no Holocausto - chegou ontem: "Dizem-vos que somos nazis. Como é que um povo que perdeu 8 milhões de vidas a lutar contra o nazismo apoia o nazismo?".Até agora, o presidente ucraniano quase fizera esquecer a sua falta de experiência política. Resta saber como vai lidar com o maior desafio da sua curta carreira política - uma guerra contra o mui experiente Putin.