O antigo eurodeputado e três vezes candidato à presidência francesa, Jean-Luc Mélenchon, não tem atualmente qualquer cargo político. Mas continua a ser visto como um líder emérito da esquerda radical e d'A França Insubmissa (LFI), de olho nas presidenciais. Na semana passada, numa entrevista ao jornal La Tribune Dimanche, Mélenchon praticamente declarou a morte da Nova Frente Popular (NFP), a aliança de esquerda que une a sua LFI aos socialistas, comunistas e ecologistas. A rutura ainda não é oficial, com o Partido Socialista (PS) a resistir, mas o centro e a direita aproveitam. “Os socialistas nunca tiveram a intenção de serem parceiros. Eles queriam apenas aproveitar-se de nós”, disse Mélenchon na entrevista, falando numa “aliança tóxica” com o partido liderado por Olivier Faure. “Não podemos ter como aliados pessoas cuja atividade principal é disparar contra as nossas costas.” A gota de água foi a decisão dos socialistas de não votarem a favor da moção de censura da LFI ao primeiro-ministro, François Bayrou, depois de este ter recorrido ao artigo 49.3 da Constituição para aprovar o Orçamento do Estado para 2025 sem a aprovação dos deputados. Esse mesmo gesto tinha levado à queda do antecessor, Michel Barnier, com os votos da esquerda unida e da extrema-direita.“A Frente Popular não é a LFI, não é o PS, não são os ecologistas, não são os comunistas. São as pessoas que, aos milhões, se uniram para recusar a chegada de Jordan Bardella a Matignon”, respondeu Faure, referindo-se ao líder do Reunião Nacional (RN), o partido de Marine Le Pen. O secretário-geral socialista defende que o seu adversário é a “extrema-direita”, porque essa é “a ameaça”, mostrando-se confiante de que a aliança vai sobreviver. Mas sente o próprio partido dividido e convocou para julho um Congresso, ao qual é candidato. Nas legislativas do ano passado, a NFP conseguiu eleger a maior bancada na Assembleia Nacional. Mas o presidente francês, Emmanuel Macron, o único que tem o poder para designar o primeiro-ministro, rejeitou a candidata proposta pela aliança de esquerda - a funcionária de carreira Lucie Castets -, não estando disponível para acordos com a esquerda radical da LFI, que compara à extrema-direita. A Assembleia está dividida em três, entre a NFP, o RN e o campo do presidente, com Bayrou a beneficiar com a falta de acordo à esquerda - algo que o próprio Macron tentou fomentar na hora de escolher um chefe de governo, reunindo com os socialistas e não a LFI, e que o primeiro-ministro acabou por concretizar. Acaba por ser o principal beneficiado pela crise na aliança da esquerda, assim como Macron, que quer manter o executivo até às presidenciais previstas só para 2027. Crise até quando?Professor da Sciences Po de Paris e da Universidade Luiss em Roma, Marc Lazar contou ao DN que estas crises à esquerda são “bastante normais” em França. “Há sempre este tipo de oposição entre a esquerda reformista e a esquerda radical”, referiu, admitindo contudo que “neste momento é difícil dizer que a coligação está viva”. Contudo, pede cautela, porque a situação pode mudar em períodos eleitorais: “Se a esquerda quer ter um certo número de membros na Assembleia Nacional, talvez tenham que recriar pelo menos um acordo eleitoral mínimo.” O professor lembrou ainda que para o ano há eleições municipais, que são muito importantes em França, considerando que será um teste.Marc Lazar explica que há uma “profunda divisão” dentro do próprio PS sobre a aliança com a LFI, lembrando que há os que querem mantê-la porque ideologicamente até são próximos (Mélenchon foi militante socialista) ou defendem esse conceito de união em nome dos eleitores, enquanto outros defendem uma “emancipação profunda”. O professor explica contudo que a divisão não é só ideológica ou política, mas também é sociológica. “Muitos deputados socialistas têm que ter o apoio da França Insubmissa para serem reeleitos. Para não terem adversários desse campo. Estão a favor da aliança, porque caso contrário sabem que não vão ser reeleitos”, referiu. “Mas, do outro lado, há os presidente da câmara que são contra, porque sabem que podem ser reeleitos sem a LFI, porque têm uma base pessoal de apoio.”Questionado sobre quem ganha com esta divisão à esquerda, Lazar diz que ninguém ganha. “Mélenchon quer ser candidato às presidenciais. E toda a sua estratégia é porque tem este desejo. E a sua grande esperança é que o presidente se demita e haja eleições imediatamente, porque ele está preparado, tal como Le Pen. Enquanto o PS precisa de tempo para encontrar um candidato”, explicou, considerando que “não têm, por enquanto, um homem ou uma mulher que possam gerar consenso dentro do partido”. O secretário-geral socialista convocou um novo Congresso esperando reforçar a sua posição. “Faure gostaria de ganhar o próximo congresso do PS e, como secretário-geral, ser considerado o candidato natural do partido. Mas ele é muito fraco nas sondagens. Não é muito popular. E isso é um verdadeiro limite para ele”, indicou o professor. Outra hipótese em cima da mesa, que diz ser “quase uma piada”, é François Hollande, que foi presidente entre 2012 e 2017. “Está a fazer de tudo para voltar”, disse Lazar, lembrando que foi eleito para a Assembleia Nacional e está muito ativo. Há quem equacione que poderá desafiar Faure no Congresso socialista, mas o professor não acredita: “Um antigo presidente não pode ser líder de um partido que tem menos de 40 mil membros.”A eventual rutura da Nova Frente Popular poderá também levar os outros partidos da aliança a querer lançar os seus próprios candidatos. “À esquerda, há outro homem que está a pensar bastante na possibilidade de ser candidato nas próximas presidenciais. É Raphaël Glucksmann, eurodeputado, líder de um pequeno partido chamado Praça Pública. Tem oficialmente 11 mil membros”, explicou, contando que tem “ambição pessoal”. Independentemente do candidato, o professor francês diz que “seria um desastre” se a esquerda aparecesse dividida nas presidenciais - também com um candidato comunistas e outro ecologista. Isto depois de, por duas vezes consecutivas, não ter ido à segunda volta. “Mas quem vai ser o candidato não sei”, admite. Breve história de uma aliançaEsquerda Plural: Nasceu em 1997, colocou o socialista Lionel Jospin em Matignon, mas acabaria por ruir por causa das divisões internas que impossibilitaram a apresentação de um candidato comum às presidenciais de 2002 - a extrema-direita de Jean-Marie Le Pen passou à segunda volta, sendo derrotada pela frente republicana que se formou de apoio ao conservador Jacques Chirac. NUPES: Foram precisos 20 anos para pôr de lado as divisões e nascer uma nova aliança entre socialistas, comunistas, ecologistas e “insubmissos” de Jean-Luc Mélenchon. A Nova União Popular Ecológica e Social (NUPES) foi criada para as legislativas de junho 2022, após os candidatos da esquerda voltarem a ficar de fora da segunda volta nas presidenciais de abril. Tal como em 2017 (e em 2002 com o pai), Marine Le Pen perdeu o frente-a-frente com Emmanuel Macron. A NUPES apresentou candidatos únicos a cada círculo eleitoral nas legislativas (evitando choques entre esquerdas logo desde a primeira volta) e acabou por se tornar na principal força da oposição e contribuir para privar o presidente de uma nova maioria. Mas as divisões internas mantiveram-se, com os socialistas a suspenderem a sua participação na aliança em 2023 devido à posição da França Insubmissa sobre a guerra na Faixa de Gaza. Nova Frente Popular: Quando Macron dissolveu de surpresa a Assembleia, as divisões voltaram a ser postas de lado para lutar contra o aumento da extrema-direita. Nasceu então a Nova Frente Popular (NFP), que foi mais longe com um programa político comum. Apesar do sucesso da extrema-direita na primeira volta, a NFP ganhou a segunda volta, tornando-se na maior bancada da nova Assembleia Nacional. Mas Macron rejeitou um primeiro-ministro da aliança de esquerda e esta viu-se relegada de novo para a oposição.