Mais de seis meses depois de se tornar o líder da Igreja Católica, Leão XIV prepara-se para a viagem inaugural do seu pontificado. O primeiro destino é a Turquia, estando na agenda a celebração dos 1700 anos do Concílio de Niceia ao lado dos cristãos ortodoxos. Segue-se o Líbano, onde rezará junto ao porto destruído pela explosão de 2020, que matou 218 pessoas, e não deverá ignorar o primeiro aniversário do frágil cessar-fogo com Israel.O foco da viagem, que começa esta quinta-feira, 27 de novembro, e só termina na terça-feira, 2 de dezembro, será um apelo à união entre cristãos e à paz na região. Os dois lemas escolhidos para esta deslocação inaugural são precisamente: “Um só Senhor, uma só fé, um só batismo” e “Bem-aventurados os pacificadores”, chamando a atenção para os temas da esperança, da unidade e da fraternidade. Esta viagem é também um marco para a jornalista da Rádio Renascença e vaticanista Aura Miguel, que irá no voo papal. É o quarto papa com quem vai viajar, tendo acompanhado João Paulo II, Bento XVI e Francisco. “Desta vez demoraram mais tempo a afixar quem é que ia integrar a comitiva, porque houve imensos pedidos e interesse para a viagem inaugural de Leão XIV”, contou ao DN, ainda antes de partir para Roma. “Há um triplo interesse. Por um lado os dois países que vai visitar, que são importantíssimos, e depois saber como é Leão XIV a bordo do avião e no contacto com os jornalistas.” Já foi confirmado que haverá a tradicional conferência de imprensa no voo de regresso.O papa Francisco morreu a 21 de abril e o cardeal norte-americano Robert Francis Prevost foi escolhido para lhe suceder a 8 de maio. “As viagens à Turquia e ao Líbano são uma herança de Francisco, que já tinha planeado ir”, explicou Aura Miguel, considerando que o pontificado de Leão XIV tem sido, até agora, marcado por seguir o caminho deixado escrito pelo antecessor.“A grande novidade deste pontificado só se verá agora, nesta viagem, e começará, na verdade, depois do dia 6 de janeiro, quando acabar o Jubileu”, acrescentou, lembrando que o calendário de atividades deste ano especial em Roma já estava planeado. “Temos visto um papa calmo, low profile. Está-se a perceber qual é o seu estilo, mas as prioridades do pontificado acho que só veremos agora e depois a partir de janeiro”, disse a jornalista.“Acho que ainda é cedo para sabermos quem é este papa”, afirmou também ao DN o especialista em História das Religiões, Paulo Mendes Pinto. “Temos aqui um problema de perceção, porque estávamos habituados ao papa Francisco que se movimentava muito, que ia a muitos locais, que fazia muitas declarações. Este papa, claramente, tem um estilo diferente e nós, desejosos de ter indícios, de ter elementos que nos permitam construir um quadro, um retrato de quem ele é, não temos esses elementos. Ainda é cedo”, referiu o também diretor-geral Académico do Ensino Lusófona-Brasil.Turquia.“Num mundo dividido e dilacerado por muitos conflitos, a única comunidade cristã universal pode ser um sinal de paz e um instrumento de reconciliação, desempenhando um papel decisivo no compromisso global com a paz”, escreveu Leão XIV na carta apostólica In Unitate Fidei (Na União da Fé), que publicou no último domingo para assinalar os 1700 anos do Concílio de Niceia e como mote para a viagem à Turquia. O papa defende a “reconciliação entre todos os cristãos”, lembrando que o primeiro encontro ecuménico na história do Cristianismo deve servir de “modelo à verdadeira união na diversidade legítima”.Essa é uma mensagem que deverá repetir amanhã na peregrinação a Iznik, a cidade que se ergue no local da antiga Niceia, onde haverá um encontro ecuménico de oração. “O concílio do ano 325 é um evento de máxima importância para a criação do Cristianismo”, disse Mendes Pinto. “O cristianismo do século III, IV e mesmo depois ainda o V, está cheio de muitas heresias, muitas variantes teológicas e o Concílio de Niceia é a grande tentativa, que resulta, para criar uma ortodoxia”, referiu o especialista em História das Religiões.“O Concílio de Niceia deu origem ao Credo, que todos rezamos, a uma série de passos de oração, mesmo do ponto de vista litúrgico, que unem os cristãos, independentemente de serem católicos ou não”, explicou Aura Miguel. “Quem sabe se esta visita é mais um passo para um caminho de unidade, porque a unidade dos cristãos poderá ajudar à paz”, defendeu a vaticanista na conversa com o DN.“Niceia é o ponto de encontro de todas as correntes do Cristianismo que depois se foram dividindo”, completou Mendes Pinto, insistindo que “esta visita é um passo importante no movimento ecuménico, porque Niceia é o ponto de encontro, é o denominador comum de todas as tradições cristãs de hoje”. E conclui: “Se há muitos aspetos em que se separam, em Niceia encontram-se.”A primeira paragem do papa na Turquia será contudo em Ancara, onde vai reunir com o presidente Recep Tayyip Erdogan. “Além da questão religiosa, acho que esta visita tem outra dimensão que é importantíssima, do ponto de vista estratégico, porque a Turquia tem sido protagonista nas negociações da Ucrânia”, lembrou Aura Miguel. “Será interessante ver o que diz”, sabendo-se que tem sido um defensor da paz e do diálogo. Kiev pediu até que tenha um papel ativo nas conversações com a Rússia para a troca de soldados e a devolução das crianças.No sábado, já em Istambul, o papa visitará a Mesquita Azul e, mais tarde, vai reunir com Bartolomeu I, patriarca Ecuménico de Constantinopla e primaz da Igreja Ortodoxa, para reforçar a ideia de união religiosa. O cisma entre católicos e ortodoxos remonta a 1054, mas os laços têm-se reforçado nas últimas décadas. Bartolomeu I, que também almoça com Leão XIV no domingo, tinha boas relações com João Paulo II e com Bento XVI e Francisco considerava-o um “amigo”. Ainda no sábado, o papa presidirá a uma missa na Volskwagen Arena, com capacidade para cerca de cinco mil pessoas, estando ainda prevista a visita a várias igrejas no último dia no país. “Os cristãos não têm uma vida muito facilitada, as igrejas estão sempre escondidas, longe da vista das pessoas”, contou Aura Miguel, que já visitou a Turquia com Bento XVI, em 2006, e Francisco, em 2014. “É um país que não é muito amigável para com os católicos. Não ataca, mas também não facilita”, referiu, explicando que o papa os visitar também os “sustenta, os confirma na fé”. LíbanoO papa chega ao país do cedro no domingo à tarde. A visita começa com o encontro com as autoridades: primeiro o presidente libanês, Joseph Aoun (estando previsto que plante um cedro no Palácio Presidencial), depois o líder do Parlamento, Nabih Berry, e por último o chefe do governo, Nawaf Salam. Num país considerado modelo no convívio inter-religioso, o balanço de poder ficou estabelecido no pacto nacional de 1943, que dita que o presidente é sempre um cristão-maronita, o líder do Parlamento um muçulmano xiita e o primeiro-ministro um sunita.“O Líbano era modelo para o mundo inteiro. Conviviam sem problema algum muçulmanos com cristãos, chegou a ser considerado a Suíça do Médio Oriente. Mas, do ponto de vista estratégico, sempre foi uma espécie de barril de pólvora, com guerras muito sangrentas com a Síria e a pressão de Israel”, explicou a vaticanista, que visitou o Líbano com João Paulo II, em 1997, e com Bento XVI, em 2012.“O papa João Paulo II tinha um grande apreço pelo Líbano porque os cristãos, que são sobretudo maronitas, são muito valentes, com grande tenacidade”, lembrou Aura Miguel. “É uma comunidade cristã muito sofredora e houve uma espécie de sangria, uma migração das novas gerações”, explicou, sendo, ainda assim, o país do Médio Oriente com maior percentagem de cristãos. Mendes Pinto também destaca a dimensão ecuménica e até inter-religiosa desta parte da viagem, acreditando que há também uma leitura regional.“No Líbano, acho que há uma outra mensagem, não tão clara, mas de grande importância, que é o visitar comunidades cristãs que, nos últimos tempos, nas últimas dezenas de anos, têm estado em significativa redução de membros porque, de facto, o clima não é simpático”, afirmou. “Há perseguição, há gente que é morta um pouco por todo o Médio Oriente e, portanto, a viagem ao Líbano tem essa mensagem de valorizar as comunidades cristãs, qualquer que seja a tradição, contra as perseguições que têm tido lugar”, referiu. “É uma mensagem para o Médio Oriente em geral.”.Leão XIV não deverá conseguir escapar à tensão que se vive com Israel, que há um ano acordou um cessar-fogo com os xiitas do Hezbollah (que é um partido, para lá de grupo terrorista). Ainda no domingo, as Forças de Defesa de Israel bombardearam Beirute, matando o chefe do Estado-maior do Hezbollah. São também recorrentes os ataques no sul do Líbano, assim como em áreas onde vivem os refugiados palestinianos (há também muitos refugiados sírios no país). Em outubro, quando a rainha Rania da Jordânia esteve no Vaticano, perguntou ao papa se achava que era seguro ir. “Bom, nós vamos”, respondeu-lhe Leão XIV, não parecendo preocupado. O diretor do Gabinete de Imprensa do Vaticano, Matteo Bruni, garantiu, na apresentação da viagem, que “todas as medidas de segurança foram tomadas”.Apesar de estarem previstos sete discursos e homilias na Turquia e oito no Líbano, a viagem será uma oportunidade para ver se o papa consegue também sair dos textos preparados e ser espontâneo como o antecessor. Até agora não tem sido. O grande momento no Líbano, além de um encontro inter-religioso e ecuménico na Praça dos Mártires, em Beirute, será a oração silenciosa junto ao porto da capital libanesa, seguido da missa ali mesmo, na orla marítima.O papa “parte com os sentimentos que sempre acompanharam os Sumos Pontífices no exercício do seu ministério petrino: encontrar-se com as comunidades cristãs nestas terras e fortalecê-las na fé - que é o dever do sucessor de Pedro - e, ao mesmo tempo, encontrar-se com os povos, as suas autoridades e comunidades civis, servindo de mensageiro da paz, da harmonia e do diálogo”, resumiu o cardeal Pietro Parolin, secretário de Estado do Vaticano, numa entrevista ao site Vatican News.