Jorge Bergoglio, o solitário passivo que se tornou no pioneiro Francisco
O primeiro Papa americano e também o primeiro jesuíta, voz incómoda e independente na cadeira de São Pedro, Jorge Bergoglio morreu nesta segunda-feira, aos 88 anos, na sequência de um AVC. Francisco teve como prioridades limpar o Vaticano dos escândalos financeiros e sexuais e reformar a cúria romana, enquanto se manteve fiel às suas preocupações de sempre, ao criticar o capitalismo e as profundas desigualdades sociais, mas também ao apelar para a ação no combate às alterações climáticas.
“A morte está todos os dias no meu pensamento”, dizia aos 70 anos, então arcebispo da sua Buenos Aires natal, num conjunto de entrevistas publicadas em livro (El Jesuita, de Sergio Rubin e Francesca Ambrogetti). Como pontífice que mais livros escreveu ou assinou em conjunto com jornalistas, a sua biografia e as suas ideias foram dadas a conhecer, inclusive numa autobiografia (Esperança, publicada em 2024 mas inicialmente pensada para ser publicada apenas depois da sua morte).
Filho de imigrantes italianos do Piemonte, nasceu a 17 de dezembro de 1936. O pai era contabilista na empresa de caminhos de ferro e a mãe era doméstica. Foi o único dos cinco irmãos que cresceu mais perto dos avós, tendo aprendido o dialeto piemontês. Com o pai -- que morreu na sequência de um enfarte ao ver o San Lorenzo Almagro no estádio -- ia ao futebol e tornou-se adepto do jogo, mas como não vê televisão desde 1990 não assistiu à Argentina sagrar-se campeã mundial em 2022.
O facto de ter ascendência de imigrantes – e de os seus avós e de o seu pai não terem embarcado num navio transatlântico que veio a naufragar ao fazer a ligação entre Génova a Buenos Aires, o Principessa Mafalda, embora já tivessem bilhetes -- marcou-o ao ponto de a sua primeira viagem enquanto pontífice ter sido à ilha de Lampedusa, ponto de chegada de migrantes. “Também eu poderia ter conhecido o destino daqueles que ficaram sem nada. Também eu poderia estar entre aqueles que hoje são descartados, daí que o meu coração tenha sempre uma pergunta: porquê eles e não eu?”, disse em Esperança.
Houve dois momentos que o aproximaram da vida religiosa. A primeira, quando tinha 17 anos: no Dia do Estudante preparava-se para celebrar a data com amigos, mas fez um desvio e entrou na igreja de San José de Flores. Ao encontrar-se com o sacerdote sentiu uma espiritualidade que o impeliu a confessar-se, e no fim de contas, já não foi ter com os amigos, tendo voltado para casa com a ideia do que queria fazer na vida. “Apercebi-me de que estavam à minha espera. É essa a experiência religiosa: o espanto de encontrar alguém que está à nossa espera. A partir desse momento, para mim, Deus é aquele que nos 'precede'. Tu procuras por Ele, mas Ele procura-te primeiro. Queremos encontrá-Lo, mas é Ele que nos encontra primeiro”, contou.
Mas o jovem Jorge Bergoglio prosseguiu os estudos, concluídos na Escola Industrial Hipólito Yrigoyen, onde se formou como técnico químico. Depois, trabalhou num laboratório, onde realizava análises para controlar a higiene de produtos alimentares. Tinha encontrado a vocação, mas não a partilhava com ninguém, tendo vivido anos do que chamou de “solidão passiva”. A diretora do laboratório, a ativista paraguaia Esther Ballestrino de Careaga, que viria a ser assassinada pela ditadura militar, em 1977, emprestava-lhe livros revolucionários. Nesse tempo já Bergoglio simpatizava com o peronismo e as ideias de justiça social, o que lhe valeu uma vez uma discussão, que acabou em vias de facto, com um tio. Bergoglio admitiu na autobiografia que era impulsivo. Uma característica que ficou à vista de todos, em 2020, quando puxado por uma mulher, no Vaticano, tendo respondido com uma palmada.
Aos 21 anos, uma infeção pulmonar grave levou-o para o hospital. Os médicos decidiram retirar a parte superior do pulmão direito, onde tinha três quistos. O pós-operatório era doloroso, mas as palavras de uma monja reconfortaram-no. “Disse-me uma coisa que me marcou muito e
que me deu muita paz: 'Estás a imitar Jesus'”.
Recuperado, decidiu entrar para o seminário. Começou por frequentar o seminário arquidiocesano de Buenos Aires, mas meses depois acabou por trocá-lo pela Companhia de Jesus, “atraído pelo seu estatuto de força avançada da Igreja, falado em linguagem militar, desenvolvida com obediência e disciplina”.
Continuou os estudos no Chile e, de regresso à Argentina, em 1963 obteve a licenciatura em Filosofia no colégio de São José em San Miguel. De 1964 a 1966 foi professor de Literatura e Psicologia em dois colégios. De 1967 a 1970 estudou Teologia, licenciando-se também no colégio de São José. Ordenado sacerdote em 1969, volta a estudar no estrangeiro, dessa vez em Alcalá de Henares, Espanha. De regresso à Argentina, em 1973, acumulou experiências e cargos, entre mestre de noviços a professor na faculdade de Teologia. Nesse mesmo ano foi eleito responsável pelos Jesuítas da Argentina (provincial) e, de 1980 a 1986, foi de novo reitor do colégio de São José.
A sua ascensão na hierarquia católica foi interrompida em 1986, ano em que partiu para a Alemanha, onde concluiu a tese de doutoramento. De volta à Argentina, foi enviado para Córdova. Em 1992 foi nomeado bispo titular de Auca e auxiliar de Buenos Aires, por João Paulo II. Seis anos depois passou a ser arcebispo e, em 2001, o Papa polaco nomeou-o cardeal. Reza a história que em 2002 recusou a nomeação para chefiar a Conferência episcopal argentina, mas três anos mais tarde acabou eleito para o cargo onde passou seis anos, período durante o qual participou no conclave que elegeu Bento XVI para o mais elevado cargo da Igreja Católica.
Durante este percurso, Bergoglio notabilizou-se pela modéstia, fosse ao deslocar-se de transportes públicos, fosse na ação evangelizadora nos bairros mais pobres dos subúrbios da capital argentina. Enquanto bispo combateu publicamente o kirchnerismo, primeiro de Néstor Kirchner, mais tarde da mulher Cristina Fernández Kirchner.
Perante a abdicação de Bento XVI, sem forças para enfrentar os escândalos do Vaticano, foi eleito ao fim de dois dias de conclave e cinco votações, em dezembro de 2013.
Pouco depois de ter sido eleito pontífice, começaram a surgir acusações de que teria sido colaboracionista da ditadura militar, incluindo na detenção de dois jesuítas. O jornalista Nello Scavo desfez as dúvidas numa investigação publicada em Portugal com o título A Lista de Bergoglio -- Os que foram salvos por Francisco. Afinal, não só não teve qualquer participação na prisão dos padres como deu refúgio a dezenas de pessoas no Colégio Máximo, o instituto dos jesuítas em Buenos Aires.
O legado de Francisco
Corrupção e lavagem de dinheiro
A chegada de Jorge Bergoglio ao Vaticano dá-se na ressaca do Vatileaks, o escândalo alimentado pelo mordomo de Bento XVI, que fez chegar a um jornalista o conteúdo de cartas endereçadas ao pontífice alemão pelo arcebispo Viganò, e nas quais este denunciava corrupção com contratos entre a Santa Sé e terceiros, com valores inflacionados.
Em resposta aos escândalos financeiros, Francisco criou um secretariado especial para a Economia em 2014. A Autoridade de Supervisão e Informação Financeira, criada pelo anterior Papa, foi reformada em 2020 e, além de passar a ter uma estrutura alinhada com os órgãos de supervisão bancários internacionais, passou a admitir funcionários leigos. Em cooperação com o comité Moneyval do Conselho da Europa para o combate ao branqueamento de capitais, o escrutínio dos investimentos e do Banco do Vaticano foi apertado, o que levou ao encerramento de 5000 contas. Mas o caso de maior envergadura levou à renúncia do cardeal Angelo Becciu, em 2020, na sequência de uma investigações sobre a aquisição de um imóvel em Londres por 232 milhões de dólares, à revelia do Papa.
Abusos sexuais
Francisco demorou a responder de forma acertada ao escândalo dos abusos sexuais por parte do clero, assoberbado com uma série de queixas, da Irlanda à Alemanha, de Espanha aos Estados Unidos. A comissão para a proteção de menores, criada em 2014, foi atingida pela demissão de dois membros. Quatro anos depois, Francisco saiu em defesa de um padre chileno acusado de encobrir abusos, tendo mais tarde pedido desculpa pelo facto.
Suspeito de praticar crimes com adolescentes, o cardeal norte-americano Theodore McCarrick foi expulso da Igreja em 2019, ano em que Francisco realizou uma cimeira com algumas das vítimas, e onde prometeu uma “batalha total” contra os abusadores. Desde então, o Papa abriu os arquivos do Vaticano aos tribunais leigos e instituiu uma plataforma online para denunciar às autoridades da Igreja Católica as suspeitas de abusos e as tentativas de os encobrir.
Em janeiro de 2025, num discurso mais genérico sobre os direitos das crianças, Francisco afirmou: "O abuso infantil, de qualquer natureza, é um ato desprezível e atroz. Não é simplesmente um flagelo social e um crime; é uma violação muito grave dos mandamentos de Deus. Nenhuma criança deveria sofrer abusos. Mesmo um caso já é demais."
Reformas
Em 2022 entrou em vigor o conjunto de reformas da Cúria romana, ou seja, da administração do Vaticano. A grande novidade é que passou a permitir que pessoas não ordenadas possam dirigir os ministérios (dicastérios), bastando serem batizadas.
Francisco também pugnou por uma maior participação das mulheres. A freira franciscana Raffaella Petrini, depois de ter sido a primeira mulher no cargo de secretária-geral do governatorato, foi promovida a presidente, ou seja, a chefiar a gestão da cidade do Vaticano. Além de Petrini, a freira Simona Brambilla foi a primeira mulher a ser nomeada prefeita, no caso do Dicastério para a Vida Consagrada.
Movimentos que, aplaudidos genericamente pela comunidade católica, provocaram vários arrepios nas alas mais conservadoras da Igreja Católica que não poucas vezes criticaram abertamente Francisco ao longo do seu pontificado.
Mensagem
Durante as mais de 40 viagens pastorais -- incluindo duas a Portugal, uma ao Brasil, uma a Moçambique e uma a Timor-Leste --, Francisco defendeu o meio ambiente, o combate às desigualdades, ou os direitos dos imigrantes. Aliás, o seu apelo à ação nas questões económicas refletiu-se mesmo na chamada Economia de Francisco - que remete para Bergoglio mas também para São Francisco de Assis, em quem se inspirou para escolher o seu nome papal - que tem congregado economistas e governantes de todo o mundo na procura por uma sociedade mais justa e menos desigual. Francisco criticou a guerra na Ucrânia e tentou, sem sucesso, ser mediador entre Moscovo e Kiev. E questionou se a intervenção militar israelita em Gaza não pode ser classificada de genocídio.
Escreveu quatro encíclicas: Lumen fidei (que Bento XVI havia começado), de 2013; Laudato si (um manifesto pela defesa da natureza e contra o capitalismo selvagem), de 2015; Fratelli tutti (um alerta contra o populismo e o neoliberalismo), de 2020; e Dilexit nos (uma ode ao amor), de 2024. "Para que o nosso mundo, que sobrevive no meio das guerras, dos desequilíbrios socioeconómicos, do consumismo e da utilização anti-humana da tecnologia, possa recuperar o que é mais importante e necessário: o coração.”