“Tanto o tipo de nacionalismo de Vance, como o tipo de nacionalismo de Trump não têm história”, garante Ivan Krastev.
“Tanto o tipo de nacionalismo de Vance, como o tipo de nacionalismo de Trump não têm história”, garante Ivan Krastev. FOTO: EPA / Jim Lo Scalzo

Ivan Krastev: “Trump tem um medo genuíno da guerra. Não é um belicista”

Em Lisboa para a conferência 'Brave New Disorder: The Trumpian Shock to the World and Europe', organizada pelo European Council on Foreign Relations, Krastev falou ao DN sobre a nova ordem mundial.
Publicado a
Atualizado a

Veio a Lisboa para a conferência "Admirável Nova Desordem — O Choque Trumpiano para o Mundo e para a Europa". Estamos há quatro meses nesta segunda Administração Trump e temos assistido a guerras de tarifas, ameaças ao Canadá, ao Panamá, à Gronelândia, etc. Trump já mudou a ordem mundial tal como a conhecíamos desde a II Guerra Mundial?

Sim, claro. Mas nas mudanças revolucionárias, a velocidade é o mais importante. É o famoso ditado de Lenine: “Houve décadas em que nada aconteceu e depois houve semanas em que décadas aconteceram.” Desse ponto de vista, não se pode medir um governo revolucionário da mesma forma que se mede um governo normal. Portanto, passaram quatro meses, mas não vamos imaginar que os quatro anos de mandato vão ser todos assim. Mas Trump desencadeou os processos que, de certa forma, estão a moldar o comportamento dos outros. Portanto, no início, a história é o que Trump está a fazer. Agora, a questão é como reagem os outros e isso vai reformular muito mais o mundo. Trump iniciou um processo que não pode controlar. Este é o problema de qualquer revolução. Não é possível comandar a revolução, é a revolução que nos comanda. Trump sabe disso. Mas acredita que só uma mudança radical poderá manter os EUA numa posição de poder no mundo. Essa é a principal diferença face aos outros. Trump acredita que o atual statu quo está a esgotar totalmente os EUA. Os EUA estão do lado perdedor e, para preservar o domínio americano, é preciso mudar tudo. É preciso tornar-se o disruptor-em-chefe.

Se tudo depende de como os outros vão reagir a Trump, o que podemos esperar da Europa? Esta segunda presidência Trump é um sinal de alerta para os europeus perceberem que têm de se defender sozinhos?

A Europa não estava preparada para o segundo mandato de Trump, porque se lembrava muito bem de como lidou com Trump durante o primeiro mandato. E durante o primeiro mandato, claro, Trump foi disruptor, mas não foi uma força revolucionária que está a ser agora. Por muitas razões. Ele não tinha capacidade para tal — não tinha uma coligação própria. No primeiro mandato, Trump fez parte de um “governo de coligação” com o establishment republicano. E era também um Trump diferente. Desse ponto de vista, a Europa estava preparada para lidar com um Trump muito difícil, mas tinha a sensação de que sabia como lidar com isso, fazendo muito à semelhança do que fez durante o primeiro mandato. Um pouco de lisonja, um pouco de resistência, ganhar tempo, e depois, de repente, a Europa entende que não vai ser assim. Várias coisas mudaram. Uma delas é que, pela primeira vez, a liderança europeia colocou a seguinte questão: a Administração Trump acredita que a sobrevivência da União Europeia é do interesse dos Estados Unidos? Essa questão não se colocava no período anterior. Não estamos a falar da NATO. Não se trata da América decidir distanciar-se, retirar-se. Trata-se de os EUA decidirem que a sobrevivência da União Europeia não é do seu interesse. Não é claro se esta é uma decisão americana, mas, pela primeira vez, é uma das opções. Em segundo lugar, temos a pressão proveniente do facto de, economicamente, a Europa estar numa posição muito mais difícil, porque as tarifas dizem respeito a todos. E deve tentar ver como os outros reagem. Além disso, agora há uma guerra na Ucrânia, que é muito importante para a Europa, muito mais importante do que para os EUA. E aqui, a Europa não pode substituir os EUA. Além disso, a possibilidade de os EUA fazerem um acordo com a Rússia à custa da Europa é também algo muito presente na mente dos líderes europeus. Portanto, desse ponto de vista, de uma forma estranha, Trump 2.0 é tão diferente de Trump 1.0, da perspetiva europeia, como Trump era de Obama. É uma grande diferença.

Ivan Krastev
Ivan KrastevFoto: KLAUS RANGER

Estávamos a falar da União Europeia e sobre a guerra na Ucrânia. O que vimos no início da guerra foi realmente uma união dos 27 Estados-membros. Mas agora vemos que está a desvanecer. Acha que a Administração Trump pode ter o efeito de unir novamente a Europa?

Tento acreditar que devemos ser justos com Trump. Ele conseguiu certas coisas. A história interessante com Trump é que, quando Biden chegou ao poder, tentou consolidar a coligação europeia-americana. Mas, a dada altura, o público europeu tem a sensação de que não temos a certeza do que queremos exatamente. As pessoas começaram a não acreditar que a Ucrânia pudesse recuperar o seu território. E, entretanto, a extrema-direita começava a falar de paz. Os governos europeus estavam a falar como se nunca fossemos acabar com a guerra. E depois chega Trump e vem com a ideia do cessar-fogo. No início, os europeus e os ucranianos não ficaram contentes com esta ideia. Mas é graças a ela que entendemos que a Rússia não vai parar a guerra. E, de repente, a Europa tornou-se a defensora da paz - os governos europeus começaram a pedir um cessar-fogo. Os ucranianos começaram a pedir cessar-fogo. Isto torna mais fácil para os governos europeus dialogarem com as suas opiniões públicas. Porque havia um grupo considerável de setores nas nossas sociedades, diferentes em diferentes países, que estavam a dizer: “Por que é que não estamos basicamente à procura de um cessar-fogo?” E agora é claro que os russos não terão qualquer conversa séria antes de conseguirem o que queriam. E, basicamente, antes vão ter alguma ofensiva. Portanto, Trump criou uma abertura, o problema é o que está a fazer quando entende que a Rússia não vai parar. Porque no centro da sua política em relação à Rússia estava a Ucrânia, que do seu ponto de vista não lhe interessa. O importante para ele é a normalização das relações entre a Rússia e os EUA. Estavam a falar sobre o Ártico, estavam a falar sobre o Médio Oriente. Para Trump, a Ucrânia era apenas a forma de provar aos russos que estava pronto para fazer coisas que nenhuma outra Administração americana tinha feito. E Trump acreditou, talvez erradamente, que para Putin a América era mais importante do que a Ucrânia.

E, de repente, percebeu que não é….

Sim, percebeu que não é verdade. Portanto, agora pode fazer duas coisas. Uma é tentar ajudar os europeus, ajudar os ucranianos, a conseguirem sustentar a sua posição o mais possível. A verdade é que, antes do final do ano, não acredito que haja qualquer hipótese real de congelamento ou de um cessar-fogo mais longo. E a Ucrânia não estará numa posição melhor do que está agora, mas a sua soberania será mantida. Desse ponto de vista, se Trump decidiu ajudar, isso significa fornecer informações e permitir que os europeus comprem armas americanas, porque esta administração não vai dar armas de graça, como a de Biden fez. Trump, e isto é interessante, caiu na sua própria armadilha porque, para ele, esta era a guerra de Biden. Mas se a Ucrânia entrar em colapso, será uma derrota dele. Da mesma forma que o Afeganistão não foi a guerra de Biden, mas a saída de Cabul foi a derrota de Biden. É aqui que não sabemos como as coisas vão acontecer. Sou uma das pessoas que não acredita que se possa esperar uma grande escalada por parte de Trump. Por várias razões. Em primeiro lugar, Trump tem um medo genuíno da guerra, e isso deve ser reconhecido. Não é um belicista. Em segundo lugar, agora já toda a gente sabe que, dos dois, Putin é mais duro e muito mais empenhado neste conflito. E certamente acredita que a América pode retirar-se sem que ele tenha de pagar um preço elevado. Não acredito que isso seja exatamente verdade, mas levará tempo até Trump perceber que a sua própria credibilidade também é um problema. E a questão mais importante é como é que os chineses vão interpretar o que vai acontecer se os americanos se retirarem. E a próxima guerra será a dele, se a China entender que Trump não está, a nenhum custo, pronto para se comprometer com uma força militar fora dos Estados Unidos ou da vizinhança dos Estados Unidos. Oiça, não é que vão atacar Taiwan da mesma forma que os russos atacam a Ucrânia, mas podem, por exemplo, declarar que Taiwan faz parte da sua zona alfandegária e começar a parar todos os navios que passam por Taiwan e assim por diante. Mudando drasticamente a História e aumentando a pressão. Desse ponto de vista, esta é realmente uma situação nova, com um nível de incerteza muito elevado.

Já ouvimos o vice-presidente JD Vance criticar ferozmente a Europa, também Trump disse é que a União Europeia foi criada para prejudicar os Estados Unidos. Como vê este sentimento antieuropeu nesta Administração?

Há aqui três coisas diferentes a acontecer. Uma é que a América está a mudar muito, demograficamente. Portanto, há muito menos pessoas de origem europeia nos EUA e, portanto, a América conhece um pouco menos a Europa do que conhecia. Na imaginação destas pessoas, também é uma questão de classe. Para pessoas como Vance, os europeus são todos liberais mimados que não têm uma comunidade. A segunda é uma aposta política. No fundo, é a universalização da experiência americana. Pessoas como Vance não conhecem bem a política europeia. Ele veio, olhou para a Europa, viu algumas sondagens e pensou: nós chegámos ao poder, então todas estas pessoas [a extrema-direita, os nacionalistas] podem chegar ao poder. E se as quisermos ajudar, podemos ter uma aliança diferente, muito mais cultural. E podem também tentar ver a Rússia como parte dessa aliança. Porque esta aliança cultural é muito baseada na demografia. Tem muito a ver com a grande redução do número de brancos na população mundial. A ideia de sociedades que estão a encolher, sociedades envelhecidas. E acredito que este tipo de narrativa é extremamente importante. No fundo, eles tentam imaginar uma espécie de nova aliança sagrada. E é por isso que é tão interessante ver como os americanos estão a interpretar mal a Rússia. Quando sugeriram que o Vaticano podia ser o local das negociações, parte da ideia era que seria uma grande aliança cristã. E, de repente, a resposta da Rússia foi: “Não vamos negociar na capital do catolicismo.” Desse ponto de vista, tanto o tipo de nacionalismo de Vance como o tipo de nacionalismo de Trump não têm história. O nacionalismo de Trump é um nacionalismo imobiliário. Olha para o mundo da mesma forma que olharia para um bairro problemático. E a sua estratégia é a gentrificação. Se os ricos vão para o bairro problemático, os preços sobem. Portanto, se em Gaza construirmos hotéis e transferirmos algumas pessoas e colocarmos outras, ficará tudo bem. A narrativa de Vance baseia-se muito no desconhecimento, não numa interpretação errada, mas no desconhecimento da História Europeia. Por exemplo, este conflito entre ortodoxismo e catolicismo, a diferença entre os diferentes nacionalismos, isso não faz parte do seu conhecimento histórico. Ele é muito americano e esse é o problema. A maioria dos líderes americanos que lidaram com a Europa provavelmente tinham uma leitura errada da Europa, mas sabiam alguma coisa sobre a Europa. Mas, para muitos dos apoiantes de Trump, a Europa é uma terra tão estrangeira como África.

Só uma última pergunta. O Ivan é búlgaro. A Bulgária foi um país satélite da União Soviética durante a Guerra Fria, têm uma longa história de proximidade. Como vê a Rússia agora?

Quando olhamos para a imagem que as pessoas têm da Rússia, o mais importante não é o período soviético, mas sim a que império pertenceram antes. Os países que pertenceram ao império russo, ou seja, polacos, bálticos, finlandeses, são fortemente antirrussos e apoiam fortemente a Ucrânia. Os antigos Habsburgos ficam algures no meio. Países como a Bulgária, a Grécia, a Sérvia, no que diz respeito à opinião dos governos, são muito menos anti-Rússia. Além disso, existe um setor da sociedade, no caso da Bulgária, provavelmente cerca de 20%, que é fortemente favorável à Rússia. Mas, curiosamente, este é um povo que, por um lado, está próximo da Rússia, mas, por outro, não conhece a Rússia. Os búlgaros não viajam para a Rússia, não negoceiam com ela, não estão a mandar os filhos estudar lá. Assim, paradoxalmente, se olharmos apenas para os inquéritos de opinião, a Bulgária está entre os países mais pró-Rússia da Europa. Por outro lado, nunca, na sua História, a Bulgária esteve tão integrada no Ocidente, com tantas pessoas a viverem no Ocidente. Provavelmente, temos agora mais búlgaros a viver em Portugal do que em Moscovo, o que historicamente é absurdo. A Rússia surge como uma espécie de alternativa àquilo de que não gostam, nos últimos 30 anos, no mundo em que vivemos, do que como uma realidade que conhecem.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt