Marine Le Pen à saída do tribunal.
Marine Le Pen à saída do tribunal.EPA

Impedida de ser candidata em 2027, Marine Le Pen aposta na vitimização

A extrema-direita vê na decisão do tribunal uma decisão política. Reunião Nacional apela para uma “mobilização popular e pacífica” contra a sentença.
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Sabia-se há meses que, sobre a cabeça de Marine Le Pen, de 56 anos, pendia a espada da justiça. Que, no último dia de março, o Tribunal Penal de Paris iria decidir o processo pelo qual a líder parlamentar da Reunião Nacional (RN) e presidente do partido à altura dos factos estava acusada. No julgamento que terminou em novembro, o Ministério Público deu como provado um esquema de desvio de fundos públicos no Parlamento Europeu no valor de pelo menos 4 milhões de euros em favor do partido de extrema-direita e pediu a condenação de 25 pessoas. No caso de Marine Le Pen, a acusação pediu cinco anos de prisão e outros tantos anos de inelegibilidade e 300 mil euros de multa. Ainda assim, e num primeiro momento, a decisão da justiça deixou os líderes do partido atónitos. A mulher que surgia na frente das sondagens para a eleição presidencial de 2027 saiu do tribunal em silêncio, ainda antes do final da leitura da sentença, e sem esboçar qualquer reação. Segundo o Le Monde, os porta-vozes da RN não receberam quaisquer instruções sobre como reagir quer durante as alegações finais do julgamento, quer agora. Depois do estado de negação, a resposta da extrema-direita surgiu em bloco, ao apresentar a condenada em primeira instância como vítima e ao responsabilizar juízes e outros políticos. A via para Le Pen concorrer é agora estreita, embora não impossível.

Marine Le Pen não ouviu da boca da presidente do coletivo de juízes que fora condenada a quatro anos de prisão, dois deles suspensos e outros a cumprir com pulseira eletrónica; e que em paralelo perdeu o seu lugar no conselho do departamento de Pas de Calais (mas não o de deputada) e está impedida de concorrer a eleições durante cinco anos com efeitos imediatos. A RN também foi condenada a uma multa de 2 milhões de euros, dos quais 1 milhão em definitivo, bem como ao confisco de 1 milhão de euros apreendidos durante a fase instrutória. Só um arguido foi absolvido, tendo os restantes 22 sido condenados a penas de prisão suspensas, ao uso de pulseira eletrónica, multas e inelegibilidade. Na sala do tribunal, a juíza Bénédicte de Perthuis declarou que o tribunal “teve em consideração, além do risco de reincidência, a perturbação grave da ordem pública, neste caso o facto de que uma pessoa já condenada em primeira instância se candidate à eleição presidencial”. Foi o suficiente para Le Pen trocar umas palavras com o advogado e sair.

A direção da Reunião Nacional reuniu-se de emergência para analisar as consequências da decisão e deixou a primeira reação para o advogado. Rodolphe Bosselut disse de imediato que a sua cliente iria recorrer da decisão, a qual classificou de “golpe à democracia”.

Da leitura da sentença ficou estabelecido que Marine Le Pen estava “no centro do sistema” de postos de trabalho fictícios no Parlamento Europeu, ainda mais quando assumiu a liderança do partido a partir de 2011. O tribunal considerou que Marine Le Pen substituiu “com autoridade e determinação” o esquema instaurado pelo seu pai, Jean-Marie, desde 2004. Não houve “enriquecimento pessoal”, mas “um enriquecimento do partido”. Ficou dado como provado que todas as pessoas levadas a julgamento “trabalhavam na realidade para o partido”, tal como foi provado que não tinham qualquer tarefa incumbida pelos eurodeputados.

Convidada pelo telejornal da TF1, Marine Le Pen explicou por que deixou a juíza a falar: “A magistrada assumiu que se trata de uma decisão política, para me impedir de apresentar a uma eleição presidencial.” Alegou que o Estado de Direito não está a ser cumprido porque a condenação relativa à inelegibilidade devia ter efeito suspensivo enquanto prosseguem os trâmites dos recursos. “Há milhões de franceses indignados a um grau inimaginável, visto que, em França, no país dos direitos humanos, os juízes praticaram o que se pensava estar reservado a regimes autoritários”, disse. Na prática, a via para concorrer às eleições de 2027 estreitou-se. Por norma, os recursos demoram entre ano e meio a dois anos a serem analisados. Só se a justiça funcionasse de forma mais expedita, tendo em conta a natureza do caso, e a absolvesse, é que poderia concorrer. Ainda assim, a líder de facto da RN disse esperar “neutralidade” do tribunal de segunda instância e mostrou-se esperançada de poder vir a ser a candidata da extrema-direita.

Sobre o processo, Le Pen disse que teve origem em “opositores políticos” e afirmou-se “inocente”, tendo alegado que tudo não passa de “um desacordo administrativo” com o Parlamento Europeu. As regras daquela instituição europeia não deixam margem para interpretações: os assistentes dos eurodeputados têm de trabalhar como tal. Durante o julgamento foram lidas mensagens trocadas de membros da RN contratados como assistentes com o tesoureiro do partido e que, em certo momento, exprimiram a sua preocupação por terem consciência de que poderiam vir a responder na justiça. Por fim, Marine Le Pen negou qualquer “enriquecimento pessoal” ou “corrupção” - e nesse ponto esteve em sintonia com o tribunal, uma vez que o crime pelo qual foi julgada e condenada foi o desvio de dinheiros públicos.

Nas reações ao desfecho do processo, o presidente do partido, Jordan Bardella, apelou para a “mobilização popular e pacífica” contra a sentença. Mas a operação de vitimização arrancou com uma mensagem crítica vinda do Kremlin à democracia francesa. O regime de Vladimir Putin tem relações antigas com a RN, tendo em 2014 emprestado dinheiro ao partido. Le Pen tem sido uma voz contra as sanções à Rússia. Na UE, a francesa recebeu mensagens de apoio do húngaro Orbán (“Je suis Marine!”, numa comparação com a onda de solidariedade para com as vítimas do atentado terrorista do Charlie Hebdo e a defesa da liberdade de expressão), do italiano Salvini, do neerlandês Wilders, do espanhol Abascal.

Ainda na Europa, o líder dos sérvios na Bósnia Milorad Dodik, recentemente condenado a pena de prisão e interditado de exercer as suas funções, também se mostrou solidário para com a francesa. Nos Estados Unidos, depois de Elon Musk se atirar à “esquerda radical” por “abusar do sistema jurídico”, o Departamento de Estado comparou o sucedido à “guerra judicial” conduzida contra Donald Trump.

Marine Le Pen à saída do tribunal.
“Quem é suspeito de desviar dinheiro público, em nenhum lugar do mundo deve ser elegível”

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