Como soube que os ataques terroristas aos kibbutz do sul de Israel estavam a acontecer naquele 7 de outubro de 2023?Às 6h25, quando começam as sirenes. Há muito tempo que não acontecia. Eu estava sozinho em casa e automaticamente meti-me no refúgio e liguei para os meus filhos para saber como é que estavam. Estavam meio a dormir, surpreendidíssimos, sobretudo porque rapidamente entendemos que não era uma coisa comum. Muitas vezes tínhamos vivido situações, anos antes, de sirenes, ouve-se um estrondo, não se sabe muito bem se é o míssil a cair ou se é o sistema antimíssil a funcionar. Mas nesse sábado era uma chuva de estrondos. Era bum, bum, bum a um ritmo que eu nunca tinha ouvido. Não disse nada aos meus filhos para não os assustar, mas eu percebi que não era uma coisa normal. Então pus a televisão a funcionar, e ligo para um amigo do kibbutz Bee’ri e ele diz-me que não pode falar, que “isto é uma tragédia”. Vejo o choque na televisão, como a bola de neve vai crescendo, porque uns minutos depois há uma menina de 18 ou 19 anos que liga para o canal 12, que é o de mais audiência. O apresentador que tinha chegado em moto, também percebera que era uma coisa diferente e foi logo para os estúdios. E ela começa a chorar e a dizer, “o meu pai foi sequestrado em pijama”. E eu vejo a cara de Danny Kushmaro, o apresentador, um tipo que tem uma experiência brutal, e começo a ver como fica pálido em direto. Ele diz, “o que é que estás a dizer?”. Era realmente inacreditável ouvir que o Hamas tinha entrado no sul de Israel e estava a sequestrar o pai da menina.Estamos a falar de mais de mil mortos e de mais de 200 reféns levados para Gaza. Lidou de perto com Yitzhak Rabin, com Shimon Peres, com Yasser Arafat, e também esteve envolvido na esperança de paz que veio com os Acordos de Oslo de 1993. Este ataque do Hamas, e também a retaliação israelita, que fez já dezenas de milhares de mortos, acabaram com as perspetivas de paz entre israelitas e palestinianos, ou é só um momento e pode haver de novo negociações? Este ataque, que é, segundo Yuval Noah Harari, o grande historiador israelita, a maior atrocidade cometida na Terra Santa em dois mil anos, desde a destruição do Segundo Templo no ano de 70 -- normalmente diz-se que é a maior atrocidade desde o Holocausto-, começou uma série de movimentos tectónicos que nos vão acompanhar durante anos. É um evento que tem um antes e um depois, e para tudo, do ponto de vista prático, do ponto de vista psicológico, e realmente é uma espécie de terramoto que estamos a ver neste momento, e que está a provocar uma série de mudanças geopolíticas. Pense só na guerra das sete frentes, pense na guerra dos 12 dias contra o Irão. São coisas que há dois anos seriam impensáveis, sobretudo depois de uma década relativamente tranquila.Depois do 7 de Outubro, há essa guerra das sete frentes, do Líbano ao Irão e ao Iémen, mas fala-se sempre é de Gaza e do sofrimento dos palestinianos. E as críticas a Israel, que sempre foram muitas, agudizam-se. Como reage quando ouve dizer que Israel não é uma democracia, que os dois milhões de árabes israelitas são cidadãos de segunda, ou que Israel quer expulsar de Gaza e da Cisjordânia todos os palestinianos?Como cidadão israelita, como ser humano, como judeu, como jornalista, eu acho que é uma vergonha. É o produto de duas coisas diferentes. Por um lado, muita ignorância, porque quem declara que os cidadãos árabes de Israel são de segunda categoria, que vá ao Supremo Tribunal, vá aos hospitais, vá às universidades, vá ao parlamento. Não se pode dizer uma coisa assim. É incrível que exista ignorância, porque este é talvez o conflito no mundo sobre o que mais se informa em quantidade, mas em qualidade, meu Deus, deixa muito a desejar. E a segunda coisa são os estereótipos. Eu pensei que 80 anos depois do Holocausto, tínhamos superado uma série de coisas que, afinal, ainda estavam muito perto da superfície. E um evento traumático como este, por um lado o que fez o Hamas e por outro lado a resposta israelita, trouxe à superfície todos esses sentimentos.Está a falar de antissemitismo?Estou a falar de antissemitismo de forma direta. No outro dia estive na Arábia Saudita, e o rabino da comunidade de Riade - existe uma comunidade judaica, esta quinta-feira vai haver serviços de Yom Kippur, com centenas de pessoas - vai vestido de rabino pelas ruas e diz, “nunca me senti tão seguro. Olham para mim com respeito total”. Estamos a falar da Arábia Saudita, um país que não tem relações diplomáticas com Israel, um país que, com a custódia de Meca e Medina, é um pouco o farol do mundo muçulmano, de dois mil milhões de pessoas. E ele diz-me, “mas no último ano bateram-me duas vezes, uma em Bruxelas e uma em Paris”. Isso é inaceitável. Estamos a ver um aumento em países como a França ou o Brasil de mil por cento nas agressões contra judeus, agressões antissemitas de todo o tipo. É ver os estudos da Anti-Defamation League dos Estados Unidos, que seguem a situação no mundo. Eu acho que isso é muito perigoso. Obviamente Israel, numa guerra como esta, comete crimes de guerra, como comete qualquer país que está numa situação de guerra. Não existem guerras sem crimes de guerra. No entanto, dizem-se coisas sobre Israel que eu sei que são falsas. E é muito grave que parte da imprensa ocidental aceite a propaganda direta de um grupo que a União Europeia e a Liga Árabe consideram terrorista. Eu há décadas que luto pela paz com os palestinianos e com o mundo árabe. Para mim é o mais importante, deixar à próxima geração uma situação de mais paz nesta região e de mais paz em Israel. E preocupa-me o sofrimento da população de Gaza. No entanto, grupos como o Hamas ou como a Jihad Islâmica, para mim, não podem ser parte do futuro. Se tivessem libertado os reféns a guerra tinha acabado. Estou muito feliz de ver que também a comunidade internacional, e o próprio mundo árabe e países muçulmanos que no passado apoiaram o Hamas, dizem agora que o Hamas não pode ser parte do futuro, não pode participar nas eleições que vai haver provavelmente em 2026. Eu espero que no futuro os radicais, seja do lado que for, sejam isolados como resultado desta guerra, e que possamos realmente levar a que as pessoas de bem, com opiniões diferentes, possam tentar construir uma paz verdadeira aqui..O Enigma de IsraelHenrique CymermanD. Quixote356 páginas .Vários países avançaram para o reconhecimento do Estado palestiniano, que toda a gente diz que é só simbólico, mas desagradou muito a Israel e agradou muito aos palestinianos. Eu recordo que se recuarmos a 1948, quando Israel declara a independência, e se dá aquilo que os palestinianos consideram uma catástrofe, havia desde um ano antes um plano da ONU para dois Estados. Não sente que não foi feito verdadeiramente esforço para concretizar, ao longo de décadas, nem pelos israelitas e palestinianos, nem pelo mundo árabe, nem pela própria comunidade internacional?Até ao 7 de Outubro eu via quase cada mês o presidente palestiniano Mahmoud Abbas. Eu tenho uma relação com ele de décadas, desde o princípio dos anos 90, e um dia ele disse-me assim, “nós podíamos ter já um Estado há 76 anos”. Naquela altura era há 76 anos. Houve cinco momentos na história, um deles com o próprio Abbas, nos quais a Palestina podia ter sido fundada como Estado ao lado de Israel, mas sem dúvida o mais importante de todos foi em 1947, que é o que está a citar, 29 de novembro, a decisão de que agora que os britânicos vão embora, repartir este território em dois, um Estado judeu e um Estado árabe-palestiniano. O que aconteceu foi que David Ben Gurion, decide, apesar de não gostar das fronteiras, aceitar essa divisão, ele diz que mais vale um pássaro na mão, enquanto que o lado árabe convence a liderança palestiniana da época a não aceitar, dizendo que “nós vamos limpar o terreno todo, os judeus não têm nenhuma possibilidade”. Eram 600 mil pessoas, das quais metade sobreviventes do Holocausto, gente débil nos seus corpos, nas suas almas, e não tinham armas nessa altura. Então eles disseram “vamos vencer estes judeus e todo o território será para vocês”. Esse é o grande drama palestiniano, porque não foi a única vez. O desejo de tudo ou nada levou os palestinianos a que em 2025 ainda não tenham um Estado independente real. E o que têm, e é importante, é simbólico, são 150 países que reconhecem o Estado palestiniano, mas como me dizem em Ramalhah os meus amigos na Mukataa, na sede palestiniana, que trabalham com Abbas, “estamos fartos de declarações, o que queremos é factos no terreno”. Os palestinianos perderam várias oportunidades mais, e duas delas eu cobri como jornalista: uma foi em Camp David, em 2000, quando com Bill Clinton Arafat recebe uma proposta de Ehud Barak de 96% da Cisjordânia a troco dos 4% restante, que são colonatos, haveria intercâmbio de territórios com israel, 100% de Gaza, partes de Jerusalém Oriental, inclusive uma bandeira palestiniana nas mesquitas de Jerusalém, o que hoje pode parecer ficção científica. Nesse momento foi oferecido e Arafat disse que não. E quando o meu amigo Miguel Ángel Moratinos, condecorado por Arafat, ex-ministro dos Negócios Estrangeiros espanhol, enviado especial da União Europeia aqui, lhe perguntou minutos depois, no heliporto da base de Andrews, porque é que não aceitou? Ele disse “porque se eu aceitasse matavam-me”. Referia-se ao Hamas, à Jihad Islâmica. Ele teve medo. Não esteve à altura de um Sadat egípcio ou de um Rabin israelita. E esse é o grande drama. A minha esperança é que já haja hoje em dia, já esteja neste mundo, aquele líder palestiniano que vai saber encontrar um acordo salomónico. E também em Israel, eu espero que já esteja aqui.Terá de uma nova liderança israelita, porque Netanyahu nunca mostrou convicção num Estado palestiniano?Não, isso não é bem verdade porque eu tive conversas com ele no passado, nas quais ele me perguntou, por exemplo, sobre Andorra ou sobre a Costa Rica, como era um Estado que não tem exército. E há o famoso discurso de Bar-Ilan, em 2009, no qual ele apoiou um Estado palestiniano desmilitarizado. Neste momento ele tem uma coligação na qual se dissesse isso caía o governo cinco minutos depois, então não o vai fazer. Em qualquer caso é irrelevante, porque o que é importante aqui é se vamos ou não ter as circunstâncias que possam levar no futuro ao Estado palestiniano. De todas as alternativas que há sobre a mesa, e sobre as quais ninguém fala, é curioso, a de um Estado palestiniano é a menos má, e portanto temos que tentar construí-la. A comunidade internacional, mas eu acredito sobretudo no mundo árabe, tem que ajudar a desradicalizar a Palestina. É preciso educar para a paz. Na Palestina, sobretudo em Gaza, eu vi os livros de matemática, nos quais os problemas que dão às crianças são “se eu tento matar 15 judeus e não consigo matar 3 deles, quantos consegui matar?”. É assim que se ensina.Quando visitei os kibbutz perto de Gaza, nomeadamente o Nir Oz, percebi que muitas das pessoas mortas ou sequestradas eram do chamado campo da paz, e que os sobreviventes se sentiam traídos pela violência. Não há neste momento na sociedade israelita uma desumanização dos palestinianos em consequência do terror do 7 de Outubro?É difícil falar neste país de sociedade israelita, porque sabe que dois judeus, três opiniões. Toda a gente aqui tem uma opinião diferente. Neste momento, para a maioria da sociedade, até mesmo para alguns setores que há pouco tempo apoiavam um Estado palestiniano, não é fácil digerir este tsunami diplomático, que é visto como um prémio ao Hamas. E é curioso porque justamente o Hamas não quer um Estado palestiniano. Eles boicotaram o Estado palestiniano nos anos 90, com os seus atentados suicidas, quando Rabin e Arafat estavam quase a fazê-lo, e agora boicotaram não só isso, como a normalização entre Israel e vários países árabes, entre eles a Arábia Saudita. Os israelitas neste momento estão a viver uma situação de trauma, e por isso é que eu digo que é preciso construir esta confiança. Eu acredito que não há outra alternativa para o futuro. Isso vai chegar de uma maneira ou de outra. Um Estado palestiniano ao lado de Israel. O Hamas o que quer é um Estado islâmico em toda a região, em Israel e na Palestina. Agora que o Hamas fica fora de jogo, esperemos, depois desta guerra, talvez haja mais possibilidades de poder construir isso. Eu sei que uma parte importante da sociedade israelita estará disposta a isso só com três condições. Segurança, segurança e segurança. Se os israelitas têm a certeza que não pode haver outro 7 de Outubro, vão pensar de outra maneira. Mas não será amanhã. Será quando? Acho que é necessária uma declaração Balfour para a Palestina. Igual à que se fez em 1917, em que os britânicos declararam que os judeus tinham direito a um lar nacional, e demorou 31 anos nessa altura até que aconteceu. Acho que chegou o momento de dizer que a comunidade internacional e o mundo árabe e os próprios palestinianos que aceitam estar ao lado de Israel e não em cima de Israel, mais Israel, têm que construir essa opção, demore o que demorar. E é preciso construir um sistema educativo. Há já, em segredo, e sem mais detalhes para não complicar, uma iniciativa árabe internacional para reconstruir o sistema educativo em Gaza e depois na Cisjordânia, o que para mim é essencial, é uma condição sine qua non para que algum dia possa haver paz aqui e quem sabe possa criar-se um Estado palestiniano finalmente ao lado de Israel que viva em paz. Há quem diga que para isso é necessário que Israel e a Palestina entrem na União Europeia. É talvez preciso que Israel entre na NATO, por exemplo, o que talvez dê essa sensação de segurança aos israelitas tão necessária para poder aceitar que haja fronteiras aqui ao lado. Pense que Israel é mais pequeno do que o Alentejo. Israel, aqui muito perto de onde eu vivo, em Telavive, um pouquinho mais ao norte, entre o Mar Mediterrâneo e a Cisjordânia, tem 14 quilómetros de largura. Isso é realmente a barriga estratégica de Israel no seu lugar mais sensível, onde está a metade da população israelita. Os israelitas precisam de segurança, os palestinianos precisam de justiça. E é preciso que esta nova geração de liderança, que eu espero que chegue ao poder muito em breve, nos dois lados, possa começar este processo com o apoio real, não o apoio declarativo, da comunidade internacional e do mundo árabe. Porque países como a Arábia Saudita, os Emirados Árabes Unidos e o Egito, o que querem é estabilizar a região, para uma nova era, que possa desenvolver a economia, a tecnologia, todas as coisas que sonhamos para o século XXI, e não guerra, guerra, guerra. .Elias Sanbar: “A ideia de um Estado palestiniano ao lado do Estado de Israel foi destruída”