"Há uma relação de amor-ódio entre Lukashenko e Putin"

Maria Raquel Freire, coordenadora do Centro de Excelência Jean Monnet na Universidade de Coimbra, faz a distinção entre os regimes da Bielorrússia e Rússia e reconhece que as sanções económicas às elites destes países são insuficientes.
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A Universidade de Coimbra tem desde o ano passado um Centro de Excelência Jean Monnet dedicado a investigar as dinâmicas dos discursos da União Europeia (UE) e dos seus vizinhos a leste, em particular as relações com a Rússia. O centro reúne uma equipa interdisciplinar de 11 pessoas oriundas das faculdades de Economia, Letras e Ciências e Tecnologia e, além da investigação, dedica-se ao ensino, com unidades curriculares de licenciatura e mestrado. E tem ainda atividades viradas para a comunidade, num espaço onde tanto se produzem eventos ligados a questões de segurança digital, desinformação e propaganda como se promove uma história infantil sobre a relação da UE com a sua vizinhança. O centro é coordenado por Maria Raquel Freire, investigadora do Centro de Estudos Sociais e professora de Relações Internacionais na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Especializada em resolução de conflitos, em segurança internacional e no espaço pós-soviético, a autora do livro A Rússia de Putin - Vetores Estruturantes da Política Externa partilha com o DN as suas reflexões.

A UE tem mostrado dificuldades em lidar com atores autoritários, tanto interna como externamente, e as armas de que dispõe são as sanções económicas. Uma estratégia insuficiente, mas para a qual não há alternativas viáveis. "Aquilo que temos visto mais concretamente na Rússia, onde tem estado mais evidenciado, mas também no caso da Bielorrússia, é que as sanções, como têm sido desenhadas, têm revelado claramente limites. Isso é evidente no caso da Bielorrússia, porque estamos a falar de sanções que passam pelo congelamento de bens e impossibilidade da atribuição de vistos para o espaço europeu, direcionadas a indivíduos que fazem parte da elite política. Mas para muitos dos líderes deste espaço político, o impacto real é minimizado porque as relações com a Rússia são eventualmente um pouco mais estáveis, apesar de não serem linearmente simples. No caso da Rússia, torna-se mais evidente o limite das sanções. Apesar de terem implicações em termos económicos, há um desfasamento entre aquilo que seria uma implicação mais assertiva e algumas matérias que ficam fora do conjunto de sanções aprovadas. Quando olhamos para o cenário mais alargado, a Rússia ficar totalmente isolada não é um fator que lhe seja favorável. É interdependente da UE, um vizinho gigante em termos económicos. E depois há o contexto político-diplomático e até moral, na imposição ou renovação de sanções, que tem uma dimensão pejorativa. Isso não deve ser esquecido, porque em termos políticos há um peso importante."

A Bielorrússia de Alexander Lukashenko é uma Rússia de Vladimir Putin em ponto pequeno? "Os sistemas são, apesar de tudo, diferentes. A Bielorrússia manteve-se muito mais fiel ao sistema soviético. A ideia da nomenclatura no poder, a elite mais coesa em torno de um conjunto de princípios a apoiar o presidente Lukashenko, tem contornos bastante diferentes daquilo que é o sistema de governação na Rússia. No Kremlin estamos perante uma estrutura mais diversa do que aparentemente possamos pensar, com uma ala mais conservadora liderada por Vladimir Putin e uma ala um pouco mais liberal, digamos, para simplificar. Há divergências e confronto de visões. Na Rússia temos a elite política mas também a elite económica, os oligarcas, e há alguns acordos tácitos entre estas elites poderosas."

A relação entre Lukashenko e Putin é difícil de compreender, ora parece de amizade ora de rivalidade para não dizer inimizade, mas a realidade é que o bielorrusso depende do seu maior aliado. "Devido à união Rússia-Bielorrússia, por vezes faz-se uma leitura muito simplista, porque os países estão com algum nível de integração. Há aqui uma relação de amor-ódio que se vai desenvolvendo e de facto nem sempre é tão forte como podia aparentar. Há algumas dualidades e dificuldades como a Rússia olha para a Bielorrússia. Lukashenko não quer tornar-se num "súbdito" da Rússia. Antes das eleições houve conversações com a UE sobre relações e projetos em curso, ainda num nível bastante minimalista, mas havia algo a acontecer e era também uma forma de Lukashenko afirmar a sua independência em relação a Moscovo. Mas, por outro lado, a dependência de Moscovo ficou evidente no ano passado e a Rússia aproveitou para aumentar a capacidade de influência. É importante haver lealdade geopolítica para com Minsk, mas não tem necessariamente de ser com Lukashenko no poder. Para a Rússia até pode haver uma mudança no poder, desde que a lealdade não seja posta em questão."

A Geórgia, em 2008, e a Ucrânia, em 2014, perderam partes do território em resultado de intervenções russas. Ambos os países eram candidatos à adesão à Aliança Atlântica. "A NATO é considerada um dos inimigos externos da Rússia. Isto é afirmado nos seus documentos estratégicos. O alargamento da UE e o alargamento da NATO foram aproximando as fronteiras destas organizações da Rússia e isto alimentou a ideia de que a Rússia é excluída dos processos de defesa europeia e recuperou até a narrativa da Guerra Fria da ideia de cerco. As guerras na Geórgia e na Ucrânia apontam para uma política russa mais militarizada, mais assertiva. O espaço pós-soviético é uma área prioritária, apesar dos limites, e no que conseguir a Rússia vai tentar minimizar desenvolvimentos contrários aos seu interesses e aumentar a influência. O que conseguiu com as guerras é um adiamento sem prazo da integração daqueles países na Aliança Atlântica."

Dever-se-á à NATO o facto de Lituânia, Estónia e Letónia manterem-se na esfera ocidental? "Há uma militarização da política externa russa, e isso obviamente cria receios nos países mais próximos. A questão das minorias russas nos países bálticos foi tratada no quadro da OSCE e conseguiu-se através de várias negociações que a reforma legislativa na Estónia acabasse por acautelar as minorias. A questão das diásporas é de extrema importância para a Rússia. Esse argumento surgiu na Geórgia, alegou-se que na Abecásia e na Ossétia do Sul havia minorias russas cujos direitos não estavam a ser salvaguardados. Vimos esta narrativa na Ucrânia, na Crimeia e no Donbass. Até na Síria, entre várias justificações para a intervenção estava a das minorias russas. No Ocidente, o discurso sobre os direitos humanos e as liberdades fundamentais está muito presente. No fundo, é um discurso em espelho com a questão das minorias russas. Vários analistas disseram que a Rússia estava num curso expansionista e que depois da Ucrânia viria a Moldova, a Transnístria e até os bálticos, uma Rússia a tentar recriar o espaço soviético. Sempre fui muito crítica desta leitura. Não me parece que a Rússia reúna as condições políticas e económicas para um projeto dessa envergadura."

A Estónia já foi vítima de ciberataques russos. Nos Estados Unidos, os serviços de informações não têm dúvidas sobre as interferências russas nos processos eleitorais de 2016 e 2020 e do ataque ao software SolarWinds que culminou com uma ação de espionagem que atingiu a administração norte-americana, empresas e possivelmente a NATO. Até que ponto o poder do exército cibernético se equipara ao poder militar tradicional na Rússia? "Li comentários de militares russos em termos do reconhecer o grande poder que a dimensão cibernética representa. O armamento convencional e nuclear é fundamental, mas há um reconhecimento de que o poder da propaganda, das notícias falsas e dos ataques cibernéticos é muito forte, tem uma enorme capacidade desestabilizadora."

Por que razão persiste a mentalidade da Guerra Fria, da divisão entre leste e oeste? Uma "questão fascinante" das relações Ocidente-Rússia. "É um discurso retomado em particular desde a guerra na Ucrânia. Desde 2012, quando Putin regressa à presidência, nota-se um fechamento e uma política mais conservadora, uma lógica de maior diferenciação. Começa-se a assistir ao discurso civilizacional, em que a Rússia se tenta posicionar como um ator único, europeu mas também asiático, e além disso diferente da Europa ao encarnar os valores mais tradicionais do cristianismo. O casamento entre homossexuais é dado como exemplo da decadência moral e de valores. A Rússia vê-se como portadora de uma identidade europeia mais conservadora e mais pura, comparado com o Ocidente. Esta narrativa alimenta a dicotomia do eu e do outro."

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