França na crista do combate à discriminação capilar
"Um preto de cabeleira loira ou um branco de carapinha não é natural. O que é natural e fica bem é cada um usar o cabelo com que nasceu.” A mensagem, criada para vender uma loção e matraqueada na TV no século passado, até se entranhar nas raízes dos cabelos dos portugueses, ganhou uma nova leitura com a aprovação dos deputados franceses de um projeto de lei que combate a discriminação relacionada com o cabelo.
Se o Senado aprovar a proposta, a França tornar-se-á no primeiro país com legislação específica de combate à discriminação dos penteados (ou da sua ausência). Nos Estados Unidos, a reboque de uma iniciativa criada por uma marca de sabonetes e de várias associações, em 2019 a Califórnia aprovou a lei CROWN (Creating a Respectful and Open World for Natural Hair, que pode ser traduzido como “construir um mundo aberto e respeitador para o cabelo natural”). Esta lei garante a proteção contra a discriminação com base em penteados no local de trabalho e na escola pública.
O problema reside em especial na comunidade afro-americana. Segundo uma sondagem realizada no ano passado por parte da campanha CROWN, dois terços das mulheres negras mudam de penteado antes de uma entrevista de emprego -- sendo que 41% optam por alisar o cabelo. Depois da Califórnia, cerca de duas dezenas de estados norte-americanos seguiram o mesmo caminho legislativo; além disso dois estados, Alasca e Arkansas, proíbem apenas a discriminação nas escolas, enquanto o Tennessee legisla só em relação ao local de trabalho.
A proposta foi apresentada pelo deputado Olivier Serva, de Guadalupe, departamento francês nas Caraíbas. O projeto de lei pretende acrescentar à lista de formas de discriminação puníveis com sanções penais as que estão relacionadas com “o corte, a cor, o comprimento ou a textura do cabelo”. O objetivo é impedir que os patrões obriguem os empregados a alisar o cabelo ou a esconder as tranças e rastas, mas também alargou o espectro da discriminação às ruivas, “que são vítimas de muitos preconceitos negativos”, às loiras e aos carecas.
A questão de base é a do racismo e, para a antropóloga social Daphne Bedinade, a omissão no articulado legal é problemática. “Fazer com que se trate apenas de discriminação em relação ao cabelo é mascarar os problemas das pessoas cujo cabelo as torna alvo de discriminação, sobretudo as mulheres negras”, disse ao Le Monde.
O artigo 225-1 do Código Penal francês estabelece uma lista de 25 critérios de discriminação proibidos por lei, incluindo com base na aparência. No entanto, para os apoiantes da proposta de lei, a lei é incompleta. “Se a lei [atual] fosse suficiente, não nos seria recusado emprego por causa [do cabelo], não seríamos alvo de comentários por parte dos colegas e a hospedeira da Air France não teria ido até ao Tribunal da Relação”, afirma a influencer Kenza Bel Kenadil, citada pela France24.
Esta refere-se a uma hospedeira de bordo obrigada a usar uma peruca para esconder as tranças e que, em 2022, após dez anos de processo, conseguiu que a companhia aérea fosse condenada por discriminação, mas com base na discriminação de género, uma vez que os regulamentos da Air France permitiam que as funcionárias usassem tranças.
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