O mapa retalhado dos Estados Unidos com vários tons de azul, vermelho e roxo não consegue mostrar com precisão a intensa fratura que o país vive, no dia seguinte às eleições mais decisivas da sua história. Mesmo antes das urnas abrirem, os analistas já sabiam que aquilo que tem dividido estados, comunidades e até famílias não vai sanar rapidamente. Os EUA enfrentam desafios importantes a nível doméstico e internacional – com destaque para a economia, a polarização, as guerras na Ucrânia e Gaza e o confronto com a China – e não é certo que a próxima administração consiga resolvê-los. Para a cientista política luso-americana Daniela Melo, professora na Universidade de Boston, o risco de violência é grande num momento crítico para uma democracia fragilizada. .“As pessoas estão tão polarizadas, estão tão firmes nas suas convicções que é muito fácil mobilizá-las depois para atos de violência”, disse ao DN a especialista. “A curto prazo esse é o nosso grande desafio.”.Daniela Melo referiu que o presidente cessante Joe Biden tentou fazer algum trabalho de conciliação e foi cuidadoso na linguagem, mas mesmo assim a polarização não diminuiu. Pelo contrário, só piorou nos últimos quatro anos. .“Claramente houve várias tentativas de Biden de tentar conciliar estas visões opostas do país, mas isso não depende apenas da pessoa que tem o bully pulpit”, afirmou a politóloga, referindo uma expressão usada para descrever a força da posição tão proeminente do presidente norte-americano. “Estas bolhas de informação à direita e à esquerda, mas sobretudo à direita, que se organizaram são muito fortes”, frisou. .Com vozes como as de Tucker Carlson e Elon Musk a aumentarem o ruído incendiário, a polarização mantém-se independentemente dos esforços a um nível superior. Ou seja, considera Daniela Melo, “o presidente não controla a mensagem.” .São os novos fazedores de opinião e de uma versão da realidade que influencia as opiniões das suas audiências, contando uma narrativa que favorece apenas o seu candidato: “O próprio presidente já não tem a capacidade que tinha há 50 anos de ir às televisões e conseguir unir o país.”.A economia e o poder da oligarquia norte-americana.Alguns dos principais desafios dos Estados Unidos nos próximos anos são a estabilização da inflação, a aceleração do crescimento da economia e a diminuição do fosso entre a classe mais baixa e os super-ricos, com um desaparecimento progressivo da classe média. Os indicadores económicos atuais têm boas notícias para os consumidores, já que a economia norte-americana está a crescer três vezes mais que a europeia. O Produto Interno Bruto (PIB) cresceu 2,8% no terceiro trimestre do ano, impulsionado pelo aumento do consumo, e a economia adicionou 12 mil empregos em outubro, mantendo o desemprego nos 4,1% apesar de catástrofes naturais (os furacões Helene e Milton) e o impacto de diversas greves. No mês passado, a inflação atingiu o ponto mais baixo dos últimos três anos, 2,1%, praticamente chegando ao nível desejado pela Reserva Federal de 2%. .No entanto, a perceção de muitos eleitores é de que o país está em recessão, algo que não corresponde à realidade, e a persistência de preços elevados diminuiu o poder de compra de muita gente. “A economia será um desafio, manter a inflação baixa”, ressaltou Daniela Melo. .Um dos problemas associados é o poder das grandes corporações, várias das quais têm sido alvo de investigações por comportamentos anti-concorrenciais mas ainda sem legislação efetiva para impedir, por exemplo, subidas exageradas dos preços para aproveitar a onda de inflação. .Há aqui, salientou Daniela Melo, uma ligação entre a riqueza desenfreada e o poder de influenciar políticas. Por exemplo, todas as empresas da big tech, desde a Meta e Microsoft à Apple e Google, têm investido milhões em lobbying para evitar legislação contrária aos seus interesses. Farmacêuticas têm feito o mesmo para poderem manter os preços praticados. Milionários como Elon Musk e Jeff Bezos usaram dinheiro e poder para influenciar o rumo da campanha. .“Estou extremamente preocupada com o poder dos bilionários”, afirmou Daniela Melo. “Os Estados Unidos têm oligarcas”, afirmou, usando uma expressão que é habitualmente usada para descrever milionários russos mas raramente aplicada aos congéneres norte-americanos. .“Desde o Citizens United que temos visto um crescente posicionamento destes bilionários a quererem influenciar não só o processo legislativo para os beneficiar, mas a quererem realmente ter uma palavra na direção do país, tanto na política externa como na política doméstica.”.Citizens United foi uma decisão do Supremo Tribunal, em 2010, que levantou as restrições que pendiam sobre empresas e outros grupos quanto ao envolvimento em eleições. Isso permitiu a doadores abastados e grandes empresas dedicarem fundos virtualmente ilimitados a campanhas desde que não tenham uma coordenação formal com um candidato ou partido. A decisão levou à criação de super comités de ação política (PAC) que permitem aos maiores doadores terem uma influência sem precedentes. .Daniela Melo disse que esta foi a eleição em que as tendências oligárquicas da democracia mais se manifestaram após a decisão Citizens United. .“Chegamos aqui a um ponto de inflexão na democracia americana. E neste ponto de inflexão, é difícil prever o que é que vem a seguir, mas conseguimos ver o que é que veio até agora.” Com o advento da Internet nos anos noventa e a desregulamentação executada pela administração republicana de Ronald Reagan, foram criados monopólios tecnológicos e permitida a concentração de grupos de média nas mãos de alguns empresários. .“Isto está tudo aqui a culminar neste ponto de inflexão em que os donos dessas novas companhias adquiriram tanto poder e tão rápido que não querem ceder nem sequer parte deste poder”, analisou a professora. “Depois têm uma lei absolutamente permissiva que lhes permite influenciar o governo e as campanhas americanas diretamente através dos seus donativos do lobbying e da criação de super PAC.”.Lidar com os efeitos desta concentração de poder económico e social nas mãos de alguns será um desafio de longo prazo, com muita resistência legislativa sem resolução à vista. .“Estamos num momento em que a democracia está a bater com um grupo de indivíduos que têm um poder desproporcional, que controlam monopólios de informação e acesso à informação e que estão a instrumentalizar essas empresas para servirem os seus interesses pessoais, não os interesses do povo americano”, frisou. “Se isto não descreve o poder oligárquico, não sei o que é que descreve.”.A miragem asiática e as guerras intermináveis.No panorama internacional, os Estados Unidos terão de lidar com uma identidade perdida. Joe Biden tentou revigorar o papel do país como líder da aliança transatlântica, um protetor das democracias e dos direitos humanos, mas as prioridades tiveram de ser alteradas pelos conflitos dos últimos quatro anos. .Segundo Daniela Melo, a administração Biden optou por uma certa continuidade em relação à China e contava centrar no grande país asiático a sua atenção na política externa. .“Os Estados Unidos já estavam preocupados com a subida da China, com as suas tentativas de influenciar a ordem Internacional a seu favor, com o papel económico que estava a desenvolver e o poder direto e indireto sobre o Ocidente”, indicou a especialista. “Todas são preocupações que transcendem a direita e a esquerda nos Estados Unidos e que vão continuar na próxima administração.”.Há pelo menos quinze anos que os EUA tentam virar a sua política externa para a Ásia e afastarem-se do Médio Oriente, lembrou a professora, independentemente das diferenças entre administrações. Mas o entendimento de que a China é uma ameaça ao poder e economia dos Estados Unidos não resultou em grandes sucessos na tentativa de contenção, salvo no que diz respeito à invasão da Ucrânia pela Rússia. A China não se alinhou de forma declarada, apesar de ter conseguido ajudar a Rússia indiretamente nos últimos anos. .O problema da agenda de Biden é que, apesar da tentativa de se focar na Ásia, a guerra na Ucrânia primeiro e o conflito no Médio Oriente depois provocaram um impasse do qual ainda não foi possível sair. .“Tem havido muito pouca atenção pública para o que está a passar na China”, disse Daniela Melo. “O presidente entrou com uma agenda e depois a história aconteceu.”.O conflito Israel-Hamas também tirou o pé do acelerador na ajuda à Ucrânia, com a progressiva perda de apoio entre o eleitorado de direita que quer ver os recursos usados nos problemas domésticos. “Há um país que está dividido sobre a questão do apoio à Ucrânia”, disse Daniela Melo, salientando que circula no meio político uma noção de que os Estados Unidos vão afastar-se progressivamente da Europa e da aliança transatlântica no longo prazo. .O argumento é de que a Europa “já não tem o mesmo valor estratégico que teve durante a Guerra Fria” e a partir do momento que os que os Estados Unidos se conseguirem retirar do Médio Oriente e da Ucrânia, a sua atenção vai estar virada para outras partes do mundo. Os Estados Unidos poderão ver o seu próximo grande confronto na Ásia, seja sob administrações à direita ou à esquerda..Mas para Daniela Melo, o maior desafio de todos será interno e terá que ver com o teste de esforço das instituições. “Estamos num período muito crítico da democracia americana”.