Para quem caminha pela State Street, a artéria principal desta comunidade de 44 mil habitantes, a diferença entre os dois lados da rua parece resumir-se apenas a diferentes lojas ou autarquias. No entanto, desde 2022 que esta via tornou-se uma das fronteiras mais politizadas dos Estados Unidos. É que de um lado, no Tennessee, o aborto é um crime; do outro, na Virgínia, permanece um direito protegido. E isto tem consequências práticas bem visíveis.A clínica Bristol Women’s Health, que durante décadas serviu a região a partir do lado sul (Tennessee), viu-se desde logo forçada a uma manobra de sobrevivência após a decisão do Supremo Tribunal de reverter o acórdão Roe v. Wade. Para continuar a operar, teve de mudar-se para o lado norte da cidade. É um facto que percorreu uma distância de menos de um quilómetro para garantir que permanecia dentro da jurisdição da Virgínia, mas o caso, além de insólito, é simbólico.Esta pequena deslocação geográfica simboliza o fenómeno das "clínicas de fronteira", que servem agora como o ponto de acesso mais próximo para milhões de mulheres vindas de estados vizinhos com proibições quase totais, como o Kentucky, a Virgínia Ocidental e o Alabama, que têm de "dar o salto" para se submeterem a um ato médico que antes era legítimo no seu estado de origem.Uma espécie de conflito "whack-a-mole"Apesar da proteção legal oferecida pelo estado da Virgínia, a luta em Bristol está longe de estar resolvida. Barbara Schwartz, cofundadora da SLAAP (State Line Abortion Access Partners), descreve a situação atual como um jogo de "whack-a-mole" -- aquele em que logo que se dá uma marretada num verme logo salta outro de um buraco. Mal uma barreira é ultrapassada, os grupos antiaborto criam outra.Neste mês de dezembro de 2025, a tensão deslocou-se para o mercado imobiliário e para o zoneamento urbano, via disputas de arrendamento. A clínica enfrenta atualmente processos judiciais movidos pelos proprietários do imóvel, que tentam o despejo alegando violações contratuais, num caso que os defensores do acesso ao aborto classificam como perseguição ideológica.São também relatados casos de pressão sobre as autoridades autárquicas, realizados por grupos conservadores locais, de forma a que estes aprovem portarias de zoneamento que dificultem a manutenção ou expansão de infraestruturas de saúde reprodutiva em zonas perto da fronteira.Um símbolo da divisão americanaBristol torna-se assim o reflexo de um país fragmentado, como relata a BBC America. Enquanto no lado do Tennessee as autoridades aplicam leis que podem criminalizar até o auxílio a menores que viajam para fora do estado, no lado da Virgínia, voluntários continuam a escoltar pacientes do parque de estacionamento até à porta da clínica. Zoneamento como arma contra o abortoMas não é apenas entre a Virginia e o Tennessee que este problema se coloca. De Illinois ao Novo México, autarquias em estados onde o procedimento é legal têm movimentos ou órgãos eleitos que recorrem a burocracia e leis centenárias para bloquear a abertura de clínicas.O fenómeno observado em Bristol serviu, de certa forma, como laboratório para uma nova tática a que ativistas pró-liberalização do aborto chamam de a "guerrilha urbanística". Atualmente, diversas cidades localizadas em estados considerados "refúgio" mas cujos órgãos locais eleitos são de maioria ultra-conservadora estão a utilizar o poder municipal para criar obstáculos administrativos que, na prática, impedem a instalação de novas infraestruturas de saúde, mesmo quando a lei estadual as protege.Um dos casos mais emblemáticos desta estratégia ocorre em Danville, no estado do Illinois. Embora o governo estadual tenha das leis mais liberais do Midwest, esta cidade fronteiriça com o Indiana aprovou uma portaria inspirada na Lei Comstock de 1873. Esta legislação federal, há muito caída em desuso, proíbe o envio e receção de materiais relacionados com o aborto por via postal, impossibilitando assim a receção de bens para a atividade da clínica. Ao adotar esta norma a nível municipal, Danville criou um impasse jurídico que bloqueou a abertura de clínicas destinadas a servir mulheres que viajam centenas de quilómetros a partir de estados vizinhos onde o aborto é proibido.No Novo México, a situação assume contornos de um conflito direto de poderes. Cidades como Hobbs e Clovis, situadas a poucos quilómetros da fronteira com o Texas, implementaram requisitos de licenciamento para centros cirúrgicos tão rigorosos que tornam a operação de uma clínica financeiramente inviável. Esta manobra obriga as pacientes a conduzir mais 200 ou 300 quilómetros para o interior do estado para encontrarem o ponto de apoio legal mais próximo. Embora o Supremo Tribunal do Novo México tenha intervindo já este ano para tentar anular estas portarias, o atraso provocado pelos processos judiciais cumpre o objetivo dos grupos antiaborto: criar um "deserto de acesso" através do desgaste financeiro e burocrático.Este tipo de ações transformou o mapa da saúde reprodutiva americana num mosaico de incerteza. Em vez de uma proibição total, o que se observa agora é uma estratégia de atrito constante, onde o zoneamento e as licenças de utilização de solo são usados para empurrar as clínicas para longe das fronteiras mais críticas. Tribunais bloquearam autarquias, mas...A estratégia de utilizar o zoneamento urbano e portarias locais para bloquear o acesso ao aborto sofreram grandes derrotas nos tribunais superiores dos Estados Unidos.Já este mês de dezembro de 2025, o panorama jurídico clarificou-se um pouco: o conceito de "preempção estadual" -- o princípio de que a lei do estado se sobrepõe à lei municipal -- tornou-se o principal escudo contra as táticas de cidades fronteiriças como as que rodeiam Bristol.O caso mais decisivo ocorreu no Novo México. Após cidades como Hobbs e Clovis terem tentado implementar regulamentos de licenciamento impossíveis de cumprir, o Supremo Tribunal estadual emitiu uma decisão histórica. Os juízes determinaram que a Lei de Proteção da Saúde Reprodutiva do estado retira às autarquias qualquer autoridade para legislar sobre a matéria. Na prática, o tribunal considerou que, se um estado decide que um procedimento é legal e fundamental, uma câmara municipal não pode usar o código de edificação para o tornar impossível. Esta decisão levou à reabertura de clínicas que estavam num limbo jurídico a meros cinco quilómetros da fronteira com o Texas.Simultaneamente, em Illinois, o procurador-geral do estado obteve uma vitória crucial contra a cidade de Danville. O tribunal de recurso decidiu que a tentativa da cidade de invocar a Lei Comstock de 1873 para proibir o envio de medicamentos abortivos era "nula e sem efeito", uma vez que entrava em conflito direto com o estatuto de "estado santuário" do Illinois. Os juízes sublinharam que permitir que cada cidade decida que cuidados de saúde são permitidos criaria um "caos administrativo" que prejudicaria o sistema de saúde público como um todo.Mas esta clarificação jurídica não significa, de todo, o fim das hostilidades. Especialistas em direito constitucional notam que, embora o zoneamento direto esteja a ser travado, as autarquias estão a testar novas vias, como a imposição de taxas de segurança pública exorbitantes ou requisitos de estacionamento desproporcionais para clínicas. A batalha mudou de forma, mas a State Street, em Bristol, continua a ser o símbolo de que a distância entre um direito e um crime pode ser apenas a largura de um passeio.