Drones, caixas de madeira, camiões... Como Kiev montou o seu ataque mais ousado à Rússia
“Um resultado alcançado exclusivamente pela Ucrânia. Um ano, seis meses e nove dias desde o início do plano até à sua efetiva execução. A nossa maior operação de longo alcance”. Foi assim que o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky assinalou uma das ações militares mais ousadas de Kiev na sua guerra com a Rússia: uma ofensiva coordenada com drones que atingiu cinco bases aéreas em território russo, incluindo regiões tão distantes quanto a Sibéria, a mais de 4000 quilómetros.
A operação, batizada de “Teia de Aranha” (Spider Web), foi o resultado de 18 meses de planeamento secreto, envolvendo serviços de inteligência, logística camuflada e o uso de tecnologia e inteligência artificial para causar prejuízos milionários à aviação militar russa. Segundo fontes da inteligência ucraniana, foram 41 as aeronaves russas destruídas, incluindo bombardeiros de longo alcance como os Tu-95 e Tu-22M, além de uma aeronave A-50. Estima-se que os danos ultrapassem 7 mil milhões de dólares (cerca de 6,1 mil milhões de euros) - e muitos desses aviões são considerados insubstituíveis.
Moscovo não confirmou nenhuma perda de aeronaves e apenas informou que alguns aviões foram danificados. Mas há provas vídeos verificadas por agências internacionais que mostram aeronaves danificadas pelo menos na base aérea de Olenia, em Múrmansk, e na de Biélaya, em Irkutsk.
A engenharia do ataque: drones escondidos em camiões
Os pormenores sobre a “teia de aranha” montada pelos ucranianos para o ataque estratégico às bases áreas russas vão sendo destapados não só pelos detalhes passados pelos responsáveis militares de Kiev aos media internacionais como também pelos relatos que chegam do outro lado da barricada, em diversos canais russos citados pelos media internacionais.
O ataque de Kiev foi efetuado através de 117 drones FPV (drones de visão na primeira pessoa), adaptados para transportar explosivos, e lançados a partir de camiões civis de mercadorias dentro do território russo. Esses drones terão sido contrabandeados para a Rússia, disfarçados em tetos falsos de caixas de madeira, semelhantes a pequenos barracões de jardim. Uma vez prontas, essas estruturas foram carregadas para camiões e levadas por motoristas russos - aparentemente sem saber o conteúdo da carga.
No momento previamente calculado, um mecanismo ativado por controlo remoto abriu os painéis do teto das estruturas e os drones voaram rumo aos alvos. Segundo vídeos divulgados pela inteligência ucraniana, as aeronaves foram atingidas diretamente nas pistas e hangares.
As bases aéreas visadas foram as de Olenia (província de Múrmansk), Diáguilevo (Riazán), Ivánovo (província homónima), Biélaya (Irkutsk, na Sibéria) e a de Ukrainka, na região de Amur. Esta última, a mais distante de todas — a mais de 8.000 km da Ucrânia —, terá, no entanto, escapado ao ataque porque o camião incendiou antes do lançamento dos drones.
O Ministério da Defesa russo confirmou que os ataques ocorreram em cinco regiões da Rússia, mas afirmou que apenas houve aviões danificados em Múrmansk e Irkutsk, enquanto noutros outros locais os ataques foram repelidos.
Pearl Harbor, Cavalo de Tróia…
O ataque ucraniano mereceu comparações com “Pearl Harbor” – o ataque japonês à base norte-americana no Hawai durante a II Guerra Mundial -, dada a sua imprevisibilidade e impacto simbólico, e tem sido descrito como a maior humilhação russa desde o início do conflito.
O colunista do Washington Post, Max Boot, abraçou a analogia, lembrando que em 1941 “quase ninguém imaginava que os japoneses pudessem atravessar um oceano inteiro para atacar uma 'fortaleza inexpugnável', como os estrategas americanos descreviam a base no Hawai. No entanto, foi exatamente isso que eles fizeram.”
Em pouco mais de uma hora, a aviação japonesa lançada de seis porta-aviões destruiu mais de 180 aeronaves e uma dúzia de navios. Boot observou que o Japão “reescreveu as regras da guerra” naquela época, e que os ucranianos “reescreveram as regras da guerra novamente no domingo (1)”. “O alto comando russo deve ter ficado tão chocado quanto os americanos em 1941”, acrescentou.
O ataque ucraniano surpreendeu pelo uso de técnicas rudimentares, mas altamente eficazes, com vários analistas militares a realçarem o facto de a frota de drones utilizada não custar mais de uns poucos milhares de euros, enquanto os aviões destruídos estão avaliados em mais de 6 mil milhões.
O facto de os drones terem sido escondidos em estruturas de madeira suscitou também a analogia com o histórico Cavalo de Troia, a grande armadilha de madeira construída pelos gregos durante a Guerra de Troia, quando os gregos esconderam soldados dentro do cavalo e, fingindo aceitar a derrota, o entregaram aos troianos como presente.
Na CNN, o almirante aposentado da Marinha dos EUA James Stavridis, que serviu como ex-comandante supremo aliado da NATO, explicou que o alcance do ataque era semelhante ao de um ataque a Los Angeles desde a capital Washington, em costas opostas dos EUA. E acrescentou: "Sou greco-americano e devo admitir que isto é uma espécie de cavalo de Troia. Esses contentores de madeira que eles levaram para outro país e de repente fizeram brotar deles esses guerreiros não humanos para destruir todos aqueles aviões, é realmente um feito militar notável."
Chelíabinsk. Onde tudo começou?
As investigações russas a este ataque concentram-se em Chelíabinsk, nos Urais, de onde partiram os camiões com os contentores.
Na segunda-feira, proprietários e funcionários de um armazém naquela cidade foram detidos depois de internautas terem identificado, a partir de fotos distribuídas por Kiev, aquele local como sendo a origem da operação.
O presidente ucraniano, Zelensky, afirmou, no entanto, que as pessoas que ajudaram a facilitar a operação "foram retiradas do território russo... e agora estão seguras".
Segundo escreve o jornal El Mundo, o canal russo VChK-OGPU informou que a pessoa que alugou o armazém fugiu para o Cazaquistão. No local, as autoridades recolheram amostras que indicaram a presença de compostos químicos explosivos.
Segundo os depoimentos de um motorista, os camiões pertenciam a um homem de nome Artem, presumivelmente cidadão ucraniano, que teria sido contratado por um suposto empresário da região de Múrmansk para transportar “casas de madeira” até a península de Kola.
Durante a viagem, um desconhecido telefonou ao motorista e deu-lhe instruções específicas para parar, num determinado horário, numa gasolineira da Rosneft, próxima do aeródromo militar de Olenia, em Múrmansk. Foi dali que os drones foram lançados, ativados remotamente.
Histórias semelhantes foram contadas pelos outros condutores dos camiões envolvidos. “Foi como se alguém tivesse atiçado uma colmeia”, terá dito um deles, que fazia o transporte até Irkutsk e estacionou perto de um café em Usolye-Sibirskoye, citado ainda pelo El Mundo.
Segundo o The Economist, Kiev conseguiu pilotar drones tão profundamente dentro da Rússia utilizando as próprias redes de telefone móvel russas para transmitir imagens em tempo real até a Ucrânia.
Além disso, a inteligência ucraniana também terá conseguido manipular os altos comandos russos levando-os a concentrar as suas aeronaves em determinadas bases, através de vários ataques de distração prévios a outros aeródromos, levando Moscovo a transferir os aviões para as bases atingidas no domingo.
Russos pedem resposta forte
Segundo uma fonte do governo ucraniano disse à agência Reuters, a Ucrânia não notificou os Estados Unidos com antecedência sobre estes ataques, que ocorreram na véspera de nova ronda de negociações entre as partes, que se realizou em Istambul na segunda-feira, com ambos os lados a não conseguirem ainda chegar a um acordo para cessar-fogo, tendo, no entanto, acordado nova troca de prisioneiros.
Na Rússia, militares e analistas pressionam o Kremlin para uma retaliação proporcional. A analogia com Pearl Harbor leva a que surjam pressões para uma resposta à altura, voltando a especulação sobre se Putin equacionará mesmo o uso de armas nucleares.