As recentes iniciativas diplomáticas por parte dos Estados Unidos lançaram alguma confusão, com o presidente Donald Trump a mencionar a “troca de territórios” e o seu enviado especial a dizer-se e desdizer-se sobre as possíveis intenções russas. Mais certo, tendo em conta o que várias fontes revelaram entretanto sobre o tema, é que, na base de um possível acordo segundo a ótica do Kremlin, está a cedência total dos territórios do leste ucraniano, onde a guerra começou em 2014 e local das mais duras batalhas. Uma exigência sem contrapartidas dos 6600 km2 que as forças ucranianas mantêm colocaria em maus lençóis a sobrevivência política de Volodymyr Zelensky e abriria caminho para uma futura nova invasão, dessa vez com potenciais consequências mais graves para Kiev.A bacia de carvão do Donets, conhecida pela forma abreviada Donbass, que se estende pelas duas regiões (oblasts) mais a leste da Ucrânia, foi palco de muitos momentos dramáticos ao longo da sua relativamente breve história. Ao juntarem-se à greve iniciada nas minas da Sibéria, em julho de 1989, os mineiros começaram por exigir melhores condições salariais e em greves subsequentes as reivindicações passaram pela independência económica da Ucrânia em relação à União Soviética e, já em 1991, pela independência total. O peso deste setor foi tal que levou à demissão (e suicídio) do líder soviético na Ucrânia, Volodymyr Shcherbytsky, e à criação de um ambiente propício à separação de Moscovo e do fim da União Soviética. As minas de carvão no Donbass foram criadas no século XIX pelo Império Russo depois de terem desocupado o território de cossacos de Zaporíjia e de tártaros da Crimeia. Durante a política estalinista de russificação, a região recebeu uma elevada percentagem de russos, a maior parte para trabalhar no setor mineiro que, a par das metalurgias e siderurgias, estabeleceram uma região industrial. Segundo o censo realizado em 1989, 45% da população declarava ter ascendência russa. Mas tal como a população se insurgiu contra Moscovo entre 1989 e 1991, os primeiros anos de independência, com o fim da economia planificada, a privatização das empresas e a consequente tomada destas pelos oligarcas, o ressentimento contra Kiev e a sensação de abandono foram crescendo. .84Por cento da população da região votou a favor da independência da Ucrânia em relação à União Soviética no plebiscito realizado em dezembro de 1991 (no total do país, 92,2%).. Do outro lado da fronteira, o ex-agente do KGB não escondia o seu desencantamento pelo fim da URSS e antes da ciberguerra à Estónia em 2007 e da guerra na Geórgia no ano seguinte, Vladimir Putin já dera sinais de que não iria abrir mão da Ucrânia. Em 2004, o candidato presidencial Viktor Iuschenko é envenenado e o suspeito, então vice-diretor do serviço de espionagem, fugiu para a Rússia. Iuschenko acabaria por vencer na repetição de eleições provocadas pela Revolução Laranja, a onda de indignação resultante da vitória atribuída a Viktor Yanukovich. Este, que fazia parte do chamado clã de Donetsk e havia sido governador da região, foi protagonista de uma primeira tentativa de separatismo, ainda em 2004. Com a participação do enviado de Putin, o autarca de Moscovo Yuri Luzhkov, e de políticos das regiões norte, leste e sul da Ucrânia, defendeu-se no congresso de Severodonetsk a criação da República Autónoma do Sudeste da Ucrânia, mas a ideia acabou por não vingar. A propaganda, em especial nos canais de TV controlados pelo Kremlin, foi fazendo o seu caminho na região russófona e quando, em 2014, na longínqua Kiev, o povo se revoltou contra a traição de Yanukovich (que, pressionado por Putin, não avançou com o acordo de associação com a UE), Donetsk e Lugansk estiveram na na primeira linha, logo após a tomada da Crimeia, do movimento pró-russo. Para Putin, o regresso ao controlo de Moscovo desta região causadora da implosão da URSS é uma vingança, disfarçada sob argumentos descabelados como a prevenção de um genocídio contra os russos. .53 200 km2Área das regiões de Lugansk e Donetsk, o que equivale ao dobro da área do Alentejo. A área histórica de onde provém o nome Donbass, a bacia de carvão do rio Donets, estende-se por 23 300 km2.. Da guerra que eclodiu então até hoje, a Ucrânia, por sua vez, perde muito mais do que território. Perde população (Donetsk era a segunda região mais populosa) e fica amputada da sua região industrial por excelência. Apesar de estarem em declínio, contavam-se 115 minas de carvão em funcionamento em 2022. Mais importante, tem depósitos da maioria dos minerais críticos nos seus solos, o equivalente a 70% do total existente no país, somada a região vizinha de Dnipropetrovsk. E tem dois portos estratégicos em Mariupol e Berdiansk. Mas há mais: “O controlo do Donbass dá à Rússia uma enorme vantagem económica e militar”, disse a investigadora Elina Beketova ao The Independent. “Não se trata apenas de recursos, mas de uma linha fortificada que a Ucrânia construiu ao longo de anos. Se cair, a Rússia poderá avançar mais a ocidente sem obstáculos.” .“Não podemos fazer isso. Todos se esquecem [de que] os nossos territórios estão ilegalmente ocupados. Para os russos, o Donbass é um trampolim para uma nova ofensiva futura. Se nos retirarmos do Donbass, voluntariamente ou sob pressão, abriremos a porta para uma terceira guerra.”Volodymyr Zelensky. O norte-americano Instituto para o Estudo da Guerra também alerta para esse cenário. Ao dizer que Kiev investiu nos últimos anos na fortificação de uma linha de 50 quilómetros entre Kostyantynivka e Sloviansk passando por Kramatorsk, ceder este território faria avançar o exército russo 82 quilómetros. E este ficaria em condições ideais para atacar as regiões de Kharkiv e Dnipropetrovsk, ainda que as forças ucranianas conseguissem construir “urgentemente imensas fortificações defensivas”, a topografia é “desadequada para servir como uma linha de defesa”. .200 000Ucranianos que continuam a viver na região sob controlo de Kiev. Estima-se que 3 milhões estejam na zona sob controlo russo. Em 2014 viviam em Donetsk e Lugansk mais de 6,5 milhões de pessoas.. “Não vamos sair do Donbass. Não podemos fazer isso”, disse Zelensky antes da reunião entre Putin e Trump. Na quinta-feira, voltou ao tema e rejeitou a ideia de que os russos possam tomar o Donbass pela força até ao fim do ano. Os russos, disse, “precisariam de mais quatro anos”. Apesar de a opinião pública estar agora em maioria favorável a negociações o quanto antes (69% contra 22% em 2022, sondagem Gallup) com os russos, a ideia de ceder uma região pela qual tantos ucranianos morreram na sua defesa, agora como na II Guerra, é difícil de sustentar. .14 000Mortos durante a guerra iniciada em 2014 entre os combatentes pró-russos (com o apoio de Moscovo) e o exército ucraniano no Donbass.. “Se Zelensky cedesse essa terras, isso não só representaria uma violação da nossa Constituição, como poderia também apresentar características de traição”, disse à BBC o deputado Volodymyr Ariev. "Qualquer retirada unilateral das tropas ucranianas de qualquer região seria um grave erro que suscitaria críticas severas na Ucrânia. Além disso, isso não poria fim à guerra, Putin apresentaria novos ultimatos: primeiro ceder Kherson e Zaporijia, como reivindica desde 2024, e depois ceder Kharkiv e Odessa. E ele não pararia por aí", considera o analista Volodymyr Fesenko ao Le Monde. .Drones lançados do aeroporto. O aeroporto da cidade de Donetsk, renovado para o campeonato europeu de futebol de 2012, e destruído pelas forças pró-russas em 2014, ano em que tomaram a infraestrutura, foi recuperado nos últimos meses. Segundo o fundador da equipa de recolha de informações de fontes abertas Kiberboroshno, Vadym Hlusko, a pista serve agora como base de lançamento de drones do tipo Shahed. “Estão a militarizar tudo o que conseguem”, disse uma ativista ucraniana de Donetsk, ao site Kyiv Independent. ”O exército ocupa oficinas vazias, monta quartéis, e os guardas não deixam ninguém aproximar-se. Não sabemos sequer o que está lá dentro, mas todos vêem colunas militares a entrar e a sair durante a noite.”.Drones ucranianos incendeiam terminal de combustíveis e danificam central nuclear russa