Em dezembro de 2022, a grega Eva Kaili, então vice-presidente do Parlamento Europeu, foi detida depois de uma viagem ao Qatar e de, na sua residência, se encontrarem sacos de dinheiro (150 mil euros). Três anos depois, as suspeitas de corrupção voltam a agitar Bruxelas, desta vez tendo como protagonistas dois italianos: uma antiga vice-presidente da Comissão Europeia, Federica Mogherini, e um atual diretor-geral do executivo europeu, Stefano Sannino. Um terceiro elemento detido, o ítalo-belga Cesare Zegretti, tem funções diretivas no Colégio da Europa, instituição na qual a antiga chefe da diplomacia europeia é reitora. Ao contrário do Qatargate (e do caso que nasceu com essa investigação, o Marrocosgate), não há suspeitas de entidades externas à União Europeia corromperem dirigentes. Em causa estará o concurso público que levou à atribuição da Academia Diplomática da União Europeia ao Colégio da Europa para os anos de 2021 e 2022.Segundo um comunicado da Procuradoria Europeia, o referido programa de formação de jovens diplomatas está no centro da investigação. “A investigação centra-se em determinar se o Colégio da Europa e/ou os seus representantes foram informados antecipadamente sobre os critérios de seleção do procedimento de concurso e se tinham motivos suficientes para acreditar que lhes seria adjudicada a execução do projeto”, refere a instituição com sede no Luxemburgo. Acrescenta existirem “fortes suspeitas de que, durante o processo de concurso para o programa, o artigo 169.º do Regulamento Financeiro relativo à concorrência leal tenha sido violado e que informações confidenciais relacionadas com o concurso em curso tenham sido partilhadas com um dos candidatos participantes no concurso”. O concurso foi adjudicado pelo Serviço Europeu para a Ação Externa (SEAE) ao Colégio da Europa. A italiana Federica Mogherini foi a alta representante da União para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança entre 2014 e 2019, ou seja, chefiou o SEAE, tendo depois assumido a reitoria do Colégio da Europa, também na Bélgica, mas em Bruges, em 2020. Mais tarde, em 2022, tornou-se diretora da própria Academia Diplomática. Na terça-feira de manhã, a polícia federal da Flandres Ocidental realizou buscas em vários edifícios do SEAE, do Colégio da Europa, e nas residências dos suspeitos, a pedido da Procuradoria Europeia, e devidamente aprovado pelo juiz local, num trabalho conjunto com o Organismo Europeu de Luta Antifraude (OLAF). As autoridades vão apurar se foram cometidos crimes de fraude de aquisição, corrupção, conflito de interesses e violação do segredo profissional. Segundo uma fonte citada pela AFP, o valor do contrato em causa é de 650 mil euros. Já o Corriere Della Sera diz que o programa envolveu um financiamento de 990 mil euros. Os três suspeitos podem ficar detidos por um período de 48 horas até serem presentes a um magistrado.Em comunicado, o Colégio da Europa informou que irá “cooperar plenamente com as autoridades, no interesse da transparência e do respeito pelo processo de investigação”. Por outro lado, o instituto superior fundado em 1949 disse que vai “tomar todas as medidas necessárias para garantir a continuidade das suas atividades”, o que inclui não tecer mais comentários, “a fim de não prejudicar a investigação em curso”. Quem são os detidosA romana Federica Mogherini, de 52 anos, licenciou-se em Ciência Política. Iniciou-se como assistente do presidente da Câmara de Roma Walter Veltroni, tendo depois trabalhado como funcionária do Partido Democrata. Em 2008, foi eleita deputada. Seis anos depois, tornou-se ministra dos Negócios Estrangeiros pela mão de Matteo Renzi, e pouco depois acabaria por se mudar para Bruxelas, sucedendo no cargo de chefe da diplomacia à britânica Catherine Ashton. Durante o seu mandato, a diplomacia europeia alcançou o vulgarmente chamado acordo nuclear com o Irão, a par dos EUA, China, Rússia, Alemanha, França e Reino Unido. Em 2020, a mudança de Bruxelas para Bruges foi feita em controvérsia. Segundo notícias vindas a público então, a sua nomeação, decidida pelo conselho de administração presidida pelo ex-presidente do Conselho Europeu Herman Van Rompuy, esteve longe de pacífica. O site Politico noticiou então que Mogherini foi acusada de favoritismo, com professores e quadros da UE a argumentarem que não estava qualificada para o cargo, além de não reunir os critérios para se candidatar e, além disso, que o fizera fora do prazo.Stefano Sannino, de 65 anos, é um experiente diplomata da UE, atual diretor-geral para o Médio Oriente, Norte de África e Golfo. O napolitano foi embaixador de Itália em Espanha e, em Bruxelas, desempenhou vários cargos, entre os quais de secretário-geral do SEAE. Deu aulas quer no Colégio da Europa, quer na Academia Diplomática.Outros escândalos em BruxelasNão são de hoje os casos de fraude e corrupção em Bruxelas. O que teve maiores consequências implicou a queda do Executivo europeu inteiro. Aconteceu em março de 1999, na sequência de um relatório independente apontar para a fraude e o nepotismo da comissão presidida pelo luxemburguês Jacques Santer. Debaixo de fogo estavam os socialistas Manuel Marín e Édith Cresson, embora apenas esta tenha sido mais tarde julgada e condenada por ter criado um emprego fictício ao seu dentista. Foi também devido a um esquema de empregos fictícios, mas no Parlamento Europeu, que a líder de facto da Reagrupamento Nacional Marine Le Pen foi condenada pela Justiça francesa em março. O tribunal concluiu que o desvio de dinheiros se cifra nos três milhões de euros.Outros eurodeputados mostraram grande disponibilidade para legislar à medida de quem lhes pagasse para tal. Em 2011, jornalistas do Sunday Times passaram-se por lobistas e ofereceram dinheiro a 60 legisladores. Três deles terão aceitado - o austríaco Ernst Strasser, o romeno Adrian Severin e o esloveno Zoran Thaler - e acabaram condenados pela Justiça dos respetivos países. Há duas semanas, o britânico Nathan Gill foi condenado a dez anos de prisão por ter recebido dinheiro, enquanto eurodeputado do Partido do Brexit (hoje Reform), de Nigel Farage. Já os casos Qatargate e Marrocosgate, que levaram à detenção da então vice-presidente do Parlamento Eva Kaili e do ex-eurodeputado Antonio Panzeri, por suspeitas de corrupção em troca de um tratamento favorável daqueles países, continuam em investigação.