Há algo maravilhosamente mágico no ar”, disse Michelle Obama, naquele que foi considerado um dos melhores discursos da Convenção Nacional Democrata (DNC, na sigla inglesa). “É o poder contagioso da esperança, a antecipação, a energia, a emoção de uma vez mais estar à beira de um dia mais luminoso.”.Galvanizando a audiência, arrancando cânticos e explosões entusiastas, Michelle Obama captou o sentimento de déjà vu dos democratas: este encantamento é similar ao que o partido e o país viveram em 2008 com Barack Obama, o primeiro homem negro a chegar à Casa Branca. A ascensão inesperada de Kamala Harris pode agora torná-la a primeira mulher afro-indiana-americana a ocupar a Sala Oval, e foi essa possibilidade que ressuscitou a esperança na Convenção Democrata. .“Houve muitos bons discursos, mas o de Michelle Obama foi eletrificante para a base democrata”, disse ao DN a cientista política luso-americana Daniela Melo. “É uma pessoa extremamente carismática, soube alinhar-se e ser uma cheerleader efetiva de Kamala Harris”, continuou. “Tanto ela como Barack fizeram discursos que criaram um fio de ligação entre o que foi o movimento Obama e o começar de um potencial Movimento Kamala.”.Esse movimento, explicou, não é apenas de esperança, mas também da classe trabalhadora, de pessoas que não vêm das elites tradicionais americanas. “Essa história, que é tão forte no mito americano, da pessoa que vem do nada e que se transforma num líder para toda a sociedade. Acho que os Obama conseguiram fazer isso de uma maneira poderosa.”.Durante os quatro dias da convenção, que, apesar dos protestos pró-palestinianos lá fora, decorreu sem distúrbios, os democratas proporcionaram aos milhares de delegados uma parada de estrelas do partido e da cultura pop. Houve discursos dos Obama, de Hillary e Bill Clinton, de Oprah Winfrey e Eva Longoria. Houve horário nobre para Jill e Joe Biden - uma espécie de discurso do adeus - e atuações de Pink, Stevie Wonder, John Legend, Patti LaBelle e Common. Houve a família de Harris e do candidato a vice-presidente Tim Walz, houve uma mistura de velhos líderes com a nova geração de democratas. Desde Bernie Sanders e Alexandria Ocasio-Cortez a Elizabeth Warren, Maxwell Frost, Mike Kelly, Raphael Warnock, Josh Shapiro, Gretchen Whitmer. A combinação mostra, segundo Daniela Melo, uma mudança profunda no partido durante a última década..“Tivemos dois ou três ciclos de grande tensão entre o centro e a ala progressista e agora vemos a ala progressista a estar normalizada”, explicou a analista. “Vemos realmente uma trégua entre o centro e os progressistas, que é também uma trégua entre os líderes mais velhos do partido e os líderes mais novos.”.A professora da Universidade de Boston disse que esta união se distingue daquela que foi mostrada pelo Partido Republicano na sua convenção de julho. “O que tivemos foi basicamente um afogamento de todas as vozes anti-Trump”, salientou, lembrando que não apareceram na convenção ex-presidentes, ex-líderes do partido ou ex-membros da Administração..“É uma união que é feita pela exclusão da velha guarda”, caracterizou. “Há uma união que é diferente do lado democrata, há um novo consenso que foi bastante visível esta semana.”.Embora reconheça que é normal os partidos não darem palco a vozes dissidentes nas convenções - tanto que os delegados não-comprometidos ficaram de fora da DNC - a analista aponta para a ausência de legado do lado conservador. “Esta exclusão é gritante no Partido Republicano, quando se vê de um lado todos os presidentes a aparecerem e a virem apoiar Kamala e do outro não há absolutamente nada disso.”.O sentimento é forte entre os apoiantes, sendo que tanto um lado como o outro parece revigorado. “Ambas as bases estão muito entusiasmadas, com discursos de união, de força, de muita energia ao redor do candidato, mas a maneira como isso foi conseguido é radicalmente diferente.”.Kamala Harris, a presidente da alegria e da liberdade.Foi Bill Clinton, que desta vez pareceu mais velho e cansado que Joe Biden, quem cunhou a expressão chamando a Kamala Harris a “presidente da alegria.” A ideia de uma candidata alegre, com sorriso fácil e gargalhada contagiante foi repetida ao longo da convenção por vários oradores. Oprah Winfrey projetou a voz e cantarolou o nome da democrata, pedindo aos eleitores que “escolham a alegria”. Barack Obama declarou que “sim, ela pode”, ecoando o seu antigo slogan de campanha. Hillary Clinton equiparou Harris ao caminho da liberdade, enquanto a audiência gritava “Lock him up” (prendam-no), virando os ataques dos apoiantes de Trump contra ele..“Harris vai levar-nos a novas alturas”, declarou a ex-presidente da Câmara dos Representantes, Nancy Pelosi. “Kamala Harris não pode ser comprada, nem pode ser manietada”, garantiu a senadora do Massachusetts Elizabeth Warren. “Escolhamos a doce promessa de amanhã em vez do amargo regresso ao passado”, pediu Oprah..No seu discurso de aceitação, que foi largamente elogiado como “forte” e “notável” por analistas e comentadores, Harris enumerou as suas prioridades. Quer aprovar um corte de impostos para a classe média, que vai beneficiar cerca de 100 milhões de norte-americanos. Quer baixar ainda mais os custos dos medicamentos, depois de a Administração ter limitado os custos da insulina e dado capacidade de negociação de preços à Medicare. Quer facilitar o acesso a capital para pequenas empresas e empresários individuais. Quer resolver a crise da habitação acessível. Promete assinar o pacote para defender a fronteira que foi anulado a pedido de Trump. E, numa das propostas que mais atrai o eleitorado à esquerda, codificar na lei o direito ao aborto..“Vejo uma América onde nos agarramos à crença destemida que construiu a nossa nação, que inspirou o mundo: de que aqui, neste país tudo é possível”, declarou Harris, pintando uma visão otimista e esperançosa do futuro. “Nada está fora do nosso alcance”, garantiu..A democrata contrastou esta ideia com o que os oponentes Trump e J.D. Vance fazem, acusando-os de denegrirem a América perante o mundo. “Nunca deixem que vos digam quem vocês são”, disse Harris, citando um conselho que a sua mãe lhe deu. “Mostrem-lhes quem são.”.E quem Harris é neste momento é a candidata que, em apenas um mês, colocou os democratas à frente nas sondagens. Os candidatos costumam obter um pequeno impulso após as convenções e o cientista político Thomas Holyoke acredita que isso vai acontecer aqui, considerando que este discurso foi bom para reapresentar Harris ao eleitorado. .“Ela não é tão conhecida quanto Donald Trump e fê-lo de forma eficaz”, disse ao DN. “Pode mesmo ter apelado a alguns eleitores indecisos”, considerou. Não apenas o discurso de Harris, mas toda a convenção. .“Apresentou-a como uma cara nova e com algumas ideias novas”, disse o professor. “E fizeram um bom trabalho a retratar Trump como parte do passado sombrio e caótico a que talvez as pessoas não queiram voltar mas que se desvaneceu um pouco na memória pública.”.Holyoke, que leciona na Universidade Estadual da Califórnia em Fresno, salientou a forma organizada e sem distúrbios como decorreu a convenção, lembrando que há apenas um mês o candidato - e os discursos - eram outros. .“Enviaram uma mensagem de inclusão, encerrando com bandeiras americanas e balões vermelhos, brancos e azuis, e Harris dizendo que seria uma presidente para todos os americanos”, frisou Holyoke. “Enfatizaram a inclusão e o patriotismo, que era o que precisavam de fazer.”.O analista notou que a equipa de Harris conseguiu montar uma campanha bastante profissional em pouco tempo e que a convenção decorreu de forma tranquila e com tremenda energia..Lá fora, o movimento de manifestantes pró-Palestina reuniu menos gente que o previsto e não causou alvoroço, apesar de se ter feito ouvir. Harris endereçou a guerra Israel-Hamas no seu discurso mostrando-se de forma inequívoca ao lado de Israel, mas também criticando a destruição em Gaza e salientando a necessidade imediata de um cessar-fogo. .“Provavelmente não foi o suficiente para agradar aos manifestantes, mas ela abordou o assunto, era algo que tinha de fazer.” O movimento pró-Palestina é muito forte no Michigan e há o risco de que os democratas percam o estado por causa disso, avisou Holyoke. Poderá Harris compensar atraindo os indecisos noutros estados? Daniela Melo acredita que sim, apontando que a mudança na corrida beneficiou sobretudo a democrata junto dos indecisos que eram também “double haters”, ou seja, que não gostavam de Trump nem de Biden. .“Tenho dúvidas sobre se haverá ainda muitas pessoas por convencer, sobretudo nos estados-chave”, afirmou. .A próxima incógnita é o que farão os eleitores que estavam com Robert F. Kennedy Jr., que acaba de suspender a campanha. “Ninguém sabe exatamente se esse pessoal vai para a direita, vai para a esquerda ou simplesmente fica em casa”, disse Melo. .A decisão estará, acredita, na participação eleitoral. “O que eu vejo é um entendimento de que o que realmente irá decidir a eleição é a afluência às urnas”, disse. “O mais importante aqui é manter o entusiasmo.” Harris terá de conquistar o máximo do voto jovem, do voto afro-americano e do voto feminino. “Ou seja, áreas que estavam relativamente desmobilizadas com Biden, mas que mostram muito mais energia agora.” A convenção pode ter sido o tiro de disparo que faltava. Agora, é pé no acelerador até ao fim.