"O continente sul-americano volta a ser assombrado pela presença militar de uma potência extrarregional”, disse Lula da Silva, durante a recente cimeira do Mercosul, a propósito da pressão exercida pelos EUA na Venezuela. Ainda as frases do presidente brasileiro ecoavam nas cataratas de Nova Iguaçu, cenário do encontro, e já o homólogo argentino Javier Milei dizia que “a ditadura atroz e desumana do narcoterrorista Nicolás Maduro estende uma sombra escura sobre a nossa região”, por isso “a Argentina saúda a pressão de Donald Trump para libertar o povo venezuelano”.Que Lula, chefe de Estado do Brasil desde 2022 e um dos ícones da esquerda mundial, e Milei, eleito no ano seguinte e autodeclarado anarcocapitalista e libertário, não concordavam em quase nada já se sabia. Mas nunca as diferenças entre os líderes ficaram tão expostas como na cimeira de Nova Iguaçu, região que, simbolicamente, divide os dois maiores países da América do Sul. O afastamento, inclusive pessoal, foi relatado em reportagens tanto do La Nación, jornal argentino, como do UOL, portal brasileiro. “Os dois deram um aperto de mão sem sorrisos e a uma distância física considerável”, escreveu o periódico de Buenos Aires. “Quando Lula convidou os chefes de Estado a olharem para trás e contemplarem a beleza das cataratas, Milei foi o único a ficar de frente”, contou a publicação de São Paulo. Às vésperas do encontro do bloco composto, além de Brasil e Argentina, por Uruguai, Paraguai e, agora, também pela Bolívia, em processo de adesão, mas não pela Venezuela, suspensa devido à “rutura da ordem democrática”, uma fotografia partilhada nas redes sociais pelo líder argentino indignou os brasileiros. Nela, a América do Sul aparece dividida em dois, com imagens de uma enorme favela na região onde está o Brasil e demais países governados à esquerda e de um ambiente desenvolvido e futurista na posição geográfica da Argentina e demais estados com executivos de direita. Já em julho, na cimeira de Buenos Aires em que a Argentina passou a presidência rotativa do Mercosul para o Brasil, Milei e Lula haviam marcado território. O brasileiro disse que o bloco “protege” os seus integrantes e o argentino criticou “as restrições impostas aos membros para assinarem acordos fora do bloco”, o que comparou a “uma cortina de ferro”“A barreira que levantamos para nos proteger comercialmente num momento que considerávamos valioso acabou por nos excluir do comércio e da competição globais e por castigar as nossas populações com bens piores e serviços a preços piores”, declarou o líder argentino. “Toda a América do Sul se tornou uma área de livre comércio baseada em regras claras e equilibradas. Estar no Mercosul protege-nos. A nossa tarifa externa comum blinda-nos de guerras comerciais alheias”, contestou Lula. Na ocasião, não só não houve encontro bilateral, um hábito entre os vizinhos, como Lula fez questão de visitar Cristina Kirchner, a cumprir seis anos de prisão domiciliar por gestão fraudulenta, antiga presidente e tradicional aliada do líder brasileiro. Meses antes, Lula não foi à posse de Milei que, por sua vez, convidou Jair Bolsonaro e sentou-o ao lado dos outros chefes de Estado. Ainda candidato, Milei chamou Lula de “comunista nervoso” e de “ladrão” e acusou-o, sem provas, de financiar a campanha de Sergio Massa, o candidato rival nas presidenciais da Argentina. Dias antes da segunda volta, Lula disse que a Casa Rosada devia ser ocupada por “um presidente que goste de democracia”.A primeira vez que os dois se cruzaram em público foi na reunião do G20, no Rio de Janeiro, no final de 2024. Na ocasião, Lula, tradicionalmente caloroso nos cumprimentos aos homólogos, dedicou um frio cumprimento, sem sorrisos para a foto, a Milei. Essa não foi, entretanto, a primeira visita do argentino ao Brasil já depois de eleito: essa honra coube à Conferência de Ação Política Conservadora, um fórum da direita brasileira, organizado pelo deputado Eduardo Bolsonaro, em Balneário Camboriú. Em Nova Iguaçu, numa altura em que Mercosul e União Europeia parecem mais próximos do que nunca de assinar um acordo comercial esperado há mais de 20 anos, os dois continuaram a dizer uma coisa e o seu contrário sobre a tensão entre EUA e Venezuela. “Os limites do direito internacional estão a ser testados”, disse Lula. “Uma intervenção armada na Venezuela seria uma catástrofe humanitária para o hemisfério e um precedente perigoso para o mundo”. “O tempo de ter uma aproximação tímida nesta matéria esgotou-se num país que continua a padecer de crise política, humanitária e social devastadoras”, defendeu, por sua vez, Milei. ”Esse perigo e essa vergonha não podem continuar a existir no continente ou acabarão arrastando-nos a todos”.Lula, do Partido dos Trabalhadores, tem 80 anos, está no terceiro mandato como presidente do Brasil e já anunciou que vai candidatar-se ao quarto, em 2026. Milei, 55, é presidente desde 2023 e acaba de sair vitorioso, através do partido La Libertad Avanza, das legislativas de outubro na Argentina..Filho de Bolsonaro quer ver filho de Lula investigado por corrupção