Uma tentativa de impor a lei marcial, o impeachment de um presidente e a nomeação de três interinos no espaço de seis meses. Uma crise política que deixou um vazio de poder na quarta maior economia da Ásia, onde a previsão de crescimento em 2025 foi cortada de 1,5% para 0,8%. Cerca de 44 milhões de sul-coreanos vão esta segunda-feira às urnas eleger o novo chefe de Estado, esperando virar a página a esta crise política e económica. Apesar de haver seis candidatos (nenhuma mulher, pela primeira vez desde 2007), a corrida deve ser entre o liberal Lee Jae-myung e o conservador Kim Moon-soo. E o primeiro, que muitos veem como populista, é o favorito, segundo as sondagens: algumas dão-lhe uma vantagem de dois dígitos, mas outras apontam para uma luta mais renhida, com a diferença a reduzir-se nos últimos dias. A eleição decorre a uma só volta, com o mais votado a ser declarado vencedor e a tomar posse de imediato para um mandato de cinco anos. As eleições surgem depois da tentativa falhada do presidente Yoon Suk Yeol de impor a lei marcial e da consequente decisão da Assembleia Nacional de o destituir. Uma decisão confirmada depois pelo Tribunal Constitucional. O ex-presidente responde na justiça por traição e o país está dividido entre os que o apoiavam e os que exigiam a sua saída. A votação decorre entre as 6h00 e as 20h00 locais de terça-feira (das 22h00 desta segunda-feira às 12h00 de terça-feira em Lisboa). Mas cada vez mais eleitores votam antecipadamente e já depositaram a sua escolha na quinta e sexta-feira. O próprio Lee já o fez, apelando ao voto “para ultrapassar a crise atual” e voltar a pôr a Coreia do Sul no caminho da “recuperação e crescimento”.Há 44,4 milhões de eleitores, com as mulheres a representar 50,5% do eleitorado. Um terço dos que podem votar têm mais de 60 anos, enquanto só 28% têm menos de 20. A baixa taxa de natalidade é um dos problemas com que o novo presidente terá que lidar. Mas não é o único. Em cima da secretária do novo chefe de Estado estará a necessidade de conciliar a relação com o maior parceiro comercial, a China, e o principal aliado em matéria de defesa, os EUA. Isto numa altura em que há um novo inquilino na Casa Branca, o imprevisível Donald Trump. O presidente ameaça, por exemplo, retirar pelo menos quatro mil dos 28 mil militares norte-americanos que estão estacionados na Coreia do Sul - alegando que Seul não paga o suficiente por esse apoio. Se o fizer, arrisca deixar o país mais desprotegido face às ameaças bélicas do vizinho do Norte. Como aconteceu com outros aliados, Trump também não poupou a Coreia do Sul à sua guerra comercial - impôs 25% de taxa recíproca e outros 25% para produtos como o aço, o alumínio e os automóveis (tudo exportações importantes). Os dois países estão a negociar uma solução, esperando chegar a acordo até 8 de julho. Mas as eleições podem alterar o calendário, não sendo também claro se a eventual eleição de um liberal, sucedendo aos conservadores agora no poder, vai mudar alguma coisa. Kim insiste que ele é o melhor candidato para lidar com Trump.Do outro lado da moeda está a China e essa é uma relação que a Coreia do Sul também não pode descurar. Apesar de ser o principal parceiro comercial (19,5% das exportações sul-coreanas em 2024, frente a 18,8% dos EUA), existe tensão entre os dois países. Não só pela presença das tropas norte-americanas e o apoio de Pequim à Coreia do Norte, mas também devido a questões territoriais no Mar Amarelo - os chineses estão a construir estruturas de aço numa área em disputa e há receio da parte dos sul-coreanos das consequências que isso pode ter.No que diz respeito à Coreia do Norte, a relação também pode mudar. Lee defende uma postura de maior abertura ao diálogo, tendo sido crítico da política de força defendida por Yoon - que acusa de ter aumentado a tensão entre os dois vizinhos, prejudicando a economia sul-coreana e fazendo crescer as preocupações dos investidores estrangeiros. Já Kim quer manter a política do ex-presidente, apostando numa “dissuasão preventiva” e adquirir “ferramentas de retaliação suficientes”, como mísseis balísticos.PerfisLee Jae-myung: À terceira será de vez para o antigo governador da província de Gyeonggi (2018 a 2021) e líder do Partido Democrata (2022 a 2025)? O liberal, de 61 anos, já concorreu duas vezes: em 2017 ficou-se pelas primárias do partido e em 2022 só perdeu para Yoon Suk Yeol (e por apenas 0,7 pontos percentuais). É o favorito à vitória, apesar de alegações passadas de abuso de poder e investigações por corrupção e de falsas declarações durante a campanha de 2022. A sua história de superação começa na juventude, quando deixou a escola para trabalhar numa fábrica e ajudar a família. Após sofrer uma lesão incapacitante no cotovelo, ganhou uma bolsa para estudar Direito e tornou-se advogado. Deputado desde 2022, foi vítima de uma tentativa de assassinato em janeiro de 2024, quando um homem o esfaqueou no pescoço. Em dezembro, liderou os esforços dos deputados para travar a lei marcial de Yoon.Kim Moon-soo: O candidato do conservador Partido do Poder Popular (PPP), com fama de ser um rebelde da direita, foi um ativista dos direitos dos trabalhadores na juventude. Agora, aos 73 anos, vai a votos como um centrista. Estudava na Universidade Nacional de Seul quando foi expulso. Após ter estado preso dois anos por participar nos protestos pró-democracia (chegou a ser torturado), entrou na política e foi eleito deputado em 1996. Ex-governador de Gyeonggi (2006 a 2014), foi nomeado ministro do Trabalho por Yoon, no ano passado. Foi um dos críticos da destituição do presidente. A sua candidatura não está isenta de problemas: o PPP tentou lançar na corrida o ex-chefe de governo Han Duck-soo (que se demitiu da presidência interina). Outros: Há ainda mais quatro candidatos. O do Partido da Reforma é o deputado Lee Jun-seok e o do Partido Trabalhista Democrático aposta no seu líder, Kwon Young-guk. Há também dois independentes: o ex-primeiro-ministro (2015-2017) e presidente interino (2016-2017) Hwang Kyo-ahn; e o empresário Song Jin-ho.Cronologia de uma crise política3 de dezembro de 2024: O presidente conservador Yoon Suk Yeol declara a lei marcial às 22h29 locais, alegando que a Assembleia Nacional era um “antro de criminosos” que estava a paralisar o governo e falando da presença de “forças anti-Estado” e da Coreia do Norte. O parlamento é controlado pela oposição. Foi a primeira vez desde o fim da ditadura militar, em 1987, que a lei marcial foi declarada.4 de dezembro: Apesar de os militares terem cercado a Assembleia Nacional, cerca de 190 deputados (incluindo 18 do partido de Yoon) votam pela 1h00 da manhã para levantar a lei marcial. As tropas recuam e às 4h30 a lei é formalmente levantada após uma reunião do governo - durou apenas cerca de seis horas.7 de dezembro: Yoon pede desculpas e diz que não fugirá à responsabilidade legal ou política de ter declarado a lei marcial. Sobrevive a uma primeira tentativa de impeachment.8 de dezembro: Procuradores acusam Yoon por suspeita de traição.14 de dezembro: Após Yoon ter rejeitado acusações de “rebelião” e prometer “lutar até ao fim”, a Assembleia Nacional destitui o presidente por 204 votos contra 85 (além de três abstenções e oito votos inválidos). O primeiro-ministro, Han Duck-soo, assume o poder de forma interina, já que o impeachment tem que ser confirmado pelo Tribunal Constitucional.27 de dezembro: A Assembleia Nacional destitui também Han, após ele ter bloqueado a nomeação de três juízes para o Tribunal Constitucional, que tinham sido aprovados pelos deputados. O ministro da Economia e Finanças Choi Sang-mok assume a presidência interina.31 de dezembro: Ministério Público emite um mandato para a captura de Yoon.15 de janeiro de 2025: O ex-presidente é finalmente detido para interrogatório, depois de a polícia invadir o complexo presidencial que estava rodeado há dias pelos seus apoiantes. Estes ainda invadem o tribunal que decide mantê-lo preso.26 de janeiro: Os procuradores acusam Yoon de tentativa de rebelião, descrevendo a sua tomada de poder como uma tentativa ilegal de assumir o poder legislativo e deter os opositores.7 de março: O tribunal ordena a libertação de Yoon, no meio de dúvidas sobre se os investigadores tinham a autoridade para o deter.24 de março: O Tribunal Constitucional rejeita a moção que levou ao impeachment de Han, que retoma o cargo de presidente interino e primeiro-ministro.4 de abril: O Tribunal Constitucional confirma o impeachment de Yoon, obrigando a novas eleições para escolher o sucessor no prazo de 60 dias8 de abril: O governo anuncia que a ida às urnas será a 3 de junho.2 de maio: O vice-primeiro-ministro e titular da pasta da Educação, Lee Ju-ho, assume a presidência interina após a demissão de Han para lançar a candidatura presidencial (não se confirmou). Choi, que se previa voltasse a substitui-lo, demitiu-se na véspera, antes de ser sujeito a um voto de impeachment. .Presidente da Coreia do Sul foi destituído. O que se segue?