Uma bela mesquita branca, a chamada Hazrat Sultan, fica mesmo ao lado do Palácio da Independência, onde o Cazaquistão organizou em meados de setembro o VIII Congresso dos Líderes das Religiões Mundiais e Tradicionais. Mas não é sequer a maior de Astana, a capital mais setentrional de um país de maioria muçulmana. Essa distinção cabe à Grande Mesquita de Astana, que, com as suas cúpulas azuis, é conhecida como uma das dez maiores do mundo, e mostra como este enorme país assume sem complexos a sua herança islâmica, sem deixar por isso de ser um Estado laico, onde a par dos 70% que se dizem muçulmanos, há uma fortíssima minoria cristã-ortodoxa, sobretudo de origem russa, mas também católicos, protestantes, budistas e até judeus, daí haver uma sinagoga em Astana.Não esquecer que esta antiga república soviética, já por si de povoamento variado, incluindo russos chegados no tempo dos czares, recebeu muitos povos desterrados por ordens de Estaline, desde alemães do Volga a coreanos do extremo-oriente russo. Tudo gente que com o tempo fez destas estepes a sua pátria e integra hoje o mosaico étnico do Cazaquistão, com mais de uma centena de etnias, a maior delas os cazaques, um povo túrquico que entrou em contacto com o islão no século VIII, quando os árabes conquistaram a Pérsia e chegaram aos confins da Ásia Central, e se manteve até hoje fiel a uma versão moderada e dialogante da sua fé. Tão dialogante que com toda a naturalidade o presidente Kassym-Jomart Tokayev abriu a sessão plenária rodeado pelo patriarca de Moscovo, Cirilo I, pelo secretário-geral da Liga Muçulmana Mundial e presidente da Organização dos Académicos Muçulmanos, xeque Mohammed Al-issa, também pelo vice-reitor da Universidade de Al Azhar, Mohammad Al-Duwaini, e ainda pelo cardeal George Jacob Koovakad, recém-nomeado pelo papa Leão XIV como prefeito do dicastério para o diálogo interreligioso. . Se na sétima edição, em 2022, o papa Francisco esteve presente, no que foi a segunda visita de um sumo pontífice ao Cazaquistão depois da de João Paulo II em 2001, desta vez Leão XIV, que ainda não realizou nenhuma viagem desde que assumiu o trono de São Pedro, fez questão de enviar uma mensagem: “Estou confiante de que os trabalhos deste Congresso nos inspirarão a trabalhar sem descanso para a harmonia, criando uma sinergia para a paz - uma sinergia que é desarmada e desarmante, humilde e perseverante, procurando sempre a caridade e aproximando-se de quem sofre”.Nono maior país do mundo, também o maior dos países sem acesso direto aos oceanos, o Cazaquistão afirmou-se desde a independência em 1991 defensor de uma diplomacia multivectorial, que contrariasse o facto de a geografia o ter colocado entre os gigantes Rússia e China. Definida por Nursultan Nazarbayev, o pai da independência e primeiro presidente, e prosseguida por Tokayev, que ambiciona levar o país para um novo patamar de desenvolvimento e de relevância internacional, essa diplomacia multivectorial permitiu laços fortes com a Europa Ocidental e os Estados Unidos. Visto como uma média potência, capaz de construir pontes, o Cazaquistão tem também uma abordagem de mediador na questão religiosa, razão de ser deste Congresso das Religiões. E a força da sua influência externa nesta matéria resulta em grande parte da própria capacidade de gerir os equilíbrios internos em matéria de religiosidade. Contrariar a inevitabilidade do choque de civilizações, a polémica tese do americano Samuel Huntington, é prioridade, e não por acaso o primeiro Congresso foi em 2003, dois anos depois da visita de João Paulo II logo a seguir aos atentados do 11 de Setembro.“O século XXI é materialista. Não se trata apenas das dimensões jurídica, geopolítica, económica e financeira, mas se realmente queremos entender a complexidade do mundo, precisamos incorporar os elementos espiritual e ético. Portanto, ninguém se deve opor a que uma sociedade laica, um governo laico, com o objetivo de proporcionar espaço e compreensão, se interesse pelas contribuições de diferentes crenças e religiões”, comenta Miguel Ángel Moratinos, alto representante das Nações Unidas para a Aliança das Civilizações.“A coexistência religiosa aqui no Cazaquistão funciona bem. Tudo se resume às pessoas que tomam decisões com base num axioma simples: respeito mútuo e aceitação. Se todos se respeitarem, às vezes haverá uma maioria muçulmana, noutros países uma maioria cristã, noutros casos uma maioria judaica. Mas é preciso respeitar os outros. O incompreensível é que vivamos em espaços excludentes, conflituosos e opostos”, acrescenta o antigo ministro dos Negócios Estrangeiros de Espanha, numa rápida conversa com o DN, num intervalo dos trabalhos em Astana. Sobre o facto de que representantes judeus, muçulmanos e cristãos, e outros, estejam em Astana juntos a dialogar, Moratinos não hesita em dizer que “é a capacidade do Cazaquistão de atrair a todos. E acredito que seja um atributo essencial do presidente Tokayev e do Cazaquistão como povo, como sociedade”..Também a participar no Congresso está o diretor do Centro de Oxford para os Estudos Islâmicos, Farhan Ahmad Nizami, que questionado sobre a especificidade do islão cazaque, dada a origem túrquica do povo, responde: “Não creio que existam diferentes tipos de islão. Existem diferentes tipos de cultura islâmica. E é preciso fazer uma distinção entre elas. O Cazaquistão é um país muito grande. Tem uma ligação histórica muito forte com o mundo islâmico. Hoje, falamos sobre a grande contribuição da Grande Horda para o renascimento do conhecimento islâmico. É bom que tenha mencionado esses povos turcos. No início, lutaram contra o islão. Num segundo momento, são membros do Islão, e membros muito fortes. Há, pois, um islão turco diferente, um islão árabe diferente, um islão sul-asiático diferente, depende da história de cada país. Penso que é o contexto cultural e histórico que faz a diferença. O Islão é o mesmo, mas manifesta-se de formas diferentes. O Cazaquistão é um bom exemplo disso”.Também presente em Astana está o católicos da Cilícia, Aram I, figura de topo da Igreja Apostólica Arménia no Líbano. Com base na sua experiência de pertencer a um país muito dividido étnica e religiosamente (e que deverá, ainda este ano, ser o primeiro destino de viagem de Leão XIV), fez alertas muito importantes em várias entrevistas, incluindo ao DN: “Etnias e nacionalidades por vezes chocam. E essa realidade gera extremismo e violência em diferentes formas e expressões. Este é um problema comum e, como tal, precisamos abordar as causas profundas desses problemas. E acredito que o diálogo inter-religioso nos fornece a plataforma e o contexto para lidar com essa questão do que se chama extremismo e violência. Aliados de forma realista ao senso de responsabilidade, não podemos aceitar o extremismo e a violência, onde quer que estejam. Porque é contrário à dignidade humana. Devemos trabalhar juntos, especialmente como religiões, para eliminar o problema do extremismo da vida em sociedade. Somos diferentes em muitos aspectos, mas não podemos e não devemos impor os nossos valores e tradições uns aos outros. Temos que nos aceitar como somos. Temos que nos respeitar uns aos outros. Precisamos aprofundar a nossa compreensão mútua. Aliás, esse é o propósito do diálogo inter-religioso. E estes encontros de diálogo certamente nos ajudarão a aprofundar e ampliar o alcance da nossa compreensão mútua. Precisamos refletir juntos, agir juntos e enfrentar os problemas da sociedade juntos. Neste mundo globalizado, não podemos dizer que este problema é seu. Não, o seu problema é meu, o meu problema é seu, e vice-versa. Porque, como eu disse, vivemos juntos. E esse sentido de união deve dizer-nos, deve lembrar-nos, que temos de nos respeitar uns aos outros. É a primeira vez que participo neste Congresso e realmente aprecio esta iniciativa do Cazaquistão de reunir religiões para dialogar sobre as questões comuns que enfrentamos em diferentes sociedades. Como eu disse, veja bem, vivemos num mundo globalizado. Fazemos parte de uma sociedade única. Seja no Cazaquistão, no Líbano ou nos Estados Unidos, veja bem, as sociedades estão inter-relacionadas. As questões estão interligadas. Portanto, precisamos desse diálogo para nos entendermos”. . Quem visita Astana, e outras grandes cidades como Almaty, a antiga capital (onde se destaca a Catedral da Ascensão, ortodoxa), vê uma sociedade moderna, com hábitos de certo modo semelhantes aos do Ocidente. Os inúmeros centros comerciais, com lojas da Adidas e cafés Starbucks, estão repletos de jovens, e são certamente mais populares dos que as mesquitas. Os cazaques em geral respeitam o jejum do Ramadão, mas só uma minoria segue estritamente regras como as cinco orações diárias. Há mesmo quem não veja conflito entre o islão e o tengrismo, a religião original dos povos da estepe túrquica e dos mongóis, sendo que a versão cazaque do islão foi muito influenciada pela tradição nómada. Algumas formas de islão importadas são contrariadas pelas autoridades, o que já valeu ao país críticas em relatórios sobre liberdade de religião, como o do Departamento de Estado americano. E uma recente lei a banir o rosto coberto em espaços públicos é vista como uma forma de desincentivar a burqa ou o niqab, que não fazem parte do vestuário tradicional das mulheres cazaques. O hijab, ou lenço a cobrir o cabelo, é aceite, mesmo que pouco visto na capital. Outros países da Ásia Central de maioria muçulmana também adotaram leis contra códigos de vestuário alheios à tradição nacional, no âmbito de medidas para combater a radicalização inspirada de fora. . Numa anterior reportagem em 2021 em Astana, tive oportunidade de conversar com o Arystanbek Mukhamediuly, naquela época diretor do Museu Nacional do Cazaquistão, em Astana, que ofereceu um enquadramento da religiosidade no país, sendo que os turcos referidos neste caso são os povos túrquicos em geral: "A história da propagação do Islão nas estepes do Cazaquistão está enraizada nas profundezas da história. Os árabes que conquistaram a Ásia Central, começam gradualmente a movimentar-se para as estepes do Cazaquistão no início do século VIII. A batalha de Talas entre árabes e chineses no rio Talas em 751 tornou-se um acontecimento importante na história do povo cazaque. A batalha de Talas entrou para a história como um fator decisivo na islamização da Ásia Central. A adoração do Kok-Tengri pelos turcos como o único Criador da existência é o princípio da visão de mundo do povo turco medieval - era próximo do monoteísmo islâmico e não contradiz os seus costumes e tradições. A adoção do Islão pelo povo turco influenciou a formação de uma cultura turca muçulmana especial. A doutrina islâmica foi facilmente adaptada às tradições e costumes nacionais do povo cazaque. Formou-se uma espécie de síntese do Islão com elementos do tengrismo na vida pública e privada. Portanto, pode-se dizer que a peculiaridade da direção hanafita do ramo sunita do islamismo está em harmonia mental com os costumes da população local e a combinação das antigas tradições pagãs e da adoração dos ancestrais na prática do culto". Na cidade de Turkistan, mil quilómetros a sul de Astana, está um dos mais emblemáticos monumentos do Cazaquistão, o Mausoléu de Khoja Ahmed Yasawi, um poeta e místico sufi que viveu no século XII. Mandado construir por Tamerlão, tem o mesmo tipo de cúpula azul que se pode admirar em Samarcanda, no Uzbequistão, e apesar de nunca ter sido concluído, é património mundial da Unesco e celebrado pelos cazaques com um símbolo da sua ligação plurissecular ao islão, o que não impede o país de seguir o laicismo decidido por Nazarbayev e mantido por Tokayev, que, sendo um antigo diplomata, arranjou forma nesta como noutras edições de dar voz no Congresso ao maior número de participantes, fossem de que religião fossem, reafirmando Astana, e o Cazaquistão, como um espaço propício ao diálogo de todos com todos, numa versão ecuménica da célebre diplomacia multivectorial. “Estou confiante de que os líderes religiosos farão todo o possível para evitar que o mundo caia no abismo do caos, lembrando muitos políticos do bom senso, da boa vontade e da responsabilidade moral”, disse Tokayev no seu discurso. . "O Cazaquistão acredita que a diplomacia espiritual pode ser um instrumento eficaz, pois tem um enorme potencial. Cerca de 80% da população mundial identifica-se com uma organização religiosa", afirmou Maulen Ashimbayev, presidente do Senado cazaque e chefe do secretariado organizador do VIII Congresso dos Líderes das Religiões Mundiais e Tradicionais.Numa mensagem vídeo enviada ao Congresso, o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, saudou as figuras políticas e religiosas reunidas em Astana e disse que o diálogo é a via: “As Nações Unidas foram fundadas com a convicção de que o diálogo conduz à paz. Hoje, esta verdade é mais importante do que nunca. Sobretudo com o aumento dos conflitos, desigualdades, crise climática e divisões geopolíticas. Precisamos de construir pontes no nosso mundo fragmentado. É exatamente isso que estamos a fazer".Em declarações ao DN em vésperas do início do Congresso, Aida Balayeva, ministra da Cultura cazaque, tinha já relembrado as duas visitas papais ao Cazaquistão como sinal de reconhecimento da importância do diálogo religioso: “As visitas do Papa João Paulo II em 2001 e do papa Francisco em 2022 representaram o reconhecimento da importância do Congresso de Líderes das Religiões Mundiais e Tradicionais, além de se tornarem símbolos de respeito ao catolicismo e confirmação da abertura do Cazaquistão ao diálogo interreligioso. De particular importância foi a Santa Missa celebrada pelo papa Francisco em Astana, que reuniu milhares de fiéis não só do Cazaquistão, mas também de outros países”.Há três anos, Francisco, que rezou na tal missa relembrada pela ministra para milhares de pessoas em Astana - onde os católicos são uma pequena minoria, disse ao DN o arcebispo Tomasz Peta, “mas com novos fiéis” - sintetizou o que é objetivo destes Congressos, e aquilo que pretende ser o país organizador, saído há 34 anos de uma dura experiência soviética de ateísmo oficial: "Existem quase 150 grupos étnicos e mais de 80 línguas no país. São povos com diferentes histórias, tradições culturais e religiosas, que juntos formam uma sinfonia incrível e fazem do Cazaquistão um laboratório único, multiétnico, multicultural e multiconfessional, apontando para a sua vocação especial: ser um país de encontro". Com uma população de 20 milhões, o Cazaquistão, herdeiro direto do canato fundado por Zhanibek e Kerey no século XV, é cerca de 30 vezes maior do que Portugal, e apesar de ser um país situado no coração da Ásia Central, a sua pequena parte europeia, ou seja a região a ocidente do rio Ural, é maior do que o território português. Realmente, um país com vocação de encontros, até entre continentes. E isso define a sua identidade..Do patriarca de Moscovo ao imã da mesquita de Al-Azhar, líderes religiosos mundiais dialogam em Astana