Se não houver surpresas, a nova equipa da Comissão Europeia, liderada de novo por Ursula von der Leyen, inicia funções no dia 1 de dezembro. Para trás ficam meses de negociações, ruturas, compromissos, e algum dramatismo à mistura. Na reta final, o processo de audição dos vice-presidentes e comissários designados foi salpicado pela lama - não a que encheu os povoados em redor de Valência após a tempestade extrema de 29 de outubro, mas a política, a ponto de ameaçar a composição do colégio de comissários. A composição da futura equipa liderada pela democrata-cristã alemã é reflexo, em primeiro lugar, da tendência que se verifica um pouco por toda a Europa e espelhada no resultado das eleições europeias de 7 de junho, nas quais a extrema-direita e a direita ganharam peso à custa da esquerda (verdes, socialistas e sociais-democratas) e do centro. Este resultado põe em causa o consenso existente até agora entre os conservadores do Partido Popular Europeu (PPE), os centristas do Renew e os socialistas (S&D). Esse “cordão sanitário” foi quebrado em setembro com a aprovação de um texto que reconhecia o candidato da oposição venezuelana, Edmundo Urrutia, como o legítimo presidente - uma iniciativa que juntou o PPE aos eurocéticos (Conservadores e Reformistas Europeus, ECR) liderados pelo partido da primeira-ministra Giogia Meloni, Irmãos de Itália, e ainda os Patriotas pela Europa, grupo político que junta partidos de extrema-direita, como os de Marine Le Pen, Viktor Orbán ou Santiago Abascal. “Antes, o Renew podia ter uma maioria à esquerda, uma maioria à direita, mantendo-se entre partidos muito democráticos. Hoje, dada a viragem eleitoral que se verificou, é o PPE que está mais ou menos neste papel de pivô, aproximando-se dos partidos democráticos à sua esquerda e tendo a possibilidade, e é isso que nos preocupa, de por vezes se aproximar dos partidos mais extremistas à sua direita”, comentou o eurodeputado liberal belga Benoit Cassart à televisão pública do seu país. A sua compatriota ecologista Saskia Bricmont nota que a agenda da extrema-direita faz agora parte da ordem do dia. “Se olharmos para as ordens de trabalhos das sessões plenárias desde a reabertura, verificamos que foram debatidas questões relacionadas com a migração, o reforço das políticas, a segurança das fronteiras, a externalização da política de migração, etc.”.Teresa Ribera. EPA/Mariscal.Não falta quem aponte o dedo ao líder do grupo do Partido Popular Europeu, Manfred Weber, pela viragem à direita. Além disso, o alemão de 52 anos, membro da CSU, o partido bávaro irmão da CDU de Ursula von der Leyen, alimentou a operação de passa-culpas do Partido Popular (PP) espanhol, ao bloquear o nome de Teresa Ribera, a ministra do Ambiente espanhola proposta para a vice-presidência da Transição Limpa, Justa e Competitiva. O partido de Alberto Núñez Feijóo acusou Ribera de ser a responsável direta pelas consequências da falta de aviso atempado às populações do fenómeno meteorológico extremo que atingiu Valência e que causou mais de 200 mortos, dezenas de desaparecidos e milhares de milhões de prejuízos. Exigia a sua comparência no parlamento espanhol e que, caso fosse responsabilizada pela má gestão do dossiê do temporal, teria de se demitir do cargo europeu. Ao responder no Congresso dos Deputados, Ribera foi brindada pelos populares com acusações de “fraude política sem precedentes na história” e de que os serviços hidrográficos, sob sua tutela, sofreram um “apagão informativo” no dia 29 de outubro. A autonomia de que gozam os governos regionais tornam, no caso, o presidente da Comunidade Valenciana, Carlos Mazón (PP), o responsável pela gestão das emergências. .Ajuste de contas.“As disputas entre partidos nacionais não devem influenciar, atrasar ou bloquear a nomeação da Comissão”, desabafou o eurodeputado alemão dos Verdes Daniel Freund. Que Feijóo tenha tentado derrubar Ribera e dessa forma fragilizar o governo de coligação de Pedro Sánchez não surpreende. Mas o que motivou o alemão Weber? “Está a saldar algumas dívidas pendentes. Esteve muito em causa durante algum tempo e agora está a tornar visível o seu poder”, disse ao El País uma fonte comunitária. .O jornal espanhol nota que esta jogada foi vista em Bruxelas como uma vingança contra von der Leyen. Weber candidatou-se à presidência da Comissão Europeia em 2019, nomeado pelo PPE através do processo previsto pelos tratados de Spitzenkandidat (candidato principal). Mas o seu nome acabou por ser trocado pelo de Ursula von der Leyen, uma jogada de bastidores com a mão da chanceler alemã Angela Merkel e do presidente francês Emmanuel Macron..Outros destacam que o bloqueio a Ribera foi uma manobra que tinha como efeito prático que liberais e socialistas levantassem as suas dúvidas a outros dois candidatos à equipa da Comissão: o italiano Raffaele Fito, atual ministro dos Assuntos Europeus, das Políticas de Coesão e do Sul; e Olivér Várhelyi, o atual comissário para o Alargamento. Além destes nomes, outros quatro potenciais comissários ou vice-presidentes estavam com a votação bloqueada por arrasto. .Olivér Várhelyi. (Lukasz Kobus/ Comissão Europeia).Ao fim de oito dias, os três principais grupos políticos europeus acabaram por chegar a acordo - e assinaram uma “plataforma de cooperação”. Retiraram competências ao húngaro Várhelyi (supervisão dos direitos reprodutivos e sexuais, além da capacidade de resposta no domínio da saúde) e levantaram os obstáculos para que, na quarta-feira, o Parlamento Europeu, aprove ou reprove a equipa. A delegação do PP - a segunda maior no PPE - anunciou que iria votar contra Ribera. Os sociais-democratas alemães e a delegação francesa no grupo S&D poderão votar contra Fitto. Mas basta uma maioria simples no Parlamento Europeu e o ECR, agora sob a batuta de Meloni, deverá aprovar a equipa, tal como já o fez nas audiências aos candidatos, tornando-se cada vez mais uma peça a ter em conta. .Raffaele Fitto. (Alain ROLLAND / PARLAMENTO EUROPEU).Para trás fica um longo processo de negociações encabeçado por Ursula von der Leyen. Ficou marcado pelo falhanço em obter uma equipa em paridade de género, tendo a Eslovénia e a Roménia trocado de candidato para ajudar a que a quota feminina não fosse tão baixa. Também fez correr muita tinta a saída intempestiva do comissário francês Thierry Breton, que não se furtou de criticar a presidente da Comissão, quer pelo facto de estar a criar uma equipa sem contrapesos, quer por poder vir a beneficiar a Alemanha em detrimento dos outros países. Em especial a França, claro. “Como a Alemanha não está a ir bem [em termos económicos], temos de ter cuidado para que todas as políticas europeias não sejam desviadas em seu benefício”, afirmou em entrevista ao Le Monde.