Autor de séries de comédia britânicas, Graham Linehan
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Comediante detido no Reino Unido por "piadas" sobre mulheres transgénero. Liberdade de expressão em discussão

Argumentista revelou que cinco policias armados o detiveram devido a três publicações que fez no X. "Queremos que a polícia se concentre em policiar as ruas e não os tweets", reagiu governo britânico.
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O autor de séries de comédia britânicas, Graham Linehan, de 57 anos, anunciou ter sido detido pela polícia britânica no aeroporto de Heathrow na segunda-feira, 1 de setembro, por ter feito três publicações na rede social X sobre mulheres transgénero.

Linehan, argumentista de Father Ted e The IT Crowd (Os Informáticos), afirmou que "cinco policias armados" o detiveram quando desceu do avião que o tinha trazido do Arizona, nos EUA.

"Escoltaram-me até uma área reservada e informaram que eu estava preso por três publicações no X", anunciou. "Num país onde pedófilos escapam da prisão, onde crimes com faca estão fora de controlo, o estado mobilizou cinco policiais armados para prender um argumentista de comédia por essas três publicações (e não, eu juro, não estou a inventar", relatou o comediante, na primeira pessoa, na plataforma online The Free Press.

O argumentista explicou que, durante o interrogatório policial, teve uma subida da pressão arterial, tendo sido levado para hospital e mantido sob observação, antes de ser libertado sob fiança. "Fui preso em Heathrow, lançado numa cela, levado de urgência para o hospital porque a minha pressão arterial disparou e, em seguida, silenciado online - tudo por ter publicado nas redes sociais", resumiu Linehan.

Uma detenção que têm gerado críticas numa polémica em torno da liberdade de expressão online, com o governo a admitir revisão da legislação sobre esta questão.

De acordo com a imprensa britânica, a Polícia Metropolitana confirmou, sem referir o nome de Linehan, que deteve um homem com cerca de 50 anos no referido aeroporto por suspeita de incitar à violência no âmbito de publicações nas redes sociais.

Em causa estarão duas publicações que Graham Linehan fez em abril no X, antigo Twitter, numa das quais defendia que as mulheres transgénero deviam ser agredidas se a polícia não conseguisse impedir que usassem instalações só para mulheres.

Os comentários do argumentista em abril surgiram pouco depois de o Supremo Tribunal do Reino Unido ter decidido que a definição de mulher na lei da igualdade é baseada no "sexo biológico”, excluindo assim as mulheres transgénero. A decisão, declarou, no entanto, o tribunal, não retira proteção às pessoas transexuais. Estão protegidas "contra a discriminação" com base na "mudança de género”, sublinhou-se.

Na sua defesa, o argumentista esclareceu, durante o interrogatório policial, o que escreveu no X. "Expliquei que a publicação sobre dar um soco num homem transgénero num espaço exclusivo para mulheres era uma observação séria feita com uma piada. Homens que entram em espaços femininos são abusadores e precisam ser confrontados sempre", referiu o comediante.

Depois de ter sido detido e de ter ficado em observação no hospital, o argumentista acabou por sair em liberdade sob fiança, mas já com a promessa de novo interrogatório policial, estando proibido de publicar na referida rede social, segundo informou o próprio.

"Ofereceram-me fiança, com uma condição: não posso ir ao X. É isso. Sem ameaças, sem discursos sobre a gravidade dos meus crimes - apenas uma ordem judicial para me calar enquanto estiver no Reino Unido e a exigência de que eu compareça a outro interrogatório policial em outubro", explicou.

Governo quer que "polícia se concentre em policiar as ruas e não os tweets". Oposição não poupa críticas

Confrontado com a detenção do argumentista por publicações nas redes sociais, o primeiro-ministro Keir Starmer admitiu: "devemos garantir que a polícia se concentre nas questões mais graves."

"Isso inclui lidar com questões como comportamento antissocial, crimes com facas e violência, disse o chefe do governo britânico, de acordo com a BBC. "Temos uma longa história de liberdade de expressão neste país. Tenho muito orgulho disso e sempre a defenderei", assegurou Starmer.

Questionado sobre o caso do argumentista, o ministro da Saúde começou por esclarecer que as decisões operacionais da polícia são "independentes" da política. Ainda assim, Wes Streeting afirmou que o executivo, liderado por Keir Starmer, prefere que a polícia esteja focada em combater o crime nas ruas britânicas.

"Como o primeiro-ministro e o ministro do Interior deixaram claro, queremos que a polícia se concentre em policiar as ruas e não os tweets", disse Streeting ao programa Today da BBC Radio 4. “É muito fácil para as pessoas criticarem a polícia, mas o que sempre nos lembramos, como governo que apoia a polícia para nos manter seguros, é que a polícia está lá para fazer cumprir as leis que nós, como parlamento, legislamos”, considerou.

O membro do governo britânico levantou, assim, a possibilidade de se rever a legislação nesta matéria. "Portanto, se ao longo dos anos, com boas intenções, o parlamento impôs cada vez mais expectativas à polícia e diluiu o foco e as prioridades do público, isso é obviamente algo que precisamos de analisar", disse o ministro, citado pelo The Guardian.

As vozes críticas a esta detenção fizeram ouvir na oposição. A líder do Partido Conservador, Kemi Badenoch, por exemplo, teceu duras críticas à política de Starmer no que se refere à segurança.

"Mandar cinco agentes prenderem um homem por um tweet não é policiamento, é política. Sob o Partido Trabalhista, vemos rotineiramente roubos, crimes com facas e agressões sem solução, enquanto recursos são desperdiçados em policiamento do pensamento", acusou Badenock.

Claire Coutinho, também do Partido Conservador, disse que os britânicos costumavam ser conhecido pelo "sentido de humor". "Agora, a polícia está a prender pessoas por fazerem piadas", lamentou. "Vive numa sociedade? Ocasionalmente, vai sentir-se ofendido. É assim que funciona", escreveu Coutinho no X.

Na mesma rede social, o conservador Robert Jenrick não poupou críticas às prioridades das forças de segurança, classificando o caso que envolveu o comediante de "ridículo" e "um completo desperdício do tempo" dos agentes da autoridade.

"Precisamos desesperadamente acabar com este absurdo e ir atrás dos verdadeiros criminosos", exigiu.

A autora da saga Harry Potter não hesita: "isto é totalitarismo". J.K. Rowling, que também já foi criticada pela sua posição sobre mulheres transgénero, fala numa situação "totalmente deplorável", enquanto o dono da rede social X, Elon Musk, partilhou uma publicação na qual se lamenta o "estado policial" a que o Reino Unido chegou.

Mas há também quem esteja ao lado da atuação da polícia. O líder do Green Party, Zack Polanski, referiu que as publicações do argumentista são "totalmente inaceitáveis". Nesse sentido, considerou, em declarações à BBC, a detenção "proporcional".

"Reino Unido tornou-se um país hostil à liberdade de expressão", diz argumentista

Na sequência deste caso, Shami Chakrabarti, membro do Partido Trabalhista defendeu que "o código de ordem pública e as infrações relacionadas com discursos, em particular, precisam de uma revisão abrangente", uma vez que, considerou, as infrações são "muito amplas". Uma posição em linha com a do ministro da Saúde.

"Mas incitar à violência deve ser sempre uma infração criminal", sublinhou Chakrabarti.

Ouvido pelos media britânicos, o antigo responsável pelo Ministério Público, explicou que a polícia usa várias leis, como a Lei da Ordem Pública, para processar pessoas acusadas de infringir a lei devido a declarações proferidas. Max Hill também afirmou, no entanto, que as pessoas podem ser processadas por incitar a violência e que se "não houver esse mecanismo" receia que o "caos se instale".

Mas para o argumentista a situação de que foi alvo é muito clara. "Fui preso num aeroporto como um terrorista, trancado numa cela como um criminoso, levado ao hospital porque o stress quase me matou e proibido de falar online - tudo porque fiz piadas no X", lamentou Graham Linehan, cuja detenção voltou a abrir a discussão sobre a liberdade de expressão.

Perante o que lhe aconteceu no aeroporto de Heathrow, o argumentista nascido na Irlanda não tem dúvidas: o "Reino Unido tornou-se um país hostil à liberdade de expressão, hostil às mulheres (...)".

Polícia Metropolitana defende agentes e pede ao governo que "mude" ou "esclareça" legislação

O chefe da Polícia Metropolitana veio, entretanto, acrescentar a sua posição à discussão instalada com a detenção do comediante, pedindo ao governo que "mude ou esclareça" a legislação.

Em comunicado, citado pela BBC, Mark Rowley defendeu os agentes da polícia envolvidos e reconheceu "a preocupação causada", tendo em conta "as diferentes perspectivas sobre o equilíbrio entre a liberdade de expressão e os riscos de incitação à violência no mundo real".

Referindo que os agentes da polícia "tinham motivos razoáveis para acreditar que tinha sido cometido um crime", o chefe da Polícia Metropolitana afirmou: "não acredito que devamos policiar debates tóxicos sobre guerras culturais".

Caso a legislação não seja alterada ou clarificada, a polícia vai ter de tomar decisões semelhantes no futuro, disse

"Como forma imediata de proteger os nossos agentes da situação em que nos encontramos hoje, iremos implementar um processo de triagem mais rigoroso para garantir que apenas os casos mais graves sejam levados adiante no futuro - aqueles em que há um risco claro de danos ou desordem", declarou o responsável pela Polícia Metropolitana.

De acordo com a imprensa britânica, Linehan vai apresentar-se esta quinta-feira, 4 de setembro, a tribunal devido a um outro caso, no qual é acusado de assediar uma mulher transgénero e danificar o seu telemóvel, o que o argumentista nega.

É ainda referido que se espera que o líder do Reform UK, Nigel Farage, comente o caso e critique a "censura" no Reino Unido, esta quarta-feira, durante uma intervenção sobre liberdade de expressão na Câmara dos Representantes dos EUA.

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