Jeanette Jara, do Partido Comunista, ficou à frente na primeira volta das eleições presidenciais do Chile, de dia 16, mas o candidato de extrema-direita José Antonio Kast, segundo mais votado, é o favorito à vitória final porque deve recolher a maioria dos votos dos terceiro, quarto e quinto classificados, todos conservadores. Com isso, Kast sucederia a Gabriel Boric, o atual presidente de centro-esquerda, como inquilino do Palácio La Moneda e empataria 6-6 o marcador entre governos de esquerda e de direita na América do Sul.O subcontinente tende à direita, se se confirmar a vitória de Kast em dezembro, e já com Rodrigo Paz, empossado 8 de novembro presidente da Bolívia, após quase 20 anos de domínio da esquerda no país? A “onda rosa”, como foi denominada a ascensão ao poder de governos progressistas na região no início do século XXI, está em refluxo? O brasileiro Lula da Silva, presidente de centro-esquerda do maior país sul-americano, pode liderar o seu campo? E o argentino Javier Milei, ultraliberal chefe de Estado do segundo maior, o outro? .Para analisar o sensível momento político sul-americano, num momento em que a direita governa no Equador, no Peru, na Bolívia, no Paraguai, na Argentina e deve tomar o Chile, e a esquerda tem presidentes na Colômbia, na Venezuela, na Guiana, no Suriname, no Brasil e no Uruguai (a Guiana Francesa é um departamento da França), o DN convidou três politólogos.“Não acredito que estejamos numa onda de direita, é um ciclo político tradicional na América Latina, em geral, e na América do Sul, em particular, numa hora tender mais à direita, noutra hora tender mais à esquerda, chamo-lhe ‘pendularização’”, afirma Roberto Georg Uebel, professor de Relações Internacionais da Escola de Propaganda e Marketing, de São Paulo.“Entretanto”, acrescenta, “se não é uma onda é, pelo menos, uma tendência para a direita, com exceções, como o Brasil e o Uruguai, com presidentes eleitos recentemente à esquerda, que acredito se confirme na região como um todo”.“Não lhe chamaria de onda de direita, até porque no Chile muita gente ainda votou numa candidata comunista, mas de tendência, sim”, concorda Vinícius Vieira, politólogo da Fundação Armando Álvares Penteado. “Na Bolívia ganhou a direita, antes, na Argentina, idem, com Milei, no Paraguai, também, e Lula ganhou pela esquerda no Brasil em 2022 mas por muito pouco”.Para Paulo Niccoli Ramírez, professor de Ciência Política da Fundação Escola de Sociologia e História, “tem havido uma espécie de rotação na região, de que o Chile é exemplo, a que não é alheia a colonização económica atual dos Estados Unidos - e as oscilações económicas por lá levam a desgastes tanto da direita como da esquerda por cá, eles espirram e nós pegamos a gripe”.“Mas um certo refluxo da esquerda já vem da década passada com a vitória de Sebastián Piñera, no Chile, o golpe em Dilma Rousseff e a ascensão de Jair Bolsonaro, no Brasil, o próprio Luis Arce, mesmo sendo do partido de Evo Morales, tinha um discurso mais conservador, na Bolívia, e já recentemente a Argentina passou por isso”. .Quais os motivos para a queda gradual ou nalguns casos repentina das esquerdas? “Talvez porque o modelo em que a esquerda foi virtuosa, o ciclo alto de commodities e de redistribuição de riqueza, se esgotou”, diz Vinícius Vieira. “E esgotou porque a China não cresce tanto, porque o mercado interno também não cresce, porque a informalidade no trabalho não foi combatida, porque há um avanço da onda evangélica, em todo o continente, ou especialmente católica, na Argentina e no Chile, porque existe um problema de imigração sobretudo nestes dois países e de violência em quase todos e porque Donald Trump está na Casa Branca e muita gente, por cálculo apenas racional, prefere tê-lo como aliado”.“A esquerda desgasta-se porque acumula gastos públicos e dívidas económicas para tentar, sem conseguir na totalidade, resolver os muitos problemas sociais dos países”, defende, por sua vez, Paulo Ramírez. “No Brasil atual, por exemplo, Lula já conseguiu melhoria no emprego e nos salários mas não ao ponto de contrariar problemas sociais severos, porém, a direita, por fortalecer políticas neoliberais e privatizações que tendem a aumentar os ganhos das potências económicas e diminuir os do próprio país, também se desgasta, é por isso que os ciclos aqui não costumam ter vida longa”, “Mas um fenómeno interessante e talvez independente da ideologia é o desgaste dos políticos tradicionais e a ascensão de movimentos anti-sistema, o que abriu caminho à extrema-direita e a uma tendência a olhar para as ditaduras da região com visão nostálgica”, completa.“Há uma substituição geracional no eleitorado, por exemplo no Chile e na Argentina, que passaram por ditaduras muito agressivas, muita gente que pode estar a aderir à agenda de direita, uma espécie de Make South America Great Again, só viveu e cresceu em democracia”, junta Vieira. “Mas, contraditoriamente, ainda há rejeição às ditaduras de direita do passado”, nota Ramirez. “Embora, claro, haja segmentos do eleitorado que as apoie mesmo, os candidatos desse campo tentam demarcar-se delas, como é o caso de Kast que, mesmo ultradireitista, camufla as suas ideias com os instrumentos democráticos e legais”.No geral, pode dizer-se que o eleitorado sul-americano migrou da direita para a esquerda? “Ao contrário do eleitorado europeu, o eleitorado sul-americano é menos catalogável como de direita ou do esquerda e mais vulnerável a líderes carismáticos com discursos espalhafatosos e soluções milagrosas”, continua o académico. “Por outro lado, na América do Sul há diversidade étnica muito grande, no Brasil há marginalização em relação às populações negra e indígena, nos outros países é mais em relação a população indígena, com risco de retrocesso nesse particular na Bolívia, essas desigualdades culturais, além das desigualdades económicas, fazem com que nos países sul-americanos a noção de Estado-nação não seja assim tão forte e os torne mais frágeis diante de mudanças políticas que chegam da Europa e dos EUA”..O Brasil é o maior país em área e população da América do Sul e, apesar de a Colômbia ser mais populosa, é a Argentina o segundo mais amplo. Num, está Lula, carismático e veterano ícone do centro-esquerda, no poder; no outro, Milei, igualmente magnético mas muito menos experiente representante do ultraliberalismo. Terão, os dois, capacidade para liderar cada um dos dois blocos? “Não vejo Milei, da Argentina, a liderar a onda de direita porque Kast, no Chile, e outros presidentes, como Rodrigo Paz, da Bolívia, são de direitas diferentes que não convergem, tanto que Paz tem muitas políticas sociais, ao contrário de Milei, são direitas de múltiplas facetas”, diz Roberto Uebel. “A esquerda de Lula, por sua vez, é diferente da do venezuelano Nicolás Maduro, autoritária, e da do Yamandú Orsi, que defende até livre mercado, no Uruguai”.Para o ano, entretanto, as atenções na região voltam-se para o gigantesco Brasil, com eleições gerais marcadas para outubro. “Em 2026, imagino um processo eleitoral muito polarizado, mas não com o nível de violência de 2018 e 2022”, prevê Uebel, “até porque Bolsonaro está fora da corrida e o bolsonarismo ainda não decidiu quem será o seu candidato, sendo que com uma eventual candidatura de Tarcísio de Freitas, governador de São Paulo e mais moderado do que o ex-presidente, e talvez outra vez de Ciro Gomes, pelo centro, não surja ninguém desta vez da direita radical”..Candidato de extrema-direita parte como favorito à segunda volta no Chile