Quando no início de janeiro o primeiro-ministro canadiano Justin Trudeau anunciou a demissão, o seu Partido Liberal estava quase 30 pontos percentuais atrás do Partido Conservador e Pierre Poilievre era apontado como o mais que certo futuro chefe de governo. Na segunda-feira, os liberais venceram as eleições, ficaram à beira da maioria absoluta e Poilievre perdeu no círculo eleitoral no Ontário que era seu há 20 anos. O que mudou nos últimos quatro meses? Em primeiro lugar, a tomada de posse de Donald Trump, que aplicou as suas tarifas e insiste em querer transformar o Canadá no “51. º estado” dos EUA. Em segundo lugar, a eleição do novo líder liberal, Mark Carney, que concorreu com a promessa de travar Trump. “Como tenho vindo a alertar há meses, a América quer a nossa terra, os nossos recursos, a nossa água, o nosso país”, disse Carney no discurso de vitória, reiterando que a sua prioridade será lidar com a ameaça vinda do sul e apelando à união dos canadianos. “O presidente Trump está a tentar destruir-nos para nos dominar. Isso nunca vai acontecer”, acrescentou, avisando os canadianos que enfrentar a ameaça será difícil e poderá exigir sacrifícios.Os votos das eleições de segunda-feira continuavam ontem a ser contados, com os liberais a caminho de eleger 169 deputados (num total de 343 do Parlamento de Otava). Caso esta previsão se confirme, o partido de Carney fica a apenas três deputados da maioria absoluta, necessitando do apoio de pequenos partidos. Estes foram dos mais prejudicados nestas eleições, onde muitos eleitores apostaram no voto útil nos maiores partidos.Jagmeet Singh, líder dos Novos Democratas, anunciou a demissão depois de ter ficado em terceiro lugar no seu círculo eleitoral e de o partido estar projetado para eleger apenas sete deputados - tinha 24. O Bloc Québécois tinha previsto eleger 22 representantes, menos 11 do que tinha atualmente. Já os Verdes devem cair de dois para um deputado, com a colíder Elizabeth May a ser eleita, mas o parceiro Jonathan Pedneault a falhar a eleição. O Partido Conservador, que no início do ano era o favorito a uma vitória com maioria absoluta, deverá passar de 120 deputados para os 144 - apesar da derrota do seu dirigente desde setembro de 2022. Se a retórica e as ações de Trump ajudaram Carney, prejudicaram Poilievre - cujo slogan era “Canada first” num piscar de olho ao “America first” do presidente norte-americano. Apesar da derrota, Poilievre conseguiu o melhor resultado para os conservadores em mais de uma década e não está a planear deixar a liderança partidária, alegando que precisa de mais tempo para derrotar os liberais. “Ainda não cruzámos a meta. Sabemos que as mudanças são necessárias, mas as mudanças são difíceis de acontecer. Leva tempo. Exige trabalho”, disse aos apoiantes ontem de madrugada.Desafios de CarneyO primeiro-ministro conseguiu nestas eleições o mandato que muitos o acusavam de não ter - o antigo governador do Banco do Canadá e do Banco de Inglaterra nunca tinha, na prática, sido eleito para nada antes de assumir a direção dos liberais e nem sequer era deputado. Tendo sido eleito com a promessa de enfrentar a “ameaça” Trump, Carney terá agora de conseguir resultados. “Vai ser uma lua de mel muito curta”, disse à AFP uma ex-conselheira de Trudeau, Marci Surkes.O próprio Carney admitiu as dificuldades no discurso de vitória. “É tempo de ser ousado para enfrentar esta crise”, defendeu, falando na necessidade de “longas mudanças” e de “um longo caminho a percorrer”. Os desafios são “assustadores”, afirmou, mostrando-se contudo confiante na resposta do Canadá.Uma das apostas de Carney é em tornar a economia do país menos dependente dos EUA, sendo que três quartos das exportações canadianas têm como destino o vizinho do sul. A aposta é em melhorar os laços com os aliados europeus, mas essa não será uma solução a curto prazo. Ontem, o presidente francês, Emmanuel Macron, disse ter telefonado a Carney para o felicitar pela vitória e falar dos projetos comuns, incluindo a cimeira do G7 que vai decorrer em junho no Canadá - que poderá o primeiro frente a frente com Trump, apesar de ser possível um telefonema ainda antes, já no início de maio. Em relação ao presidente norte-americano, Carney disse ontem à BBC que o Canadá merece o “respeito” e que o seu país “nunca, nunca” será o “51.º estado” dos EUA. Indicou ainda que só haverá um acordo de comércio e segurança entre ambos “nos nossos termos” e não visitará Washington até haver “uma discussão séria” sobre a soberania canadiana. Sobre a relação com a Europa, fala de uma situação em que ambos podem ganhar. “Poderíamos expandir o nível de integração entre os nossos países, países com ideias semelhantes”, explicou à BBC. “Pensa-se em parcerias de defesa, e essas conversas estão apenas a começar, por isso há muito que podemos fazer”, acrescentou. Aumentar os gastos em Defesa para os 2% do PIB é uma das prioridades de Carney, que quer ainda construir uma nova rede elétrica para reduzir a dependência dos EUA e apostar na indústria automóvel e no aumento do comércio interno para fazer face a Trump, Mas os problemas canadianos não se limitam ao vizinho do sul. A aposta será também na habitação, com a promessa de construir o dobro de casas todos os anos, e um corte nos impostos para os que ganham menos.Perfil: Dos bancos centrais ao poderAté há um mês, o sexagenário Mark Carney nunca tinha disputado uma eleição na vida. A sua carreira era nas finanças e na banca, tendo sido governador de dois bancos centrais - o do seu país natal, Canadá, e o de Inglaterra (por coincidência, o da sua mulher, Diana). Mas a decisão do anterior primeiro-ministro canadiano, Justin Trudeau, de deixar o poder, abriu-lhe as portas. Primeiro do Partido Liberal, onde apesar da inexperiência política conquistou a esmagadora maioria dos militantes (85,9%), e agora do Canadá, com as urnas a darem-lhe o mandato que os críticos diziam que lhe faltava. Carney nasceu há 60 anos em Fort Smith, nos Territórios do Noroeste, mas cresceu em Edmonton, na província de Alberta. Ganhou uma bolsa para Harvard (onde jogou hóquei no gelo), doutorando-se depois em Economia em Oxford. Passou pela Goldman Sachs antes de entrar em 2003 no Banco do Canadá, como vice-governador, mas já era governador na crise financeira de 2008, ajudando a guiar o país por esse momento difícil. Em 2013, trocou o Banco do Canadá pelo Banco de Inglaterra, tornando-se no primeiro não-britânico a assumir esse cargo. O seu “dia mais difícil” foi após o referendo do Brexit, em 2016, quando a libra caiu a pique, procurando garantir que o sistema financeiro funcionaria como normal. Saiu do banco em março de 2020, no início da pandemia da covid-19. Apesar de a sua entrada na política ser recente, há uma década que os liberais andavam atrás dele. Ainda em dezembro, foi falado como possível ministro das Finanças. Mas era o cargo máximo que queria, tomando posse como primeiro-ministro a 9 de março - apesar de nem sequer ser deputado. Agora já é. .Mark Carney vence legislativas. "Canadá nunca deve esquecer traição" dos EUA, diz