Brasil já contabiliza cinco mortes por ingestão de “caipirinhas venenosas”
Foto: REINALDO RODRIGUES

Brasil já contabiliza cinco mortes por ingestão de “caipirinhas venenosas”

Garrafas de vodka, gin, whisky e outros destilados com indícios de metanol causam cegueira, coma e morte. Crise abala comerciantes, muda hábitos dos consumidores e agita a política.
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“Era um bar numa região nobre, não era um boteco de esquina, bebi três caipirinhas de frutas vermelhas com maracujá e vodka, desde então estou cega”, contou Radharani Domingos, designer de interiores, 43 anos, que festejava um aniversário num estabelecimento dos Jardins, bairro de alto padrão de São Paulo, ao programa Fantástico da TV Globo. Ela é um dos 24 casos de intoxicação por metanol, tipo de álcool venenoso, já confirmados no Brasil. Há mais 235 sob investigação. Cinco pessoas morreram, 11 outros óbitos estão em análise.

“O álcool etílico transforma-se em ácido acético no fígado, ou seja, vinagre, basta deixar um garrafa de vinho aberta que ela acabará por ficar com aquele gosto horrível do vinagre, já o álcool metílico torna-se ácido fórmico ao chegar ao fígado e depois ataca o sistema nervoso central, causa cegueira e óbito”, explica ao DN Rogério Machado, professor de Química da Universidade Presbiteriana Mackenzie e da Faculdade São Bernardo. 

Sobre as causas da crise, o académico arrisca uma hipótese. “Não tenho provas, claro, mas tenho experiência com metanol há 30 anos, alguém, uma organização criminosa sem humanidade, depois de a polícia ter descoberto recentemente a adulteração de combustível com metanol numa operação policial pode ter pensado em despachá-lo na bebida…”. 

A Polícia Federal do Brasil, aliás, diz que não descarta essa linha de investigação porque os casos ocorreram logo após a tal operação no final de agosto contra um esquema multimilionário no setor de combustíveis do crime organizado. “Tivemos uma enorme ação de combate de infiltração do crime organizado na área de combustíveis e muitos tanques de metanol foram abandonados depois da operação, essa é uma possibilidade", afirmou Ricardo Lewandowski, ministro da Justiça de Lula.

Entretanto, a Polícia Civil de São Paulo, o estado brasileiro que concentra mais de 80% dos casos, trabalha com outras hipóteses: ou o metanol foi usado para a higienização de garrafas reaproveitadas que acabaram por não ir para a reciclagem ou houve uso criminoso de etanol puro para aumentar o volume de bebidas falsificadas sem saber que o produto estava contaminado com metanol.

O Instituto de Criminalística da Polícia Científica de São Paulo afirmou que a perícia a garrafas apreendidas em fiscalizações a bares indicou que as concentrações de metanol encontradas não são produto da destilação natural - foram adicionadas. Por outro lado, a Polícia Civil encontrou mais de 100 mil garrafas vazias num barracão clandestino na zona leste de São Paulo.

“A garrafa consumida em vez de ir para a reciclagem é comprada no mercado clandestino e facilita a falsificação”, disse Tarcísio de Freitas (Republicanos), governador do estado de São Paulo, apontado como candidato à presidência da República em 2026 contra Lula da Silva (PT). 

Para Guilherme Derrite (PP), secretário de segurança pública de Tarcísio, a hipótese de dedo do crime organizado “está afastada”. “O crime organizado visa o lucro e o lucro é exponencial no tráfico de drogas, na bebida é infinitamente inferior, não iria migrar para um negócio menos rentável”.

A Coca-Cola de Tarcísio

A diferença de opinião quanto às causas foi apenas uma face da disputa política entre os governos federal e estadual que a crise gerou. Noutro ponto, uma piada de Tarcísio, considerado delfim do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), gerou indignação à esquerda. “No dia em que começarem a falsificar a Coca-Cola, eu vou me preocupar”, gracejou. 

Paulo Teixeira (PT), ministro do Desenvolvimento Agrário, chamou a declaração de “deboche com todas as vítimas, os seus familiares e os prejuízos causados por essa ação criminosa”, escreveu nas redes sociais.

O deputado federal Guilherme Boulos (PSol), que pode tornar-se ministro de Lula na próxima remodelação, comparou a declaração de Tarcísio a uma de Bolsonaro durante a pandemia de Covid-19: "E daí? Eu não sou coveiro…”, disse o então presidente na ocasião.

“Há paulistas perdendo a visão, a vida ou sofrendo sérios danos à saúde por conta dessa crise no nosso estado mas o foco de Tarcísio é, por algum motivo, negar o envolvimento do crime organizado e tirar sarro do sofrimento das vítimas", acrescentou a deputada Erika Hilton, também do esquerdista PSOL.

Na sequência, Tarcísio pediu “perdão” pela frase “inoportuna”. 

Portugal ajuda

Para combater a intoxicação por metanol, o método mais eficaz é o antídoto fomezipol, disse Alexandre Padilha, ministro da Saúde do Brasil, que anunciou a aquisição de 2500 embalagens aos EUA e ao Japão. O governo de Portugal, entretanto, já doou 36 ampolas na última terça-feira, dia 7. 

Por outro lado, segundo pesquisa de uma associação de bares de São Paulo, 26% dos estabelecimentos já tiveram queda na faturação, especialmente os que dependem da venda de destilados.

E jovens paulistanos, conta reportagem do jornal Folha de S. Paulo, aproveitaram a crise para “não beber até que se desenhe um cenário mais seguro”. Coincidentemente, nalguns pontos do globo, como Reino Unido e EUA, já existe um movimento chamado “Go Sober for October” [fique sóbrio em outubro]" para conscientizar sobre os malefícios do álcool.

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"Caipirinhas canceladas". O que se sabe sobre as intoxicações por metanol, em bebidas alcóolicas, no Brasil?

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