A histórica cimeira do G20 deste fim de semana em Joanesburgo será a primeira em África e pretende abordar a sustentabilidade da dívida, o financiamento climático e a desigualdade, como indica o tema da presidência sul-africana - “Solidariedade, Igualdade, Sustentabilidade”. Este encontro de alto nível ficará ainda marcado pelo boicote de Donald Trump, que além de ausente anunciou que os Estados Unidos não enviarão qualquer representante, enquanto que a China enviará o primeiro-ministro Li Qiang em vez do presidente Xi Jinping.“A ausência dos EUA no G20 não significa que não vamos avançar com as reuniões. O G20 vai acontecer. Todos os outros chefes de Estado estarão presentes. No final, tomaremos decisões fundamentais e a ausência deles é uma perda para eles”, afirmou na semana passada o presidente sul-africano Cyril Ramaphosa, acrescentando que os EUA estão a “abdicar do papel importantíssimo que deveriam desempenhar como a maior economia do mundo”, alertando ainda que “os EUA precisam de repensar se a política de boicote realmente funciona, porque, pela minha experiência, não funciona.”Depois de ter anunciado que não iria a Joanesburgo, Donald Trump afirmou na semana passada que nenhum representante da sua Administração participaria na cimeira do G20 pelas “violações dos Direitos Humanos” cometidas contra afrikaners e citando alegações já desmentidas, inclusive por Ramaphosa na sua visita à Casa Branca, sobre os sul-africanos brancos serem “massacrados” e expropriados das suas terras.“Nós sabemos que os problemas com a África do Sul não têm só a ver com esta questão da perseguição às pessoas consideradas etnicamente brancas, mas também as posições que a África do Sul tomou, por exemplo, relativamente a Israel e que causaram algum incómodo nos EUA”, explica ao DN Cátia Miriam Costa, investigadora do Centro de Estudos Internacionais do ISCTE. “Esta ausência tem como primeira leitura que Donald Trump, neste caso os EUA, colocam as relações bilaterais e os incómodos bilaterais à frente de uma ação multilateral, porque o G20 não é uma iniciativa da África do Sul, que é a anfitriã porque tem a presidência e vai transferir essa presidência”, prossegue esta especialista. E nota que Joanesburgo “não se coibiu de desenvolver uma agenda de Sul Global, mesmo sabendo que teria esse impacto nas suas relações com os EUA, e isso demonstra que os EUA se sentem mais incomodados com isso do que propriamente em se sentarem à mesa com países que são também as maiores economias do mundo”.Já Gustavo de Carvalho, investigador sénior do Instituto Sul-Africano de Assuntos Internacionais (SAIIA), lembra ao DN que durante o ano desta presidência os EUA fizeram-se representar em várias reuniões setoriais do G20, mas mesmo assim, uma ausência total de representantes norte-americanos na cimeira deste fim de semana “mina a ideia do G20 como ator central de coordenação económica internacional, gerando-se um vácuo para outros países”, mostrando também o “impacto da polarização internacional” dentro do grupo das 20 maiores economias do mundo, “gerando potencial pressão para repensar o papel do grupo e a sua capacidade de influência”. “Mas, ao mesmo tempo, cria-se um vácuo de liderança, que pode trazer novos caminhos de cooperação económica internacional”.Ideia partilhada pela investigadora do ISCTE. “Isto pode reforçar as ideias de multilateralismo alternativo àquele que tem sido preconizado até aqui, também de um pensamento de situações ou soluções multipolares que sabemos que estão na agenda internacional por parte de alguns protagonistas que estarão presentes nesta cimeira do G20.”Esta ausência dos EUA tem também outro foco de interesse já que serão o próximo país a ocupar a presidência do G20. Cyril Ramaphosa abordou esta passagem de testemunho, afirmando que a África do Sul entregará simbolicamente liderança a uma “cadeira vazia” em Joanesburgo. “Já disse antes que não quero entregar a uma cadeira vazia, mas a cadeira vazia estará lá, (provavelmente) vou entregá-la simbolicamente a essa cadeira vazia e depois falar com o presidente Trump...”“Esta questão simbólica da cadeira vazia é uma forma de a África do Sul também expor, como presidência atual, essa expectativa de quase vácuo que vai existir durante o próximo mandato, veremos se assim é. (…). Agora tudo depende da vontade das outras 19 economias, o que elas querem e que tipo de autonomia conseguem exercer em relação a esta superpotência”, nota Cátia Miriam Costa.Balanço da presidênciaA cimeira de Joanesburgo marca o final de um ano de presidência sul-africana, que, segundo Gustavo de Carvalho, “mostrou um equilíbrio de ambição e cautela”, tendo tentado trazer temas de desigualdade internacional para o centro da discussão, sendo disso exemplo a criação do Alto Painel sobre Desigualdade, liderado pelo Nobel da Economia Joseph Stiglitz, e que resultou na apresentação de um relatório, no qual se pode ler que, a par da emergência climática, existe uma emergência de desigualdade - sendo esta considerada “uma das preocupações mais urgentes do mundo atual” - que agravou a instabilidade sociopolítica e os conflitos internacionais atuais, que resulta numa diminuição da confiança na democracia.“Mesmo que grandes questões do relatório do painel não sejam totalmente incorporadas em decisões coletivas cria-se um espaço importante para refletir questões sobre Finanças Públicas, proteção social e impostos que certamente ocuparão espaços de discussão tanto em próximos G20 como noutras plataformas”, prossegue o investigador sénior do SAIIA, notando ainda que “a centralidade que a África do Sul deu ao continente africano durante a sua presidência também foi importante, e gera maiores demandas e perspetivas de um aumento de clareza institucional e continuidade por parte da União Africana”.A investigadora do ISCTE concorda. “A África do Sul tentou fazer uma agenda que é herdeira de todos aqueles temas fortes e caros ao Sul Global, mas também tentou encaminhá-los para problemas muito específicos africanos, nomeadamente as questões do crescimento e do desenvolvimento, do acesso aos recursos naturais, da transição energética, da questão dos minérios e da extração mineral - porque existe riqueza em alguns destes países, mas uma incapacidade endógena para fazer uma exploração autóctone -, questões até relacionadas também com as soberanias, como a soberania sobre os recursos naturais ou soberania alimentar”.Outro dos focos desta presidência foi a questão da dívida excessiva de muitos países, muitos deles africanos, tendo para isso criado em março um grupo de especialistas, que apresentaram na terça-feira as suas conclusões. Uma delas é que o G20 deverá unir-se ao Fundo Monetário Internacional e a outras entidades para lançar um novo plano de refinanciamento da dívida para os países de baixo rendimento afetados por pesados pagamentos de dívidas, sublinhando que muitos deles precisam de um alívio imediato. .O que esperar das conclusõesQuanto às conclusões que podem sair desta cimeira, os especialistas ouvidos pelo DN acreditam que “podemos esperar ou um texto extremamente diluído ou uma declaração da presidência sul-africana que procura mostrar o consenso amplo encontrado (e a ausência norte-americana e potenciais dificuldades de conseguir consenso com a Argentina)”, conforme nota Gustavo de Carvalho.Cátia Miriam Costa crê que “vai haver uma tentativa de criar convergência para as questões do crescimento, do desenvolvimento e do acesso aos recursos naturais que são fundamentais para África”, notando que “a África do Sul sente-se muito representativa desse desejo africano”.A investigadora do ISCTE aponta ainda que em áreas como o repensar a resiliência e a resposta a catástrofes climáticas, o aproveitamento de minérios críticos para um crescimento inclusivo ou questões mais financeiras como o perdão de dívidas haverá uma “tentativa de ter pontos na declaração que toquem estes aspetos”, com o investigador sénior do SAIIA a acrescentar que “áreas relativamente consolidadas na área das finanças e bancos multilaterais de desenvolvimento podem encontrar potenciais ganhos. E para a África do Sul, uma linguagem direta, visível e inclusiva do papel de África e da União Africana em áreas de aumento de valor agregado da economia por meio da industrialização, transição energética e integração regional podem ser áreas importantes”.“A questão aqui é pensar no processo do G20 não só como a realização da cimeira como um evento, mas sim o fim de um processo anual em que dezenas de encontros, discussões, grupos de trabalho e forças-tarefas, desenvolveram ideias, criaram-se espaços para coordenação. Desta forma, mesmo sem uma declaração consensual, houve bastante desenvolvimento de processos ao longo do ano, que certamente serão continuados (mesmo que com relutância em certas áreas) tanto na presidência norte-americana do G20 em 2026, mas também que tendem a se polinizar noutros fóruns também”, conclui Gustavo de Carvalho. O papel da UE e da ChinaAo contrário dos EUA, China e União Europeia vão marcar presença em Joanesburgo, sendo esperado que aproveitem esta ausência para tentar expandir a sua influência no continente africano, região que não é estranha para estas duas potências. “Se não aproveitarem não seriam políticos inteligentes, não é?”, lança Cátia Miriam Costa.Pequim é o maior parceiro comercial individual de África, mas também o maior credor bilateral do continente africano, o que gera preocupações quanto à sustentabilidade e ao peso da dívida sobre alguns dos seus países, sendo que a China tem também apostado nas energias renováveis de África, como a solar, eólica e hidroelétrica. Já em termos políticos, esta relação tem sido reforçada através de plataformas como o Fórum de Cooperação China-África (FOCAC).A par da China, a União Europeia é também o maior parceiro comercial de África, surgindo como a principal fonte de investimento estrangeiro e de ajuda oficial ao desenvolvimento para o continente africano, com os dois blocos a trabalharem em conjunto em áreas como a adaptação e mitigação das alterações climáticas, com a UE a apoiar a transição verde de África através de diversos programas, havendo ainda um foco na transformação digital e na colaboração em minerais críticos necessários para as metas verdes e digitais dos 27. Há quatro anos, Bruxelas lançou a estratégia Global Gateway, que tem como objetivo fomentar o desenvolvimento global através do financiamento em setores como a energia limpa, a transformação digital e as infraestruturas sustentáveis, particularmente em África e na América Latina e Caraíbas.“Os dois blocos têm grandes projetos que também contemplam países africanos, nomeadamente o Global Gateway e a Nova Rota da Seda. Portanto, não é inimaginável que estão em Joanesburgo a mostrar o seu compromisso com o multilateralismo, a mostrar o seu compromisso com o Sul Global e o seu compromisso histórico em se envolverem com estas populações. E isso diferencia o posicionamento dos Estados Unidos, que parecem estar ausentes das grandes transformações que vão ocorrer, como a transição digital e energética”, reforça a investigadora do CEI-ISCTE. De notar ainda que no dia seguinte à Cimeira do G20 começa, em Luanda, uma reunião de dois dias entre as lideranças da União Europeia e da União Africana, encontro que, na perspectiva de Gustavo de Carvalho, “traz o potencial não só de mostrar como as relações da Europa com África se desenvolvem, mas, principalmente, como pode trazer um novo caminho de relações entre os dois continentes que funcione como uma plataforma de como ambos veem o novo contexto internacional e como podem identificar posições e visões de mundo comuns, nomeadamente no que diz respeito à defesa e transformação de instituições multilaterais como a ONU”..Opinião. Como foi o G20 e o que ele nos apontou.Estados Unidos declaram embaixador da África do Sul "persona non grata"