Vem a Portugal esta sexta-feira, 19 de dezembro, falar sobre a corrida pela inovação digital: Europa, EUA e China. A Europa está a perder essa corrida?Começaria por perguntar: é mesmo uma corrida? Existe claramente uma competição entre as grandes empresas tecnológicas americanas para terem os melhores modelos de Inteligência Artificial (IA) de ponta. Em vez disso, os chineses estão a analisar modelos abertos, modelos mais pequenos, aplicações. Estão a competir num terreno ligeiramente diferente. Será que a Europa está a ficar para trás? Provavelmente sim. E isto não se resume tanto a capacidades básicas. Obviamente, existem universidades, investigadores e startups fantásticas na Europa. A questão é como expandir indústrias de ponta e garantir que as empresas europeias podem aceder à escala de mercado que beneficia as suas congéneres americanas e chinesas.De acordo com os rankings, os EUA têm as melhores universidades do mundo. Quando falamos desta competição pela supremacia tecnológica mundial, será liderada por cientistas e académicos, mais do que por políticos?Não tenho a certeza. Penso que é uma interação entre os cientistas e os investigadores, os imperativos políticos e também a forma como os mercados financeiros e os reguladores operam. Penso que o futuro da Europa será moldado por todos estes fatores. Afinal, as universidades são financiadas pelos contribuintes para realizarem a sua investigação. No final de contas, as universidades respondem aos tipos de desafios sociais que os investigadores identificam.Há dias numa conferência, aqui em Lisboa, o vice-presidente da Meta para as Políticas Públicas na Europa, Markus Reinisch, foi muito crítico em relação às políticas regulatórias na Europa, sobretudo o Regulamento Europeu da IA (AI Act, aprovado em 2024). Esse tipo de regulação pode travar a Europa no que respeita a ser tão competitiva quanto deveria nesta área?Não penso na regulamentação em termos de excesso, mas sim se é o tipo de regulamentação certa. Não haveria necessidade de regular as empresas tecnológicas se estas não estivessem a agir de forma prejudicial para os consumidores e para os cidadãos, ou pelo menos se os servissem bem. Vimos as preocupações com os efeitos psicológicos dos chatbots de IA. A Austrália proibiu agora o uso das redes sociais pelos menores de 16 anos. As empresas não se envolveram com este tipo de preocupações. E têm reduzido os esforços de moderação, permitindo a disseminação de desinformação. Dificilmente se podem queixar que os políticos de muitos países os queiram regular. Mas se perguntar se existem regulamentos europeus que dificultam o crescimento das boas empresas, então sim, existem. Mas penso que descobrir como alterar a regulamentação é um exercício mais minucioso do que dizer: “Meu Deus, devemos ser tão desregulados como os EUA, permitindo que estas empresas se comportem como bem entenderem.”Voltando à China, dizia há pouco que é um tipo de competição diferente dos EUA. Mas, olhando para o futuro da liderança digital, este pertence mais aos EUA ou a China tentará ser a potência número um neste campo?Essa é uma questão muito interessante. Referiu que as universidades americanas são as líderes mundiais. Neste momento, é verdade, mas a atual Administração tem feito muito para prejudicar o setor universitário. Portanto, a longo prazo, acho que é uma incógnita. As próprias empresas investem muito em investigação e têm excelentes profissionais, pelo que continuarão a inovar. Mas estão a inovar em modelos proprietários e precisam de gerar muito lucro, porque investiram muito dinheiro no seu desenvolvimento. Por conseguinte, oferecerão um acesso dispendioso a modelos proprietários, que não são muito transparentes. E os chineses estão a apostar tudo em modelos abertos, que são muito mais transparentes e serão gratuitos. Eles já existem. E os empreendedores de todo o mundo podem construir as suas aplicações com base nos modelos chineses. Sabe, a China não esteve na vanguarda da ciência do desenvolvimento das células fotovoltaicas, mas é agora o produtor mais barato do mundo. Qualquer país irá optar por comprar painéis solares chineses em grande escala, porque são muito mais baratos. Esta parece ser uma estratégia comercialmente muito bem-sucedida. A China tem jogado um jogo estratégico muito inteligente, enquanto os americanos não têm sido muito estratégicos. Mas, considerando os pontos de partida iniciais, não tenho a certeza de como se desenrolará nos próximos anos.Estamos a viver uma revolução da IA, que é imparável. Mas o que sentimos no dia a dia é que as pessoas têm medo, medo de perder os empregos, etc. Como é que esta revolução da IA pode levar a uma maior prosperidade?Este é um grande desafio político. Quando falo com as empresas, digo-lhes que as histórias sobre a IA são ou sobre o apocalipse dos empregos, com o desaparecimento de todos os empregos, ou sobre chatbots psicopatas. Porque não disponibilizam muito mais informação para que o público em geral, mas também os investigadores, possam compreender melhor o que se passa? É provável que haja muita perturbação nos postos de trabalho e na forma como as empresas estão organizadas. E sabemos, por episódios anteriores de automação, como no início dos anos 80 e 90, que a maioria dos países ocidentais não tem uma boa fórmula para ajudar as pessoas nesta transição. Mas aprendemos lições políticas. Podemos pensar nas estruturas do Estado Social que permitem às pessoas fazer esta transição de forma mais eficaz do que no passado. Porque, a longo prazo, estas mudanças tecnológicas trazem mais crescimento e benefícios que se estendem a todos, mas a disrupção pode ser enorme. Portanto, o imperativo político é tentar lidar com isto de forma muito mais eficaz. Penso que a outra questão é distributiva: apenas as grandes empresas, os seus accionistas e colaboradores beneficiarão da revolução? Isto envolve questões de política de concorrência, instituições do mercado de trabalho. E o que temos visto em todo o lado, incluindo na Europa desde 1980, é um recuo dos governos na gestão dos mercados de forma a beneficiar a população em geral. E estamos a assistir a uma reação contrária a isso. As pessoas, os eleitores, estão bastante descontentes com o funcionamento atual da economia. Penso que teremos de ver mais ativismo em áreas como a política da concorrência e a política industrial, como já começamos a ver, mas muito mais para que estes benefícios sejam partilhados.Os atuais líderes mundiais são bastante idosos - Trump tem quase 80 anos, Putin e Xi Jinping têm mais de 70. Estes homens estão preparados para lidar com este mundo hipertecnológico e para comunicar a sua importância aos seus povos?Muito interessante. Não tinha pensado nisso. Não se trata apenas de pessoas com mais de 70 anos. Muitos decisores políticos públicos têm muita dificuldade em compreender o que está a acontecer com a tecnologia. Uma das coisas que estamos a fazer na minha faculdade é introduzir cursos de Políticas Digitais para educar as futuras gerações de decisores políticos com conhecimentos técnicos suficientes para que possam desenvolver políticas eficazes para este tipo de tecnologias. Geralmente, os economistas, os cientistas políticos e os especialistas em machine learning e IA não interagem muito entre si. Estou realmente preocupada com a necessidade de começarmos a educar melhor o público e os decisores políticos sobre o que estas tecnologias tornam possível e o que é impossível, para que haja uma melhor compreensão do que está a acontecer. Mas respondendo à sua pergunta, tenho a certeza que o Sr. Trump não tem um domínio realmente bom sobre a IA..Quando imaginamos as guerras do futuro, pensamos em guerras cibernéticas, na tecnologia a substituir os humanos. Mas será desenvolver a tecnologia mais avançada a única forma de prevenir guerras no futuro?Isto está bem fora da minha área de atuação. Mas, digamos que podemos prever um futuro onde drones e robôs lutam entre si, numa verdadeira corrida ao armamento tecnológico. Infelizmente, parece que ainda estamos muito longe deste tipo de confronto, pois, como sabemos, as pessoas na Ucrânia estão a pagar com as suas vidas e a sofrer ferimentos. Assim, a guerra com drones é uma realidade na Ucrânia, mas não impede os horrores da guerra convencional.As tecnologias digitais parecem reforçar os movimentos de extrema-direita e vemos magnatas digitais a apoiar esses movimentos, os seus candidatos e influenciar eleições. Os partidos tradicionais têm de aprender a usar essas tecnologias para comunicar melhor com as pessoas?Com certeza, aqui no Reino Unido, a líder do MI6 fez [na segunda-feira] um discurso em que falou sobre os russos a semearem o caos, e parte desse caos é desinformação disseminada pelas redes sociais. Eles têm sido muito hábeis nisso. Mais uma vez, não é a minha área de conhecimento, mas parece que nós, no Ocidente, temos sido muito menos eficazes a combater este tipo de esforço. O que contrasta com a Guerra Fria, quando a CIA e outras agências Ocidentais levavam muito a sério a ameaça de informação proveniente do Bloco Soviético. Outro ponto que gostaria de salientar é que existe um terreno fértil para as pessoas acreditarem em todo o tipo de desinformação ou informação falsa, porque a vida de muita gente piorou. Não houve crescimento de rendimentos e o que houve foi dirigido a pessoas que já são muito ricas. Todos nós temos esta experiência de como a vida quotidiana vai piorando. Isto deve-se à deterioração dos serviços públicos por falta de investimento. E o mesmo acontece com o setor privado. Cory Doctorow utiliza um termo que não me agrada particularmente: “enshittification”. É uma palavra feia. Mas refere-se à sensação de que, com o passar do tempo, as empresas têm vindo a diminuir cada vez mais a qualidade do serviço que prestam e o valor que acrescentam às pessoas. Temos a sensação de que o dia a dia se tornou uma luta constante, sem qualquer melhoria. Isto contrasta com o século XX e início do século XXI, quando todos esperavam que os filhos tivessem uma vida melhor do que a deles. Agora, os jovens não conseguem comprar casa, porque é muito cara. É horrível tentar arranjar emprego. Os trabalhos disponíveis são temporários e muito precários. Todo este ambiente faz com que as pessoas estejam dispostas a acreditar em qualquer coisa, só para encontrarem alguém para culpar.Num dos seus artigos, defendeu que, para combater o populismo, os governos devem investir em comunidades marginalizadas. É esse o caminho?Sim. Isso reflete-se, em certa medida, nos padrões de voto. As comunidades desindustrializadas, quando têm empregos, oferecem geralmente salários muito mais baixos ou são menos seguras do que os antigos empregos na indústria. Nos EUA, isto reflete-se na epidemia de opioides, em que as pessoas morrem em casos que têm sido chamados mortes por desespero. Seja qual for o motivo, é difícil imaginar como os países se podem manter unidos. Algumas comunidades estão a sofrer muito. A sua situação é muito pior do que a que é retratada nos media, seja nas redes sociais ou na televisão. Penso que é prioritário fazer com que as economias destes locais voltem a funcionar.Rejeita a ideia de que governos e mercados são opostos. Como podem trabalhar melhor em conjunto para melhorar a vida de todos? Escrevi um livro inteiro sobre isso. É uma questão de mentalidade, tanto do setor privado como do público, que têm de compreender que precisam um do outro. O privado necessita de um sistema central que funcione de forma rápida e eficiente. Precisa de infraestruturas, de mão de obra qualificada e assim por diante. Tudo isto é coordenado e fornecido pelo Estado. Os governos precisam aceitar que não são tão bons como o setor privado em algumas coisas, mas podem trabalhar com ele para gerar crescimento económico e melhorar a vida das pessoas. No seu livro A Medida do Progresso, defende a incorporação do “time use” (uso do tempo) e do “time saving” (poupança de tempo) na análise económica e na formulação de políticas para combater a “time tax”, o “imposto do tempo” que as empresas nos impõem. Temos de aprender a utilizar melhor o tempo que a tecnologia nos poupa nesta economia digital?Com certeza. Há uma TED Talk muito interessante de Hans Rosling sobre a máquina de lavar roupa, o tempo que poupa às mulheres e como poderiam utilizar esse tempo. Temos 24 horas no dia. Temos de usá-las. Não dá para poupar algumas. É necessário garantir que as pessoas dividem essas horas entre trabalho, lazer e consumo, e que podemos utilizar o tempo da forma mais eficaz possível, tanto para o nosso bem-estar, como para a eficiência na produção. O que é inegável na tecnologia digital e na IA é que poupam tempo. Pense na IA a tratar da sua papelada como uma máquina de lavar roupa para o trabalho e em como pode utilizar melhor o tempo que ela lhe proporciona..Philippe Tibi: “A revolução industrial é domesticação da força mecânica; a IA é domesticação da força cognitiva”