Vive em Tallin há cerca de um ano, como é que decidiu ser jornalista e o que a levou a sair da Rússia?Eu nasci em Samara, uma cidade com um milhão de habitantes situada na parte europeia da Rússia, junto ao rio Volga. Foi lá que me formei como jornalista e comecei a trabalhar para alguns media locais. Escrevia sobre arquitetura e lifestyle. Mas, quando houve protestos em Samara e nós fizemos a cobertura e recusámos apagar as notícias, o nosso website acabou por ser fechado. E eu mudei-me para Moscovo. .Em que ano?Em 2017, eu tinha 22 anos. Depois de me mudar, continuei os estudos, fiz o mestrado em Jornalismo e comecei a trabalhar para os media da oposição. Foi uma experiência que mudou a minha vida. Comecei a cobrir os protestos. Estávamos em 2019 e houve muitas manifestações em Moscovo. A vida política em Moscovo antes da covid era muito forte. Conheci muita gente, inclusive Alexei Navalny e Lyubov Sobol, a minha atual patroa. Conheci-a quando a polícia fez buscas no seu escritório em Moscovo. E quando eu decidi emigrar, ela mandou-me mensagem a dizer que precisava de uma produtora e comecei a trabalhar com ela. Tenho muito orgulho em trabalhar com uma figura da oposição. .Mas em que momento decidiu deixar a Rússia?Quando a guerra começou na Ucrânia eu participei em protestos em Moscovo com uns amigos da Greenpeace. E a polícia fez buscas em minha casa. Eles não disseram a razão, mas pode ter sido por ter sido identificada pelas câmaras de vigilância nas manifestações ou por causa do meu trabalho. Porque vários colegas de meios da oposição também foram alvos de buscas. Percebi então que era perigoso ficar na Rússia. Por isso, decidi sair. Fui para Istambul, porque para ir para a Europa os russos precisam de visto e eu não tinha. Em 2022, mudei 30 vezes de apartamento. .Trinta?Trinta apartamentos em sete países. Aliás, o primeiro foi em Bishkek, no Quirguistão. Passei lá duas semanas. Era difícil arranjar um sítio permanente, porque os consulados não sabiam o que fazer devido às sanções de que a Rússia era alvo por causa da guerra. Tentámos em Istambul arranjar visto para a Alemanha, mas eu e o meu parceiro esperámos durante três meses e não sabíamos quanto tempo ia demorar. Então íamos alugando apartamentos à semana e mudando. .No fim disso tudo, acabou em Tallin.Sim, agora vivo em Tallin e gosto muito da Estónia. .Como é que uma jornalista russa a viver fora da Rússia lida com a imagem do seu país, sobretudo depois da invasão da Ucrânia?Na Estónia, tenho muitos amigos, alguns falam russo, outros falam estónio e portanto falamos em inglês, e eles ficam sempre muito entusiasmados por me conhecer quando sabem que trabalho para os media da oposição. Fico orgulhosa. Sou uma espécie de celebridade [risos]. Mas sei que não sou a única. Há muitos mais jornalistas que trabalham para os media da oposição e que têm o mesmo background que eu. Os estónios sabem muito sobre política russa. Muitas vezes mais do que os próprios russos. Porque as redes sociais funcionam..Mantém contactos na Rússia. Sente que ainda há alguma liberdade de expressão no seu país, os seus colegas jornalistas lá ainda conseguem fazer o seu trabalho ou para trabalharem têm de sair do país?Ainda há alguns jornalistas da oposição na Rússia, mas nenhum deles coloca nomes nos textos. Muitos dos meus ex-colegas com quem trabalhei antes do início da guerra trabalham agora para gestores criativos ou para a empresa Yandex, uma grande empresa russa que está agora sob o controlo das autoridades. Mas não querem trabalhar para a Russia Today ou para os media da Gazprom. Tenho muitos amigos que escrevem para meios de comunicação locais russos, mas escrevem de fora do país. .Falou há pouco de Alexei Navalny, a morte do opositor foi um duro golpe para a democracia na Rússia?Sim, para muitas pessoas a esperança morreu com ele. Especialmente para quem vive na Rússia, porque ele era o rosto da oposição que não tinha saído do país, que estava ali ao lado deles. Ainda estamos à espera de mais pormenores sobre a sua morte, apesar de acreditarmos que foi assassinado. Aguardamos mais pormenores da investigação da Fundação Anticorrupção [organização sem fins lucrativos que Navalny criou em 2011]. Pessoalmente, a morte de Navalny influenciou-me. Eu estava na Geórgia quando li a notícia. Fiquei chocada. Muitas pessoas da equipa de Navalny também souberam desta forma. Não tínhamos muitas oportunidades para o ver, a prisão onde ele estava era muito a norte, muito, muito longe. Eu fiquei chocada. Nos dois anos que antecederam a sua morte, houve várias notícias chocantes. E eu aprendi a ter casca grossa e fazer o que posso. O melhor é continuarmos a fazer o nosso trabalho. .Já houve vários assassínios de jornalistas na Rússia, como Anna Politkovskaya. Ser jornalista é cada vez mais perigoso no seu país?Sim, sim. Não sou especialista em jornalismo na Europa, mas posso traçar alguns paralelismos com a Estónia, porque sigo alguns media locais. E, por exemplo, houve um escândalo com Kaja Kallas, a antiga primeira-ministra da Estónia. O marido dela tinha uma empresa que terá continuado a fazer negócios com a Rússia depois da invasão da Ucrânia, apesar de Moscovo estar sob sanções da Estónia. E o primeiro meio de comunicação social que deu a notícia foi a ERR, uma televisão pública estónia. Isto seria inimaginável na Rússia. É como se a Russia Today noticiasse algo negativo sobre o palácio de Putin em Gelendzhik. Não consigo imaginar isso. Há uns 20 anos que não podemos fazer uma coisa dessas. .Em 2020, Dmitry Muratov ganhou o Nobel da Paz e a Memorial venceu no ano seguinte. Estes prémios são importantes para chamar a atenção para o trabalho dos jornalistas russos, sobretudo fora da Rússia?Sim, é importante ser conhecido. Quando se vive sob um regime autocrático, o melhor que pode acontecer é passar a ser-se conhecido para poder publicar o nosso trabalho. A informação é o nosso poder. E o prémio Nobel é reconhecimento..Temos estado a falar de Vladimir Putin quase sem o nomear. Este tem estado no poder praticamente a sua vida toda…Sim, praticamente. Lembro-me de um dia ir à igreja com a minha avó, que era uma pessoa religiosa, e um pedinte veio ter connosco. A minha avó deu-lhe dinheiro e ele olha para mim e diz “esta menina um dia vai ser a mulher do presidente”. E eu lembro-me de pensar: ‘eu não quero ser a mulher de Putin’ [risos]. Eu não gostava dele, mas imaginei que quando chegasse aos 18 anos, já teríamos outro presidente. Tenho 29 e continua a ser ele. .Qual o seu sonho? Como imagina o futuro da Rússia?Para mim o futuro perfeito era Putin a ser julgado [no Tribunal Penal Internacional] em Haia. Seria a melhor saída para todos aqueles que agora acreditam na sua propaganda. Eles precisam de ver o processo, de ver o tribunal e todos os crimes que ele cometeu. Era o futuro perfeito para os russos e para a Rússia. E gostava que a Rússia fosse uma verdadeira confederação, com todas as regiões iguais. Porque, neste momento, Moscovo e o Kremlin são o centro de tudo. Por isso tantas pessoas de outras regiões querem viver na capital. É uma vida muito diferente..Consegue imaginar um líder para a Rússia do futuro? Sim, por exemplo, Vladimir Kara-Murza, que foi libertado numa das últimas trocas de prisioneiros. Ele não é muito conhecido mas é um político muito talentoso.