Argélia proíbe aviões militares franceses de sobrevoar o país. O que motivou a crise?
Executivo de Argel ficou irritado com o que classificou como comentários "irresponsáveis" e "interferência inadmissível" do presidente francês Emmanuel Macron.
A alguns meses do 60.º aniversário da independência argelina, as relações entre Argélia e França, a ex-potência colonial, atingiram um novo ponto baixo, com Argel a mandar retirar o seu embaixador de Paris esta semana. Neste domingo, o governo argelino proibiu aviões militares franceses de sobrevoarem o seu espaço aéreo, que eles costumam cruzar para voar para a região do Sahel, onde tropas gaulesas ajudam a combater insurgentes jihadistas.
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O que desencadeou as tensões?
A Argélia mandou regressar o embaixador Mohamed Antar-Daoud, de Paris, em resposta ao que diz terem sido comentários "irresponsáveis" e uma "interferência inadmissível" do presidente francês Emmanuel Macron.
Os comentários de Macron ao diário francês Le Monde foram amplamente divulgados pelos media argelinos e ocorreram durante uma reunião, na quinta-feira, entre o presidente francês e descendentes de figuras da guerra de independência que se desenrolou entre 1954 e 1962.
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Nesse encontro, Macron disse que a Argélia é governada por um "sistema político-militar", escreveu o Le Monde, e também teria criticado o que chamou de "história oficial" que a Argélia escreveu para si mesma, dizendo que "não era baseada em verdades", mas apenas "num discurso de ódio contra a França".
Macron disse que também a decisão francesa, anunciada dias antes, de reduzir drasticamente o número de vistos concedidos a cidadãos da Argélia, Marrocos e Tunísia não teria impacto sobre estudantes ou empresários. A medida - que foi denunciada pela Argélia - tinha apenas como objetivo "irritar os dirigentes" argelinos, disse Macron, que considerou ainda o presidente Abdelmedjid Tebboune como "refém de um sistema muito difícil".
Segundo os relatos saídos do encontro, Macron terá ainda criticado o facto de os argelinos agirem como se a França tivesse sido a única potência colonial que os governou, esquecendo o domínio otomano sobre o norte da África entre os séculos XVI e XVII.
Tensões anteriores
Um momento anterior de fricção entre os dois países surgiu em fevereiro de 2005, quando o parlamento francês aprovou uma lei reconhecendo "o papel positivo da colonização".
Embora posteriormente revogada, levou ao cancelamento de um tratado de amizade entre a Argélia e a França.
As tensões aumentaram novamente em maio de 2020 depois de os media franceses transmitirem um documentário sobre o movimento de protesto pró-democracia Hirak, que tirou do poder o antecessor veterano de Tebboune, Abdelaziz Bouteflika, no ano anterior.
Na ocasião, a Argélia também chamou o seu embaixador para consultas. E, em abril deste ano, o primeiro-ministro francês, Jean Castex, cancelou uma visita a Argel depois de receber críticas sobre o "pequeno" tamanho da sua delegação.
Memórias de guerra bloqueiam relação
Antes dos últimos comentários de Macron - que os media argelinos classificaram de "cáusticos" - as relações entre a França e a sua ex-colónia pareciam ter normalizado.
Em novembro de 2020, Macron elogiou a governança de Tebboune numa entrevista para a revista semanal pan-africana Jeune Afrique. Mas também despertou a fúria da sociedade civil argelina e dos expatriados quando acrescentou que "faria todo o possível" para ajudar Tebboune a lidar com o movimento de protesto Hirak.
No início daquele ano, porém, a França deu dois passos que foram muito apreciados pela Argélia. Em julho de 2020, Paris devolveu à Argélia os crânios de 24 combatentes da resistência que foram baleados e decapitados nos primeiros anos da ocupação francesa.
Anteriormente, em março, Macron admitiu que soldados franceses assassinaram o importante advogado argelino Ali Boumendjel em 1957 e depois encobriram a sua morte.
Macron declarou ainda a colonização da Argélia como um "crime contra a humanidade" durante a sua campanha eleitoral, enquanto visitava Argel.
Em 2020, a Argélia e a França concordaram em contratar especialistas para redigir um relatório com o objetivo de forjar a "reconciliação" e, em janeiro passado, o historiador francês Benjamin Stora entregou a Macron seu relatório, que fazia uma série de recomendações incluindo "atos simbólicos" de reconciliação e a criação de uma "comissão de memória e verdade".
No entanto, a presidência francesa disse que não equacionava "um pedido de desculpas" pelo passado colonial da França.
Já Argel rejeitou o relatório do Stora argumentando que "não era objetivo" e que não provou um "reconhecimento oficial pela França de crimes de guerra e crimes contra a humanidade, perpetrados durante os 130 anos de ocupação da Argélia".
No relatório, Stora sublinhava que França e Argélia estão bloqueadas em "memórias de guerra" e em reivindicações de vitimização.